quarta-feira, 13 de agosto de 2014

A noite mais escura

Georgia O'keeffe - Black abstraction (1927)

As montanhas morriam num lago azul. Aqui e ali, pequenos bosques ocultavam um mundo sombrio de onde subia um cântico primaveril. Seriam pássaros trazidos pelo crepúsculo ou mulheres que colhiam pequenas bagas cor de cinza. Algumas casas abriam-se sobre a enseada, mas no cais não havia barcos. Só, de cana de pesca esquecida entre mãos, um homem fitava o horizonte. Não tinha cor, talvez não tivesse roupa, pois tudo nele se fundia numa sensação de ausência. Passaram horas, o canto extinguiu-se, o sol declinou. As árvores eram apenas uma deformação na paisagem, de onde todas as cores se iam retirando. No cais continuava esquecido o pescador, a cana na mão, o olhar no poente. Quando se ouviu um barulho de pedra a cair nas águas, o crepúsculo entrou pelos olhos extasiados do pescador. Assim começou a noite do mundo. (averomundo, 2008/06/03)

6 comentários:

  1. Uma pedra(da) na água bastou para anunciar a noite.

    Um abraço

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    1. Como se o rasgão assim produzido abrisse uma brecha por onde a luz se foi.

      Abraço.

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    1. Talvez Hiroshima seja apenas uma parte dessa noite. Pode-se mesmo perguntar se será a mais escura.

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  3. Haverá noite mais escura do que Hiroshima? Não a consigo conceber. Hiroshima é a aniquilação total de todos e de tudo, o vácuo nuclear absoluto.

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    1. Hiroshima pode ter sido um passo decisivo na degradação moral da humanidade, pelo menos da humanidade ocidental. Julgo, contudo, que podemos imaginar - e até esperar - algo bem pior do que Hiroshima. A catástrofe pode vir sem ser pela alta tecnologia. Veja-se o que se está a passar no Iraque e na Síria.

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