quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Livro do Entardecer (36) ave

John Martin - The Assuaging of the Waters (1840)

36. ave

desfigura-se a casa onde
poisou o coração
a janela aberta
os vidros partidos
e a ave que um dia cantou
é sombra na parede
folha arrastada pelo vento

(averomundo, 2010/02/09)

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

O BANIF e a cidadania

Jesús María Cormán - 6.6 Richter scale (2001)

A minha crónica no Jornal Torrejano online.

Na solução do caso BANIF há duas coisas que me deviam deixar perplexo, mas não deixam. Não pense o leitor que o que me devia deixar perplexo é o voto dos partidos relativamente ao orçamento rectificativo, o qual permite ajustar as finanças públicas à solução proposta pelo actual governo. Era evidente que o documento contaria com o apoio, através da abstenção, do PSD. Por isso, o BE, a CDU e o CDS puderam entregar-se à rábula da indignação. Não me espanta que, numa situação como a do BANIF, o bloco central viesse a impor a solução actual.

O que me deveria deixar perplexo é a ligeireza com que a solução é apresentada à opinião pública. É-nos dito que esta solução é a que tem menos custos para o erário público, isto é, para os cidadãos, e pronto. Se o governo o diz, se  primeiro-ministro e o ministro das Finanças o dizem, então é verdade. Os cidadãos, aqueles que cumprem os deveres fiscais, são onerados em mais de três mil milhões de euros com uma decisão que é justificada por um mero argumento de autoridade. Num caso destes, a norma deveria ser obrigatoriamente outra. Tornar públicos os diversos cenários possíveis e os seus custos, para que os cidadãos pudessem controlar as decisões tomadas.

A segunda coisa que me deveria causar perplexidade, mas não causa, é a pacatez com que a decisão foi recebida pelos cidadãos em geral. Ouviram-se aqui e ali umas rosnadelas, talvez mesmo um ou outro uivo, mas de resto toda a gente ficou tranquila, como se aquilo não tivesse importância nenhuma, como se para nós portugueses pagar, através dos impostos, os devaneios e os despautérios dos banqueiros fosse a coisa mais normal deste mundo. Os portugueses são um exemplo acabado da má-fé sartreana: decidem através da não decisão. Fingem que nada é com eles, que não tomam decisões, mas pelo seu silêncio e a sua falta de exigência cívica eles – isto é, todos nós – são cúmplices activos das decisões políticas que os afectam.

No mínimo, os cidadãos deveriam criar as condições para que os governos explicassem muito claramente por que razão se tomou a decisão que se tomou em relação ao BANIF e não se tomou outra. As decisões políticas graves são justificadas desta maneira, escamoteando informação clara e rigorosa aos cidadãos, porque estes se demitem e são muito pouco exigentes com aqueles que ocupam o poder. Mais importante do que a questão de quem governa o país, se a direita ou se a esquerda, é a questão da qualidade da nossa cidadania. Uma cidadania débil, como a dos portugueses, permite todos os desmandos e loucuras que passem pela cabeça dos governantes, sejam de direita ou de esquerda.

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

A consciência infeliz

Jackson Pollock - War (1947)

Comecei a ler Continente Selvagem - A Europa no Rescaldo da Segunda Guerra Mundial, de Keith Lowe. O primeiro capítulo da Parte I tem o título "Destruição Física". Ao lê-lo lembrei-me da justa indignação perante as atrocidades que o denominado Estado Islâmico tem feito em importantes centro histórico-arqueológicos. O capítulo é elucidativo do grau de destruição que atingiu o edificado de muitas cidades europeias e nem sempre esta destruição é fruto de combates, mas de decisões racionais que visaram destruir património histórico, tal como tem acontecido agora no Iraque e na Síria. O que se descobre ao aproximar as duas experiências é que não há qualquer razão para se supor que nós, europeus, somos particularmente civilizados enquanto os outros são especialmente bárbaros. 

A selvajaria contra bens e pessoas a que somos capazes de nos entregar é tão desmedida e odiosa quanto a de quaisquer outros, sejam adeptos do Islão, militantes Khmeres Vermelhos, prosélitos das revoluções culturais, etc., etc. Somos tão humanamente selvagens como todos os outros. Existe, contudo, uma coisa que talvez - e eu sublinho o talvez - nos diferencie um pouco. Os europeus, e aqueles que deles descendem culturalmente, desenvolveram uma consciência crítica dos seus próprios actos. Somos capazes das maiores atrocidades (duas guerras mundiais bastam para o exemplificar) e, ao mesmo tempo, de tornar claro que essas atrocidades são inaceitáveis. 

Esta duplicidade da nossa consciência colectiva é o fruto de um desenvolvimento cultural que teve o seu início há cerca de 2600 anos, com a filosofia. Foi esta que semeou, ao longo dos séculos, uma consciência cindida. A filosofia nunca evitou que praticássemos o mal, mas teve quase sempre a capacidade de gerar em nós uma consciência infeliz pelo mal praticado. Tenho dúvidas que esta consciência dividida pela prática do mal e pela sua crítica feroz nos torne melhores e mais civilizados do que outros. Tem, todavia, a vantagem, de tornar claro que o mal é mesmo um mal, de nos roubar a alegria pelo mal cometido, de gerar na vida colectiva uma consciência infeliz.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

O poder nas instituições públicas

Ramón Rivas - Abstracto (1955)

Quem pensar que a vida nas instituições públicas portuguesas se encontra especificada em regras universais, abstractas e aplicáveis objectivamente engana-se. O poder expressa-se nas múltiplas situações informais em que o «chefe» dissolve a objectividade e usa a sua arbitrariedade para favorecer ou prejudicar alguém. É assim que se consolidam pequenos e grandes poderes, com uma palavrinha aqui, um favorzinho acolá, uma mãozinha mais à frente. Objectividade e universalidade das regras? Regras abstractas? Poupem-nos que está calor – ou frio – para tanta racionalidade. Não se faz por mal, mas porque somos mais sicilianos do que escandinavos. O resto é cenário para europeu ver. (averomundo, 2007/09/05)

domingo, 27 de dezembro de 2015

Livro do Entardecer (35) verdes anos

Annibale Carracci - The Laughing Youth (1583)

35. verdes anos

tínhamos a vida por diante
e um desprezo pelas horas
leve e fundo
o sono iluminado por archotes
e dos caminhos
conhecíamos os atalhos

éramos hóspedes e não o sabíamos
nem das fogueiras víamos a cinza
apenas o fulgor da vida
ou a eternidade dos verdes anos

mãos nas mãos
desfiávamos quimeras naturezas mortas
um rosário de sombra e esquecimento

(averomundo, 2010/02/08)

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

O primeiro presépio

JCM - Símbolos, Signos e Sinais (Presépio) (2014)

A minha crónica mensal em A Barca.

Julgo que durante toda a minha vida sempre fui fiel ao Natal, ao presépio, a esse mistério supremo do filho de Deus nascer num estábulo perdido na periferia do grande mundo. Mesmo nos tempos de maior furor racionalista, esse acontecimento falava dentro de mim. Mesmo nos dias de hoje, em que o Natal foi tomado pela agenda do consumo, em que o esplendor de um Deus nascido nas palhas parece ofuscado, espero com ânsia esse momento supremo onde o Filho de Deus vai tornar a nascer. Esta contínua fidelidade tem a mais estranha das origens.

Ela foi a herança que recebi de um não crente, do não crente mais consumado que conheci até hoje. Foi esse não crente que fez para mim o meu primeiro presépio, aquele de que tenho plena consciência. Era um presépio magnífico. Com musgo, caminhos de areia, rios de prata, altos rochedos, a gruta onde o Menino, nas palhas, era o desvelo da Sagrada Família, de um anjo, dos animais, de alguns pastores. Ao longe uma caravana, os Reis Magos, avançava lentamente, dirigida por uma estrela. E sobre esta paisagem e os seus habitantes havia um céu de papel azul enxameado de estrelas e uma lua. Na aldeia, as pessoas iam lá a casa ver o presépio, o meu presépio.

E este presépio continua como uma herança viva dentro de mim. Foi ele que me fez fazer os presépios com os meus filhos. Foi ele que me ajudou a interpretar e dar um sentido ao mundo. Quando vejo um presépio, é sempre esse primeiro presépio que vejo, mesmo que já não tenha musgo, nem céu estrelado e tudo se cinja a uma Sagrada Família frugal e abandonada. Nessa hora, a memória ateia-se e revejo o labor desse consumado não crente, que a morte levou há muito, a pôr o musgo, a desenhar caminhos, a inventar um céu azul sobre o milagre. Quando, na noite da Consoada, chega a meia-noite, eu olho o Menino e Ele diz-me: sim, o teu pai continua a trabalhar, o teu primeiro presépio está outra vez pronto.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

A palavra contribuinte

Ticiano - O dinheiro do tributo (1535-40)

Eu que não sou dado a ódios odeio certas palavras. Mal as oiço fico indisposto. Note-se que essas pobres palavras são originariamente inocentes e, na verdade, não têm culpa nenhuma do uso que delas fazem os homens. Por exemplo, odeio as palavras pedagogia e estratégia, mas isto são contas de um rosário mais antigo. A palavra empreendedorismo faz-me urticária e é sumamente odiosa, tal a invasão de empreendedorismos que houve nos últimos anos. O meu ódio nasce de usarem até à exaustão este tipo de palavras para esconder a realidade, de tal maneira que elas acabam por não significar nada.

Nestes últimos tempos ganhei um ódio especial à palavra contribuinte. Por dois motivos. Em primeiro lugar porque, ao ser usada a torto e a direito, ela perde o seu valor semântico e o contribuinte torna-se um nada sempre disponível para contribuir. Em segundo lugar porque a minha relação com o Estado não é meramente fiscal. Eu, como qualquer um de nós, sou um cidadão e é essa relação que o Estado deve respeitar. O cidadão tem direitos e deveres. O contribuinte têm apenas o dever de pagar. Quando certos partidos se dizem partidos de contribuintes, eu fico logo mal disposto. Quando dizem que defendem os contribuintes, dá-me vontade de rir. Dispenso que me defendam enquanto contribuinte. Prefiro ser respeitado enquanto pessoa e cidadão. Se o fizerem, em vez de encherem a boca com a palavra contribuinte, limitarão ao indispensável o confisco dos bens.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Da utilidade do cepticismo

Oskar Kokoschka - Aquilo por que lutamos (1943)

Quando oiço a expressão aquilo por que lutamos nunca consigo conter um sorriso. É mais forte do que eu. Eu sei que há causas justas pelas quais os homens se devem bater. Eu sei que há muitas pessoas que dão as suas vidas por essas causas. Eu próprio não fui nem sou indiferente a certas causas, por algumas das quais me bati e, eventualmente, ainda me bato. Há todavia qualquer coisa nisso tudo que faz nascer em mim um profundo cepticismo por todas as causas, as minhas, em primeiro lugar, e as dos outros, de seguida. Se me interrogo o motivo de tal cepticismo a única coisa que encontro é um sentimento de desproporção entre a natureza da causa e o ardor que ela mobiliza e aquilo que a sua realização traz consigo. Um exemplo. Olhemos para a declaração dos direitos do homem ou para a consigna liberdade, igualdade e fraternidade trazidas pela Revolução Francesa. Parecem-me boas causas, mas interrogo-me se seriam necessárias tantas mortes e um intenso exercício do terror. É muito provável que a realização de certas causas moralmente boas implique a violência que toda a luta traz consigo. Para muitos, a bondade da causa (o fim a atingir) justifica os meios utilizados, onde se incluem os crimes mais bárbaros. O que me falta a mim, e daí o meu sorriso céptico, é esta capacidade de produzir boa consciência. A violência não deixa de ser violência e um crime não deixa de ser um crime, independentemente das razões pelas quais são praticados. Eu sei que uma consciência céptica não é a melhor coisa para ostentar no ardor da luta. Se, porém, o cepticismo surgisse  na cabeça de todos os ardentes lutadores, talvez as grandes causas tivessem atrás de si um rasto de sangue e de patifaria bem menor. Talvez.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Livro do Entardecer (34) cinza

Edvard Munch - Cinzas (1894)

34. cinza

restos de cinza no umbral
a janela de onde olhávamos
a queda de uma maçã
ou a noite que tudo cobria

descrevemos sempre o mundo
como quem deseja uma flor
ou o revérbero que inclina
um para outro coração

(averomundo, 2010/02/07)

domingo, 20 de dezembro de 2015

Nanni Moretti - Minha Mãe


O que filma Nanni Moretti na sua última obra, Minha Mãe? Poder-se-á sempre afirmar que  núcleo central é a crise que atinge a protagonista, Margharita Buy, uma importante realizadora de cinema confrontada com o declínio irrevogável da mãe, as peripécias do filme que está a realizar, os naufrágios amorosos e a adolescência da filha. Uma crise que acaba por atingir o núcleo mais fundo da sua identidade. Esta crise de identidade não é apenas a de Margharita. Atinge também o irmão, Giovanni, que a acompanha no apoio aos últimos tempos da mãe. Também este acaba por pôr em questão o seu papel social, despedindo-se da empresa onde trabalhava como engenheiro. Estaríamos aqui perante crises da meia idade, no momento em que a geração dos pais desaparece.

Ler o filme de Moretti como uma reflexão sobre crises existenciais ou uma meditação sobre a depressão é olhar para o efeito, escondendo a fonte originária destas situações, onde o self se vê ameaçado na estrutura narrativa com que se foi construindo. O que o realizador nos dá a ver é o próprio caos onde a vida se desenrola, o carácter não estrutural da existência, a impossibilidade das coisas e das pessoas permanecerem aquilo que aparentam ser. Poder-se-á usar uma metáfora proveniente da sociologia de Zygmunt Bauman para compreender o filme de Moretti. Este filma a natureza líquida, fluida da existência, e o impacto que essa fluidez tem nas nossas crenças e representações sobre essa mesma existência. Construímos uma imagem da existência como se ela fosse sólida, estruturada racionalmente e articulada segundo princípios lógicos, mesmo quando se trata da perda, nomeadamente da morte dos que amamos.

O que  filme nos mostra, porém, é que essa visão sólida da vida e de nós próprios é uma falsa consciência que oculta o caos que é a existência das pessoas. Há uma não racionalidade fundamental que emerge e rompe o dique que as consciências particulares dos sujeitos construíram para se defender do caos. O filme mostre como este caos estilhaça o cosmos e o impacto que tudo isso tem em Margharita, mas também em Giovanni. Não é apenas o declínio da mãe – uma antiga professor de Latim (aqui simbolizado como princípio lógico do mundo) idolatrada pelos seus alunos – que nos mostra a irrupção na consciência da desordem que é o mundo e a vida. É o olhar que Moretti deita sobre o cinema, através do trabalho de realização de Margharita, que deixa ver, por baixo do esquema racional solidamente ancorado na planificação que organiza a tarefa criadora, a desordem que se insinua em cada momento de filmagem. Isto para não falar das relações da realizadora com a sua filha ou com os seus namorados. Em todo o lado, o espectador confronta-se com o informe que desfaz as construções formais que os homens tecem para sobreviver.

A morte da mãe, entendida aqui como uma processo de declínio de uma estrutura doadora de vida, simboliza então essa irrupção na consciência dos sujeitos (neste casos dos filhos) de uma verdade insuportável: a vida é pura fluidez, sem contornos sólidos onde possamos firmar as nossas crenças, aquelas que nos permitam alimentar o desejo de eternidade. Moretti filma a realidade caótica de toda a existência e a brutal irrupção desse caos na consciência, destruindo construções ideológicas sobre a vida, representações de si, destruindo as crenças em que assentavam as identidades dos sujeitos. O espectador vê um processo de libertação. A libertação das ilusões que nos permitem viver, destruídas pelo vento existencial que sopra onde muito bem lhe apetece. O realizador italiano mostra ainda uma outra coisa, ao trazer o próprio cinema para dentro da obra: nem a arte foge ao caos e, se alguém pensar que a arte é um lugar sólido de salvação dos pequenos egos de cada um, então está profundamente equivocado. 

sábado, 19 de dezembro de 2015

Enigmas, o Baco de Caravaggio

Caravaggio - Bacchus (c. 1595)

Há um enigma neste quadro, Bacchus, de Caravaggio. Segundo especialistas, o quadro contém dissimulado um auto-retrato do artista. Onde? No jarro de vinho que está no canto inferior direito do quadro. "No interior do jarro, Caravaggio pintou a silhueta de um homem, de pé, com um braço estendido. Alguns traços do vulto são claramente distinguíveis, em particular o nariz e os olhos, sendo também perceptível um colarinho. Os especialistas crêem poder hoje dizer-se que o pintor (1573-1610) fez o seu auto-retrato reflectido num jarro que tinha à sua frente enquanto estava a pintar." (Público) 

Mais enigmática é a representação de Baco. O que terá acontecido para que o impetuoso e vingativo deus Diónisos, ou a sua encarnação romana, Baco, que se transforma em leão para devorar gigantes, seja representado por um jovem imberbe, muitas vezes de face andrógina, como neste quadro de Caravaggio? Por outro lado, o que terá levado o pai do barroco italiano a representar de forma tão serena, tão apolínea, o deus do excesso e da embriaguez? A serenidade e a calma representação de Baco são de tal maneira gritantes que, ao olhar o quadro, penso mais no Sócrates do Banquete, de Platão, do que no velho deus servido por Sátiros ou Faunos.

Mas ao representar Baco desta forma e ao dissimular-se no jarro de vinho, talvez Caravaggio quisesse sugerir que o verdadeiro Baco era ele, figura silvestre sempre disposta para o excesso e a desmedida, e não aquele jovem delicado que pega na taça de vinho de uma forma tão pouco viril.(averomundo, 2009/10/30)

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

A força do pensamento

Salvador Dali - Pensamientos corrosivos

Um dia de Outono invernoso. O vento arranca as últimas folhas de ramos quase despidos e arremessa-as pelas ruas. Caminho, gosto de sentir o vento frio no rosto, e olho para quem passa, enquanto medito sobre a estranheza do pensamento, sobre a sua força, o poder que ele tem sobre o mundo e os corpos. Alguém, ao longe, vem na minha direcção. É ainda uma silhueta indefinida quando reparo. Uma hesitação no andar, passos rápidos, pequenas paragens. Parece gesticular, mas o sol incide-me nos olhos e não me deixa perceber. Caminhamos, a silhueta e eu, um em direcção ao outro. Alguns passos depois tudo começa a tornar-se claro. É um homem, talvez da minha idade, as roupas usadas, o cabelo em desalinho. Pára e esboça um grande gesto, como se indicasse a alguém um lugar, a saída da cidade, sabe-se lá o quê. Está só. Aproximamo-nos, e percebo distintamente que está a falar. Não, não fala ao telemóvel. Fala apenas, diz frases inteiras, invectiva a vida, pára, olha com desprezo o mundo, e continua. Modela a velocidade da viagem pela velocidade das palavras. Passa por mim, mas nem repara. Fala, fala, as palavras saem da boca, os gestos erguem-se do corpo, e segue a viagem, levado pela força do pensamento. Este é tão forte que ele não o consegue conter na intimidade da consciência. Irado, o pensamento irrompe pela boca e arrasta aquele corpo por caminhos que não levam a lado nenhum. 

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Livro do Entardecer (33) queda

Ismael González de la Serna - A queda (1935)

33. queda

esquecemos o que amámos
na leviandade de um sonho
ou na ilusão que se ergue
no trânsito das paixões

amadurecemos na noite
até as rosas supurarem
nos olhos enlouquecidos
de quem olha e nos vê cair

(averomundo, 2010/02/06)

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Uma vontade má

Odilon Redon - Cactus Man (1881)

Neste mundo, e até fora dele, nada é possível pensar que não possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade. (Kant, FMC)

Não sei o que se passa fora deste mundo, nem mesmo neste, mas sei que Portugal parece um exercício de más vontades que são a pura emanação de uma vontade má.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Magia e Técnica

José Luis Ansón - Magia

Acabámos de dizer que a magia tende a assemelhar-se às técnicas, à medida que ela se individualizava e se especializava na persecução dos seus fins. Mas há, entre estas duas ordens de factos [magia e técnica], mais do que uma similitude exterior: há identidade de função, pois uma e outra, (…), tendem para os mesmos fins. (…) Ela trabalha no mesmo sentido que trabalham as nossas técnicas, indústrias, medicina, química, mecânica, etc. [Marcel Mauss, Teoria Geral da Magia – Conclusão]

Se Marcel Mauss diz que a magia tende assemelhar-se à técnica, não se poderá inferir que a técnica se assemelha à magia? Melhor, que a técnica é uma forma de magia? Mas se for assim pensada, não encontramos uma base para explicar a capacidade de fascinar que a técnica possui? Esta capacidade de fascínio não reside tanto na paixão que a modernidade devota às possibilidades da técnica, mas no facto desta [isto é, das suas realizações] permanecer praticamente inquestionada.

Mas se se admitir a técnica como uma forma de magia, deveremos conduzir o inquérito mais longe. O que está na base da técnica? A ciência moderna. E o que está na base da ciência moderna? A lógica, o pensamento racional. Isso significa, então, que a ciência e o próprio pensamento racional ainda seriam modalidades do pensamento mágico. Argumentar-se-á que a indistinção entre pensamento mágico e pensamento racional não ajudará a explicar nem um nem outro. Talvez, mas não seria desinteressante explorar a comunidade que existirá entre eles.

Uma coisa, porém, poderia encontrar um princípio de explicação na continuidade entre pensamento mágico e pensamento racional: o problema de um mundo racionalizado produzir fenómenos absolutamente irracionais. Por exemplo, o planeamento familiar conduzir à inexistência de famílias. Por exemplo, a racionalidade presente no extermínio dos judeus pelo nazismo. Por exemplo, a organização racional das instituições conduzir a formas de vida institucionais absolutamente inumanas. (averomundo, 2007/09/10)

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

O princípio de realidade

Alfonso Parra Domínguez - Realidad dialéctica (1977)

Afinal a boa vontade da chanceler Markel para com os refugiados chocou com o princípio de realidade. E para um político o que é o princípio de realidade? O poder. Contestada no seu próprio partido, a senhora Merkel transita dialeticamente de uma política de portas abertas para a redução visível da chegada de refugiados à Alemanha. É nos casos extremos que se percebe muito bem que a política não é a moral e que esta, em última instância, não conta. Há uns meses a senhora Merkel impôs uma reviravolta nas posições de Alexis Tsipras. Agora foi a sua vez. A realidade - isto é, o poder - é o que é, e o único princípio que é efectivamente válido em político é obter o poder e conservá-lo, adequando-se ao que a realidade ou a fortuna exigem. E a moral? Bem, a moral é uma coisa privada que se usa publicamente se não for um obstáculo. Só quem tem um poder exorbitante - e isso não é possível em democracia - se pode dar ao luxo de uma fidelidade contumaz à moralidade. 

domingo, 13 de dezembro de 2015

Livro do Entardecer (32) a luz que ninguém vê

Jackson Pollock - White Light (1954)

32. a luz que ninguém vê

palavras vêm pela manhã
não para a anunciar o dia
mas para apagar o terror
que a noite deixou no olhar

com elas tomamos o mundo
e vigiamos as águas à espera
daquilo que avança para nós
como a luz que ninguém vê

(averomundo, 2010/02/05)

sábado, 12 de dezembro de 2015

A arte do fingimento

Francis Bacon - Painting of a Dog (1952)

Ocupem-se de coisas sérias. (Sólon)

Talvez na distante época de Sólon de Atenas ainda fosse claro aquilo que era uma coisa séria e com a qual os homens teriam o dever de se ocupar. Sólon cuidou de legislação e de poesia lírica. Hoje em dia, porém, quem se atreve a dizer que legislar e fazer poesia são coisas sérias? Basta ouvir o rumor da voz do povo para perceber que ninguém leva a sério os pobres legisladores. Quanto aos poetas, isso nem é sequer considerado uma ocupação. O problema é que nos dias que correm os homens podem ocupar-se de uma multiplicidade quase infinita de coisas, mas no fundo, por mais aparente que seja a paixão com se entregam às suas ocupações, todos pressentem que tudo é pouco sério. Em vez do imperativo de Sólon ocupem-se de coisas sérias, será mais apropriado prescrever: finjam que são sérias as coisas de que se ocupam. Nada melhor do que a arte do fingimento. 

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Uma estranha nostalgia de Natal

Jorge Carreira Maia - Black & White Dreams (2014)

A minha crónica de hoje no Jornal Torrejano online.

A noite de Natal aproxima-se velozmente. E essa aproximação traz-me uma angústia e uma estranha nostalgia. A angústia é fácil de explicar e reside nos presentes que me faltam comprar. A nostalgia, essa é bem mais difícil de elucidar. Poder-se-á formular do seguinte modo: é nostalgia de um tempo em que não havia presentes pelo Natal. Ora a estranheza dessa nostalgia reside no facto de nunca ter vivido um Natal sem presentes e, portanto, não poder ter uma memória saudosa do que nunca vivi.

É evidente que a troca de presentes é um acontecimento agradável. Há até mais prazer em dar do que em receber. Além do mais, o comércio do Natal tem um efeito benéfico na economia e assegura trabalho a muita gente, e nos dias que correm haver trabalho é um bem escasso que não devemos malbaratar. Toda esta civilidade associada ao Natal, contudo, não tem o poder de dissolver a nostalgia que toma conta do meu espírito.

Efectivamente, o Natal é o momento onde o mundo cristão revive o nascimento despojado de Jesus Cristo. Um nascimento marcado pela pobreza das coisas materiais, pelas difíceis condições físicas onde se dá o nascimento do Filho de Deus, marcado pelo rigor climatérico que, na nossa imaginação, sempre associamos ao presépio de Belém. Tudo no acontecimento apela à contenção, à austeridade, ao exercício de uma ascese onde o homem se liberte do peso da materialidade.

A nostalgia nasce dessa ânsia de despojamento e de abandono. Nostalgia daquilo que não se viveu, mas que, no fundo de muitos seres humanos, continua a clamar, como uma voz que clama no deserto. Imagino então um Natal frio, sem presentes, apenas um encontro de família, no qual, sem a exterioridade trazida pelo comércio, cada um se descobre nos laços mais íntimos e mais autênticos, se descobre como alguém que  também nasceu naquele lugar frio e despojado que é a gruta de Belém. Um Natal como um momento de descoberta e de abandono de si. Na verdade, uma estranha nostalgia de Natal.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Onde está o mal?

Henri-Cartier Bresson - Gestapo Informer, Dassau, Germany (1945)

Ao ver esta fotografia, qualquer coisa em mim tremeu. É uma fotografia de 1945, tirada na Alemanha. O título, não sei se provirá do autor, o fotógrafo Cartier-Bresson, “Informadora da Gestapo, Dassau, Alemanha” introduz-nos, de imediato, num drama de vivido por milhões de homens e mulheres. Consta que “o fotógrafo captou o momento em que uma mulher reconheceu a sua delatora, que está a ser interrogada, e avança para a agredir perante o olhar de outros ex-prisioneiros”.

A minha perplexidade centrou-se numa pergunta que de imediato me acudiu ao espírito: onde está o mal? Num primeiro momento, tudo é simples. A delatora, aquela que estava do lado dos algozes nazis, representa o mal. Toda uma narrativa didáctica se poderia tirar dali: a delação não compensa, chegou o momento da vítima fazer justiça perante os olhos, por vezes irónicos, das outras vítimas. Tudo se expia e aquela mulher, que tinha enviado outros seres humanos para o sofrimento e a morte, tinha encontrado a sua hora de expiação.

O problema é que eu não sei quem é ali a vítima. Por vezes, chegam-me imagens do Portugal de 74, parecidas com estas. Arrepio-me com a simplicidade com que na altura eu olhava para os acontecimentos. Onde estavam as vítimas? Não quero com isto dizer que os sicários nazis e os delatores não fossem culpados, sumamente culpados. Eram-no. Não quero dizer que, em Portugal, o regime ditatorial e os seus homens não fossem culpados. Eram-no. Mas na altura em que perdem, tornam-se tão indefesos como o eram aqueles a quem eles perseguiram, maltrataram e assassinaram.

Esta fotografia não me fala da prisão de uma abjecta colaboracionista, nem do exercício de uma qualquer justiça, metafísica ou popular. Fala-me do horror de estar em minoria, do horror que é perder. Fala-me do horror da humanidade, daquela que está do lado moral e historicamente mau, mas também daquela que por vezes está do lado bom. A fotografia fala do horror da vingança, fala da tristeza e da pequenez que habita a nossa humanidade, fala da vergonha que deveríamos todos sem excepção ter, e que não temos. Olho a fotografia e pergunto, onde está o mal. O mal está em todo o lado e cuida de nós. (averomundo, 2007/04/10)

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Livro do Entardecer (31)

Edvard Munch - Dia de Verão (1904-08)

31. esqueço tudo se o verão chega

esqueço tudo se o verão chega
e espreita para lá dos cedros
para traçar com letra de fogo
uma ordem de rendição

a carne ainda sedenta de frio
entrega-se à dolência das tardes
sem incêndio nem esperança
apenas um desejo de sombra
escrito no rosto de quem passa

oiço o mar como uma miragem
e vejo a exaltação do teu olhar
ali mesmo onde a cinza avança

(averomundo, 2010/02/04)

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Uma afronta ao mundo

Caravaggio - Siete obras de misericordia (1607)

Não deixa de ser notável o esforço do Papa Francisco - agora  ao lançar o jubileu da misericórdia - nesta sua luta contra o espírito do mundo. Na sua origem, cristianismo e mundo estavam de costas voltadas. Depois, um prolongado casamento entre esse mesmo cristianismo e o poder político tornou-o muito mundano e, não raras vezes, pouco misericordioso. Lentamente, porém, como se estivesse a voltar à sua condição original, o cristianismo foi-se tornando, outra vez, suspeito aos olhos do mundo. Na verdade, o conjunto de valores trazidos pelo seu fundador chocam-se com aqueles que dominam e superintendem os destinos da humanidade. 

Trazer a misericórdia para o centro da vida religiosa dos católicos não pode ser entendido apenas em contraponto com a violência que corre no mundo, com a cultura de vingança que destrói a capacidade de perdoar e de conviver. A misericórdia não é apenas o perdão. Tem uma outra perspectiva, a da compaixão com a nossa própria espécie. E é nisto que ela é uma afronta aos valores do nosso mundo. A compaixão para connosco é o outro lado da nossa finitude e da nossa fragilidade. Nós somos seres falíveis e a misericórdia é o reconhecimento dessa nossa falibilidade estrutural. Tudo isto se tornou estranho a um mundo moldado na ideia de eficácia e que pune exemplarmente quem é falível e ineficaz. Ser compassivo e misericordioso num mundo dominado pela a eficácia é uma terrível afronta ao espírito desse mundo.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

O papel social da narrativa

Wassily Kandinsky - Division - Unity (1943)

O papel social da arte, contaminado pela divisão política, perdeu, desde há muito, o prestígio que nos séculos XIX e XX chegou a ter. Se, no entanto, voltarmos à antiguidade clássica, encontramos em Aristóteles - que está muito para além das querelas sociais e políticas do mundo nascido com a Revolução industrial - uma clara leitura da tragédia a partir da sua função social, a de purificar os sentimentos de terror e de piedade. Este retorno a Aristóteles permite-nos, escudados numa autoridade estranha aos nossos interesses e conflitos, voltar a interrogar o papel social da arte. Interesso-me aqui pelo papel do romance a partir do início da modernidade. Por que razão o romance (e as formas dele derivadas como o cinema) alcançou uma importância que nunca antes tivera?

O romance surge como uma resposta à fragmentação crescente que se instala a partir do Renascimento. Uma paulatina pluralização de perspectivas filosóficas, a multiplicação de igrejas cristãs, a fragmentação da ciência em incontáveis campos de investigação, a diferenciação de ideologias e projectos políticos, a proliferação de perspectivas éticas ou, mesmo, o fraccionamento das propostas estéticas, tudo isso, obedecendo a princípios que se diferenciam, opõem e combatem, mergulha o homem numa incapacidade de constituir uma visão global que lhe permite compreender a realidade a partir de uma unidade principial, que estruturaria todo o campo da experiência possível.

O romance surge como uma nostalgia dessa unidade perdida. Ao constituir um mundo próprio da obra, cada romance introduz um princípio de unidade que articula tudo o que nele se passa. A narrativa romanesca parece ser, desse modo, a resposta dada à desarticulação da unidade presente na idealidade da pólis grega, na realidade efectiva do Império romano e, ainda, na vivência da cristandade medieval. Agora que não há um princípio que unifique a vida social, o romancista, através do expediente do narrador, reconstrói essa unidade de forma simbólica em cada romance que escreve. Aquilo que era fruto de uma principialidade metafísica e metapolítica é agora a obra de um indivíduo que, através da narração, articula e dá sentido a um heteróclito da experiência que, por si mesmo, deixou de fazer sentido. O papel social da narrativa romanesca é, num mundo em contínua fragmentação, o de manter viva na imaginação do leitor a possibilidade de um sentido unificado das experiências possíveis. A questão que se coloca, como corolário, é, porém, outra: quando o próprio romance se deixa contaminar pela fragmentação será ainda um romance?

domingo, 6 de dezembro de 2015

O rosnar da noite

Dionisio Fierros - Atardecer en rojo

Oiço o rosnar da noite ao cair sobre as ruas indefesas. Passam homens apressados, como se a escuridão fosse uma armadilha tecida por inimigos invisíveis. Nas entranhas da terra uiva uma matilha de lobos inquietos e esfaimados. Quando a treva chegar, sairão à procura do festim. Quando regressarem ao covil, de boca ensanguentada, a noite expirará e a aurora sorrirá no horizonte, promessa enganadora que anuncia a cordialidade da manhã. Exaustos, os lobos bocejarão antes de adormecer. A luz toma então conta do mundo e os homens retornam ao desassossego do dia, como se este fosse uma promessa de infinito. (averomundo, 2008/05/15)

sábado, 5 de dezembro de 2015

Livro do Entardecer (30)

James Jacques Joseph Tissot - A Sonhadora

30. uma cor de seda voraz

uma cor de seda voraz
os animais pelas matas
ramos a balançar ao vento
tudo crepita no teu olhar

deixas poisar cada sonho
nas tardes de verão
paisagens azuis sulfurosas
brancas a arder no peito

e quando as mãos urgem
na luz da clareira sombria
o teu sangue corre
no silêncio das minhas veias

(averomundo, 2010/01/28)

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Um país liberal?

A minha crónica quinzenal no Jornal Torrejano.

Alguém convenceu Passos Coelho de que tinha uma missão providencial. O actual presidente do PSD não compreendeu que fora apenas eleito para pôr cobro aos desmandos de José Sócrates e não para uma aventura milenarista. Com ele, terá imaginado, Portugal tornar-se-ia uma pequena potência liberal. Rodeado por gente imbuída de semelhante credo e aproveitando, como justificação, a intervenção da troika, o ex-primeiro-ministro fustigou o país com este delírio disparatado, para horror daqueles que lhe sofreram as consequências e espanto da velha direita, que conhece bem o país e os limites que este impõe a tais devaneios. Por estranho que possa parecer a esta gente, Portugal não é um país anglo-saxónico. Não é a Inglaterra nem sequer a Irlanda. Tem uma cultura diferente e é com essa que tem de viver.

O problema central do país não é a dívida pública, mas a própria fragilidade da sociedade. Fragilidade que começa por uma capacidade de iniciativa reduzida, devido à falta de autonomia dos cidadãos, sempre embrulhados numa cultura que, mesmo nas empresas privadas, privilegia as redes clientelares à competência e autonomia da pessoa, e que acaba numa economia que ainda não conseguiu refazer-se da entrada no Euro e do choque da globalização. O que era exigido – e continua a ser exigido – é um esforço em várias frentes. Não descurar o problema da dívida e dos compromissos internacionais, mas, ao mesmo tempo, dar uma atenção muito especial à modernização da nossa economia – fazendo-a entrar definitivamente na época da digitalização – e, uma não menor atenção ao reforço da autonomia dos indivíduos, à capacidade destes intervirem na realidade, ao fortalecimento do poder de iniciativa.

Portugal não pode, de um momento para o outro, tornar-se um país liberal, mas pode ir, paulatinamente, adquirindo uma atitude mais liberal, menos dependente do Estado, mais de acordo com aquilo que é exigido pelo mundo onde nos encontramos. Em muitos países não anglo-saxónicos, a difusão liberal foi feita ao mesmo que tempo que foi reforçado o Estado social. Este não serve apenas como uma forma de assistência aos desvalidos. Ele funcionou e funciona como um reforço da iniciativa dos próprios indivíduos, o que acaba por ter um efeito positivo no desenvolvimento de uma cultura liberal. Depois do devaneio de Passos Coelho, chegou a vez de António Costa. O que lhe é exigido não é pouco. Fazer a quadratura do círculo. De mão dada com os partidos à sua esquerda, que desconfiam do liberalismo, dar passos decisivos na modernização do país.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

O fim da política e o governo mundial

Diego Rivera - El Buen Gobierno (1924)

Se adoptássemos semelhante perspectiva (a de um governo mundial que transforme o Estado num aparelho administrativo), acabaríamos não na abolição da política, mas num despotismo de proporções maciças no qual o abismo separando os governantes dos governados seria tão gigantesco que qualquer espécie de revolta deixaria de ser possível, para já não falarmos de qualquer forma de controle dos governantes pelos governados. [Hannah Arendt (2007), A Promessa da Política, Lisboa: Relógio d’Água, pp. 86]

Este texto data de 1951, mas continua a manter plenamente a sua actualidade. Mais do que isso, ele desmonta um dos perigos que, sem nos apercebermos, começa a instalar-se no Ocidente. O desígnio político de uma parte substancial do Islão é o do estabelecimento de um califado universal, a ideia de um governo mundial regido pela ‘sharia’, a lei corânica, a qual aboliria o direito positivo das nações e submeteria todos os povos e todos os indivíduos à «lei divina». É fácil perceber que essa lei divina seria aplicada não por Deus mas pelos homens. Também é fácil perceber que essa situação configuraria aquilo que Hannah Arendt diz do governo mundial: um despotismo ilimitado e uma impossibilidade absoluta dos governados exercerem qualquer controlo sobre os governantes. (averomundo, 2008/02/12)

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Os eixos e o tempo

Francis Bacon - Cabeça III (1961)

O tempo está fora dos eixos. (W. Shakespeare, Hamlet)

Por uma qualquer patologia, deu-me para pensar sobre mim e fui ter à frase de Hamlet. A constatação hamletiana de que o tempo está fora dos eixos pode sempre ser lida como uma avaliação da modernidade que então se iniciava, como a consciência de um ruptura com a velha ordem medieval, a qual, na verdade, fornecia os eixos em torno dos quais o tempo girava, na sua ciclicidade, e donde, na época de Shakespeare, havia já a clara consciência de que se tinha soltado. A sorte maldita do pobre Hamlet residiria na consciência infeliz da sua tarefa: a de ter nascido para voltar a colocar o tempo nos eixos. A heroicidade do propósito e o sentimento de maldição que ela acarreta devem-nos contudo fazer suspeitar de outra coisa.

Desenhava-se já ali a difusa consciência de uma inédita situação. Não se tratava de o tempo ter-se soltado dos eixos, mas dos eixos terem desaparecido. Não mais um outro tempo teria os seus eixos, em torno dos quais a vida pudesse girar na ciclicidade de um eterno retorno. Os tempos não retornam mais, pois os eixos foram roubados. A partir de agora, a cada novo tempo apenas lhe resta o ir destrambelhado para a frente e para baixo, como se a gravidade lhe determinasse a queda e o desejo o tornasse vítima da voragem do futuro. Acabaram-se os eixos, ficou o tempo e isso parece-me tão pouco consolador quanto parecia à Hamlet a tarefa que lhe competia. Tenho a vantagem de ser plebeu, o que não me atribui qualquer tarefa e assim deslizo tranquilo, desfigurado, apatetado e, como o anjo da história, empurrado pelo vento que sopra do paraíso.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Livro do Entardecer (29)

Caspar David Friedrich - Winter Landscape with Church (1811)

29. olhei enlouquecido

olhei enlouquecido
as ruas da cidade
vi gatos e homens
perdidos do mundo
esquecidos de si

olhei o abandono
trazido pelo inverno
e sentei-me ao fogo
para que a memória
voltasse para mim

(averomundo, 2010/01/27)

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Tempo de Outono

Nicolas Poussin - Outono (1664)

A minha crónica para o número de Novembro da revista A Barca.

O Outono tornou-se uma metáfora, talvez demasiado frágil, para os dias que nos estão a ser dados a viver. Escrevo enquanto a cidade de Bruxelas está em estado de alerta máximo e Paris tenta reerguer a cabeça, após os atentados do 13 de Novembro. O Outono é um tempo de indecisão, no qual a força solar do Estio cede, pouco a pouco, à queda da luz e se abre à noite invernosa. Ainda há pouco anos a Europa era o lugar luminoso que, grande parte do mundo, gostaria de copiar, o sítio no qual uma vida livre e despreocupada se aliava à capacidade de gerar riqueza e distribuí-la. Isso acabou.

Hoje a Europa começa a ser o lugar onde, lentamente, o medo se instala, onde as ruas se enchem de polícias e de militares, onde os cidadãos olham para o lado desconfiados. A Europa e os seus valores tornaram-se o alvo a abater. A monstruosidade sangrenta e delirante, o terrível dionisismo feito de sangue, morte e alucinação erótica, trazem-nos um pesadelo para dentro de casa e mostram-nos que os valores da civilidade não são dados adquiridos. Começamos a perceber que podemos ser expulsos do pequeno paraíso que nasceu, após duas guerras mundiais, do medo de nos matarmos de novo uns aos outros.

O carácter outonal dos nossos valores alia-se ao Outono da nossa demografia. E isto é um convite para aqueles que odeiam a liberdade, a igualdade entre homens e mulheres, que não suportam que cada um decida por si mesmo o que há-de fazer com o dom da vida. É um convite à intrusão do inimigo. Está a chegar o momento em que nós, europeus, teremos de decidir o que queremos. Já não se trata de distribuição de riqueza, de acesso a lugares e a reconhecimento. Trata-se, pura e simplesmente, de decidir se queremos continuar a ser europeus. Trata-se de tomar a decisão se este tempo outonal se vai transformar, ou não, no Inverno do nosso descontentamento.

domingo, 29 de novembro de 2015

O Cristo do Facebook

Juan Barjola - Ecce homo (1986)

Foi através do Público que cheguei a esta página do FacebookJesus Daily. A página tem milhões de seguidores e acumula likes como nenhuma outra. Se se perder algum tempo a ver as fotografias que pretendem representar Cristo, descobre-se o que resta do cristianismo e de Cristo neste tipo de manifestações. Uma moral vagamente consoladora das misérias humanas e um Cristo ao nível do terapeuta familiar. Embora este tipo de "religiosidade" seja uma marca das seitas protestantes, o próprio catolicismo, talvez devido à concorrência, alberga muitos impulsos no mesmo sentido. Entre o Cristo que oferece o sacrifício, o seu próprio, como modelo para um caminho de transformação e emancipação, e o Cristo dos milhões de likes nada há em comum. O cristianismo nunca pretendeu ser uma terapia de adaptação ao mundo, pelo contrário. Se os responsáveis das Igrejas cristãs, nomeadamente da Católica e das Ortodoxas, pensarem que tamanha profusão de comentários e de likes é o sinal de uma revivescência dos ideais cristãos, de uma aspiração ao retorno a uma sociedade dirigida pela inspiração crística, estão bem enganados. Estes fenómenos são o sintoma de uma decadência que já nada esconde. (averomundo, 2011/09/07)

sábado, 28 de novembro de 2015

Uma oportunidade para a direita

Porta Missé - Pensador (1981)

A derrota eleitoral da coligação PSD/CDS e o novo governo de António Costa são uma oportunidade para a direita – nomeadamente, o PSD – se repensar e se reposicionar no tabuleiro político. A direita, como quase todos nós, demorou muitas dias até perceber que tinha perdido as eleições, pois as vitórias eleitorais dependem do apoio maioritário no parlamento e não de qualquer outro critério. Percebida a situação, a direita entrou numa fase que mistura o desejo de vingança – ainda uma recusa da realidade – e o luto pelo poder perdido.

Os dias, porém, vão passar e darão lugar à pergunta fundamental para essa direita: por que razão perdeu as eleições, apesar de ter a seu favor praticamente toda a comunicação social e da manipulação sistemática que fez da realidade? Esta pergunta, que nunca será feita publicamente, pode gerar dois tipos de resposta. Uma resposta dirá que a direita não perdeu mas que o António Costa é um malandro e que só espera um apocalipse qualquer para retornar ao poder. Esta é a resposta que a esquerda mais gostaria que fosse dada.

Uma segunda resposta é aquela que obrigará a direita a olhar para dentro e perceber em si mesma a causa da sua derrota. Olhar para estes quatro anos e avaliar de forma fria e objectiva o que fez. E não me refiro ao que a troika impôs. Refiro-me ao modo escolhido para seguir a troika e às opções ideológicas escolhidas. Durante quatro anos, a direita entregou-se a um delírio ideológico fanático, sem ter qualquer consideração para com a realidade do país. Combinou uma espécie de vingança com a herança do pós-25 de Abril com a ideia estulta que poderia abandonar uma política moderada e centrista e tornar Portugal um paraíso liberal. O resultado foi extraordinário: além de perder 700 mil votos e a maioria de que dispunha, conseguiu esse feito inimaginável de unir os três partidos de esquerda.

Quando a direita perceber que a causa do seu afastamento do poder não está em António Costa nem na Constituição, nem em mil delírios ressentidos que povoam as redes sociais, mas naquilo que fez, as coisas mudarão. Nessa hora, ela pode desenhar um novo projecto político mais moderado, onde combine um incremento do espírito liberal no país, sem atacar o Estado Social, fazendo deste não apenas a almofada da liberalização mas um dos motores dessa mesma liberalização (foi isso que a Alemanha fez depois da II Guerra Mundial e já tinha feito no século XIX). Então a direita estará pronta para voltar ao poder sem que isso seja o prenúncio de uma catástrofe social, sem que isso signifique a destruição das nossas frágeis classes médias e o descarado apoio aos mais poderosos, sem que isso tenha que representar um pavor para parte substancial da população. 

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

A bondade moral da mentira a si mesmo


Um estudo (link desactivado) publicado na revista Nature chega a uma interessante conclusão. Possuir uma visão adequada da realidade é uma desvantagem competitiva. Os indivíduos que possuem excesso de confiança, quando em situações de competição por recursos cujos benefícios sejam suficientemente grandes em relação aos custos, têm vantagem competitiva sobre os que têm uma visão adequada da realidade. Por outro lado, quando se está perante conflitos com um custo elevado, a selecção favorece aqueles que têm uma visão subavaliada das suas capacidades. Em caso algum, aqueles que possuem uma auto-avaliação realista e adequada são seleccionados.

Deste ponto de vista e contrariamente à moral tradicional, a auto-ilusão e a mentira sobre si mesmo são um bem, enquanto a perspectiva moral que ordena o auto-conhecimento induz uma desvantagem. O célebre oráculo de Delfos, que ordenou a Sócrates conhece-te a ti mesmo!, nada sabia dos processos de selecção. Não bastava a já velha diatribe de Nietzsche contra a verdade. Agora ficamos a saber que é melhor possuir uma imagem ficcional e desadequada da nossa própria realidade para podermos sobreviver. Assim sendo, o Nietzsche de a Origem da Tragédia tem completa razão. A preocupação do homem teórico, a preocupação com a verdade enquanto adequação do conhecimento à realidade, é uma patologia. (averomundo, 2011/09/14)

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Livro do Entardecer (28)

Edward Hopper - White River at Sharon (1937)

28. se a noite vinha sobre o rio

se a noite vinha sobre o rio
uma dor pairava no silêncio
suspensa sobre a água
presa na erva das margens

quando as flores secavam
e a luz do  inverno se velava
acendíamos uma vela
na tristeza que então nascia

(averomundo, 2010/01/26)

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Um lugar de punição

Samuel (imagem daqui)


Dá-nos um rei que nos governe, como o têm todas as nações. (I Samuel 8:5)

Se procuro na minha memória qual o texto que fundamentou, em última análise, a minha visão do poder político, descubro que o essencial deriva do capítulo oitavo do primeiro livro de Samuel (Antigo Testamento). Perante a insistência dos anciãos de Israel, Deus, por mediação de Samuel, dá um rei aos israelitas, mas, como se pode inferir da leitura de todo o capítulo, dá-o como um castigo. O poder político é um lugar de punição, de exercício da violência e do mal. É um texto fundamental para se perceber a política e não se ter qualquer ilusão sobre a sua natureza.

A modernidade - fundamentalmente, desde o século XIX, embora isso não seja uma novidade moderna - apresenta uma estranha ambiguidade acerca do poder. Por um lado, talvez por uma meditação deste mesmo texto de Samuel, gerou doutrinas de abolição (anarquismo e marxismo) do poder político ou da sua restrição até a um Estado mínimo (neoliberais e libertários de direita). Por outro, os defensores destas doutrinas - talvez com a excepção dos anarquistas - batem-se com um extremo ardor pelo controlo desse lugar de exercício da violência legítima. E batem-se, em contradição com a sua avaliação negativa do Estado, porque deixaram imiscuir-se, nessa visão arcaica do Estado como punição, a ideia de que ele seria um lugar de distribuição do bem.

Esta ambiguidade é o horizonte onde nos movemos ainda nos dias de hoje, é ela que aquece os corações e desencadeia as paixões políticas e o conflito político, seja este regulado por regras democrático-constitucionais, seja regulado pela força sectária presente nas tiranias. Mas se soubermos dominar as nossas paixões e deitar um olhar frio sobre a natureza do poder, sobre a essência da acção daqueles que lutam por o alcançar ou manter - mesmo daqueles que nós presumimos do nosso lado - não podemos deixar de voltar ao velho texto de Samuel. Isso não quer dizer que não seja consolador deixar que as ilusão sobre o poder nos invadam e tornem a nossa vida mais tranquila. Na verdade, foram os israelitas que exigiram ser castigados.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

António Costa

Santi di Tito - Nicolau Maquiavel (século XVI)

Creio também que seja bem-sucedido aquele (príncipe) cujo modo de proceder condiz com a qualidade dos tempos e, de modo semelhante, que seja mal-sucedido aquele de cujo proceder os tempos discordam. (Nicolau Maquiavel, O Príncipe,  cap. XXIV)

Terminou hoje uma parte dos trabalhos de António Costa. Como todo o político, o poder é o objectivo central, para não dizer único, da sua acção. A carreira do agora indicado primeiro-ministro é um caso notável de eficácia na luta pelo poder. O que é notável, no percurso efectuado, é a sua adequação aos tempos. Chegou a ministro ainda com Guterres. Foi também ministro com Sócrates, mas as eleições para a Câmara de Lisboa pouparam-no a um longo convívio governativo com um dos mais detestados primeiros-ministros de Portugal. Na Câmara de Lisboa construiu uma forte solução de poder que lhe valeu uma reeleição. A partir daí traçou um percurso, através dos mais inusitados meios, para alcançar o lugar onde agora chegou. Como um príncipe da Renascença, liquidou, de caminho, António José Seguro, encostou, através de resultados medíocres, Passos Coelho e Paulo Portas às boxes, infligiu a maior humilhação política a Cavaco Silva (ter de indigitar um primeiro-ministro que não só não é da sua área, como ainda por cima é apoiado pelo BE e pelo PCP), calou a recém-descoberta ala direita do PS e estendeu, disfarçado de abraço, um nó corredio à volta do pescoço do BE e do PCP. Até aqui, António Costa foi impetuoso e submeteu a fortuna e esta concedeu-lhe os seus favores.

Como nos ensinou Maquiavel, os trabalhos não acabam quando se alcança um principado. Há que mantê-lo. Para tal, e para além de saber cuidar dos aliados e ter bem consciente o conjunto de fantasmas sedentos de vingança que gerou pelo caminho, há duas coisas que António Costa, se não quiser ser um príncipe efémero, tem de ter em conta. Em primeiro lugar, estar muito atento aos tempos, ao que Hegel chamou Zeitgeist (o espírito do tempo). Esta atenção significa saber adaptar-se a cada novo tempo, ter a flexibilidade suficiente para não se pôr em desacordo com o tempo. E os tempos são muito instáveis, entregam-se a estranhas danças. Ao príncipe é exigido que seja bom dançarino. Em segundo lugar, dar atenção à Némesis, essa deusa encarregada de abater todo excesso, toda a desmesura, todo o orgulho do príncipe. Pior e mais perigoso do que haver muitos esqueletos nos armários é a falta de medida do governante. Talvez Costa tenha aprendido com a desmedida de Sócrates e de Passos Coelho, talvez. Os deuses concederam-lhe o poder, mas António Costa, se não quiser despertar a ira desses mesmos deuses, tem de perceber que é mortal; isto é, saber qual é a sua medida. Veremos se a sua ascendência bramânica lhe mostra os limites que são os seus.