Samuel (imagem daqui)
Dá-nos um rei que nos governe, como o têm todas as nações. (I Samuel 8:5)
Se procuro na minha memória qual o texto que fundamentou, em última análise, a minha visão do poder político, descubro que o essencial deriva do capítulo oitavo do primeiro livro de Samuel (Antigo Testamento). Perante a insistência dos anciãos de Israel, Deus, por mediação de Samuel, dá um rei aos israelitas, mas, como se pode inferir da leitura de todo o capítulo, dá-o como um castigo. O poder político é um lugar de punição, de exercício da violência e do mal. É um texto fundamental para se perceber a política e não se ter qualquer ilusão sobre a sua natureza.
A modernidade - fundamentalmente, desde o século XIX, embora isso não seja uma novidade moderna - apresenta uma estranha ambiguidade acerca do poder. Por um lado, talvez por uma meditação deste mesmo texto de Samuel, gerou doutrinas de abolição (anarquismo e marxismo) do poder político ou da sua restrição até a um Estado mínimo (neoliberais e libertários de direita). Por outro, os defensores destas doutrinas - talvez com a excepção dos anarquistas - batem-se com um extremo ardor pelo controlo desse lugar de exercício da violência legítima. E batem-se, em contradição com a sua avaliação negativa do Estado, porque deixaram imiscuir-se, nessa visão arcaica do Estado como punição, a ideia de que ele seria um lugar de distribuição do bem.
Esta ambiguidade é o horizonte onde nos movemos ainda nos dias de hoje, é ela que aquece os corações e desencadeia as paixões políticas e o conflito político, seja este regulado por regras democrático-constitucionais, seja regulado pela força sectária presente nas tiranias. Mas se soubermos dominar as nossas paixões e deitar um olhar frio sobre a natureza do poder, sobre a essência da acção daqueles que lutam por o alcançar ou manter - mesmo daqueles que nós presumimos do nosso lado - não podemos deixar de voltar ao velho texto de Samuel. Isso não quer dizer que não seja consolador deixar que as ilusão sobre o poder nos invadam e tornem a nossa vida mais tranquila. Na verdade, foram os israelitas que exigiram ser castigados.
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