Paul Signac - Le canal Saint-Martin, Paris (1833)
Crónica publicada no Jornal Torrejano online.
Os acontecimento de ontem, sexta-feira, em Paris deixaram os
ocidentais, mais uma vez, perplexos. E a perplexidade, tantas vezes repetida, é
o sintoma, o terrível sintoma de uma profunda incompreensão do fenómeno com que
estamos confrontados. O pior dos equívocos –
aquele em que muitos ocidentais, presos a categorias analíticas
completamente desfasadas e anacrónicas, continuam a cair – é o que confunde os
pretextos com a razão deste tipo de acontecimentos.
Os pretextos para estes acontecimentos podem ser quaisquer uns. A
intervenção ocidental no vespeiro do médio-oriente, a avidez e o cinismo desses
mesmos ocidentais na abertura de estradas para o mercado livre. Pretextos
também podem ser as situações sociais de muitos imigrantes. Isso, contudo, são
pretextos. Servem para detonar a acção, mas não são a razão última e
fundamental. Mesmo esses pretextos são cada vez menos enunciados como causa da
acção. Cada vez mais esta gente diz o que quer e ao que vem. Os ocidentais
ouvem, mas não acreditam. Pensam que são loucos, irracionais ou outra coisa
qualquer que permita explicar o terror sem ter de se olhar para os seus
verdadeiros motivos.
A razão do terror e da violência reside num outro lugar, num lugar que
nós, ocidentais, julgamos indisputável e, por isso mesmo, não conseguimos
perceber que seja esse o alvo e a razão desta crescente campanha e desta guerra
sem quartel. No cerne de tudo isto está a recusa absoluta da modernidade e dos
seus valores, isto é, do individualismo, da igualdade entre homens e mulheres,
da liberdade de expressão e de acção, do laicismo do Estado, da submissão de
qualquer crença ao exame crítico do tribunal da razão. Estes valores são, para
nós, tão inquestionáveis que pensamos que são universalmente respeitados. Esta
gente, porém, não quer isto e quer impor ao mundo a sua visão e o respeito pela
sua tradição. No cerne de todos estes acontecimentos está um conflito entre a
tradição e a modernidade.
A partir da últimas décadas do século XX o mundo intelectual ocidental
– o lugar onde se faz a interpretação dos caminhos que a vida e as sociedades
trilham – abriu um debate feroz entre os defensores da modernidade e os
defensores da pós-modernidade. A verdade, porém, é que já nessa época se
movimentavam, na sombra e aproveitando o descuido ocidental, as forças da
pré-modernidade, as forças anti-modernas, aquelas forças que, à excepção da
técnica, não aceitam nenhum dos princípios sobre os quais construímos o nosso
modo de vida.
Não apenas cresceram fora da Europa, como se instalaram no coração da
Europa. Estão dispostas a tudo e, crentes na razão divina, estão convictas de que
o tempo está a favor delas. O que estamos a assistir, há já muitos anos, é
apenas ao início de um processo. Começa por semear o medo e a desconfiança no
território do inimigo. E quanto mais tempo os ocidentais confundirem pretextos
com a razão deste tipo de acção, mais fracos ficarão e mais facilmente este
tipo de força crescerá no mundo. Esta gente sabe ao que vem, os seus dirigentes
fazem leituras e conhecem a história. Fundamentalmente, sabem o que não querem
e sabem o que querem. Como se viu ontem, mais um vez, não brincam em serviço e
não têm medo de morrer.
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