Rufino Tamayo - O homem perante o infinito (1950)
“Aquilo que
é contrário é útil; aquilo que luta forma a mais bela harmonia; tudo se faz
pela discórdia”. Neste fragmento do filósofo grego Heraclito, escrito há cerca
de 2500 anos e recolhido por Aristóteles na sua Ética a Nicómaco, está toda a sabedoria do mundo. Tudo o que existe
é tocado pela contradição, o conflito e a discórdia. Mesmo a mais bela harmonia
nasce da luta. O mundo das coisas e dos homens é conflitualidade sem fim e a
paz perpétua não passa de um belo mas infundado desvario.
A verdade deste
mundo é crua, amarga e sem cura. Nessas horas em que tudo se torna assim tão nítido,
há que voltar ao essencial. “Coloca uma palavra / no vale da minha mudez / e
planta florestas de ambos os lados, para que a minha boca / fique toda à
sombra.” (“Salmo 4”, in Tempo Aprazado).
Deixemo-nos
instruir pela voz da poetisa Ingeborg Bachmann. Num mundo onde todos se julgam
com direito à palavra, Bachmann mostra o silêncio como a nossa condição
primordial (no vale da minha mudez) e a palavra que habita a nossa fala como
uma dádiva vinda não se sabe de quem (coloca uma palavra /…). Esta é a humilde
condição do Homem: condenado, na origem, ao silêncio, recebeu em sua boca, como
um dom, a graça da linguagem. Na sua sabedoria, porém, a poetisa adverte: não
te orgulhes do que te deram e não julgues ser tua a palavra que a tua boca
profere. Por isso, os versos finais surgem como uma oração para que não se caia
em tentação de afirmar seu aquilo que foi depositado em sua boca (planta
florestas de ambos os lados / para que a minha boca /fique toda à sombra).
Colocar a
boca à sombra e deixar refulgir a palavra; escutar em vez de falar. Eis, para
os homens, a mais difícil das disciplinas. Já Heraclito o tinha compreendido
quando, no fragmento 19 recolhido por Clemente, diz “eles não sabem escutar nem
falar”. Ao perderem a disciplina da escuta, perderam a humildade essencial de
quem se sabe devedor da palavra que usa, e tornaram a linguagem não no sinal
que pacifica os homens pela comunhão do escutar e do dizer, mas numa arma de
arremesso no eterno conflito que o animal humano entretém por toda a Terra.
No ruído que
infesta o mundo, na multiplicidade de palavras com que os homens enchem o
espaço público e escondem a sua verdadeira e frágil condição mortal, há uma
rasura da verdade: a palavra, a fala, a linguagem, nunca é minha, nunca é
daquele que fala, mas um dom que se recebe para se transportar até à próxima
geração. A palavra foi-nos dada como sinal de um outro mundo para além do mundo
onde o conflito, a discórdia e a contradição reinam. O orgulho desmedido do
homem, todavia, apropriou-se dela como uma arma terrível contra o outro. Como o
burro de Heraclito, escolheu a palha em vez do ouro.
Para além da
sabedoria do filósofo há, porém, a sapiência do poeta. Não seria inútil colocar
a boca à sombra e retornar ao vale da mudez. (Jornal Torrejano, Setembro de 2005)
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