domingo, 31 de julho de 2016

Na boca de Chronos

A minha crónica em A Barca.

Chronos, o deus grego do tempo, devorava os seus próprios filhos. Isso era um mito, dir-se-á com alívio, e, para tranquilizar o coração, sublinhar-se-á que os deuses dos antigos mitos greco-latinos estão mortos. Por que razão, num tempo estival a convidar à indolência e aos banhos de mar, trazer a sinistra figura à luz do dia? Talvez porque essa história da morte dos deuses esteja mal contada, e Chronos continue bem vivo e insaciável. Talvez mais insaciável que nunca. Veja-se o que o deus fez à velha União Soviética e aos regimes que ela tutelava. Devorou-os num abrir e fechar de olhos. Gente com 40 anos mal se lembra que o mundo estava dividido entre duas grandes super-potências, naquilo a que se chamava Guerra Fria.

Mas o deus, insensato, não parou por aí. Todos nos lembramos ainda como a União Europeia, então CEE, era uma promessa radiante que parecia oferecer civilização, bem-estar, tolerância. Nas últimas décadas, mesmo à frente dos nossos olhos, o deus, esfaimado, foi deglutindo tudo isso, sem pestanejar. Também aquela ideia – mais desejada que vivida – de que o Ocidente era um lugar de paz e tranquilidade, sob o império da lei, é mastigada, em cada atentado terrorista, pelo voraz Chronos. Os europeus e os americanos tinham-se esquecido da guerra de 39-45 e, seduzidos pelo apolíneo véu da aparência, pensavam que a paz tinha vindo por mil anos. Não veio, o deus trabalha incessantemente para mostrar que uma ilusão é uma ilusão.

Uma outra convicção, a que nos é mais querida, prepara-se para ser abocanhada pelo insaciável deus. Trata-se da crença de que a democracia é o regime do futuro. Observamos, atónitos, o deus a levá-la à boca na Turquia, como aconteceu na Rússia, na Ucrânia ou nas infelizes experiências das primaveras árabes. Dentro do clube democrático da União Europeia, vemo-la ser cortada às tiras, na Hungria ou na Bulgária, para ser servida como acepipe. Tudo o que a história (essa máscara de Chronos) produz, a história o leva. Sentados à beira-mar a olhar o mundo, assistimos, impotentes, ao florescimento dos Trump, das Le Pen e de todos os outros que parecem ser legião. Também a democracia irá ser tragada pela boca do tenebroso deus.

sábado, 30 de julho de 2016

Diário de um banhista - II

Cecilio Pla Gallardo - Bañistas

Continua a minha aventura no reino de Posídon. Hoje levantei-me cedo, olhei para o céu, um sol esplendoroso, fiquei em pânico. Será hoje? Uma volta por aqui e por ali, visita ao blogue, o post do dia. Propícios, os deuses cobrem o céu de nuvens. Respiro mais facilmente. O tempo melhora a olhos vistos, penso. Pego nas Metamorfoses, de Ovídio, acabadas de sair, na excelente colecção da Cotovia, em tradução de Paulo Farmhouse Alberto. Perco-me nas transformações. Ingénuo, ingénuo que sou. Os deuses são caprichosos, mas enviam-nos sinais. Metamorfoses não de humanos em aves ou vacas, mas transformações do tempo. O que tinha amanhecido ensolarado metamorfoseara-se em nuvens escuras e densas, mas nada neste mundo mutável é seguro. As nuvens dissiparam-se e lá veio o sol. Não tardou muito para me perguntarem, insidiosamente, se não ia à praia, a emoção tomou conta de mim. Fiz-me despercebido. Prefiro o Ovídio, mas calei-me. Lá foram pisar a areia e tomar banhos de sol e mar. Fiquei nas Metamorfoses e na música de Giovanni Pierluigi da Palestrina. Lá fora o silêncio deixa vir até mim o marulhar do mar. Adoro a praia. (averomundo, 2007/08/02)

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Rumores de Maio - 4. Memórias

Claude Monet - Sea Study

4. Memórias

Um canapé cansado e sem memória,
a pedra gasta e fria onde
sentado salmodiava.

Se um verso chegava, a maré
erguia-se no estuário do verão
e as ondas do mar eram saias, saias
vibrantes na vertigem do vento.

(Rumores de Maio, 1977)

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Um mártir da liberdade

Paul Gauguin - The Yellow Christ (1889)

A execução do padre Jacques Hamel, numa igreja de Saint-Étienne-du-Rouvray, perto de Rouen, França, não foi mais um atentado terrorista. Degolar um velho padre na Igreja perante os fiéis que ali se encontravam para a celebração da Eucaristia, foi um acto simbólico contra a fonte das nossas liberdades e dos valores ocidentais. Repito, o cristianismo – fundamentalmente, o cristianismo católico mas não só – é a fonte das nossas liberdades e dos nossos direitos, é a origem, juntamente com os valores clássicos greco-latinos e a ciência moderna, da nossa visão do mundo.

Recorro a uma autoridade insuspeita, a Jürgen Habermas, o filósofo alemão de esquerda, ateu e neo-marxista. No diálogo que manteve com Jospeh Ratzinger, Bento XVI, em 2004 e transformada em livro em 2005 (The Dialetics of Secularization), Habermas chama atenção para o facto do cristianismo ser o fundamento último da liberdade, dos direitos humanos e da civilização ocidental. E afirma que “não dispomos de opções alternativas. Continuamos a alimentarmo-nos desta fonte”. E acrescenta que os Estados liberais devem salvaguardar “os seus recursos culturais e morais, dos quais a religião faz parte”.

Tornou-se moda, nas nossas sociedades, desprezar o cristianismo, ridicularizar as Igrejas – em especial a Igreja Católica – e congratularmo-nos com o ocaso que parece atingir o cristianismo na Europa. Não se percebe que com isso estamos a minar o fundamento mais poderoso das liberdades ocidentais, a fonte dos grandes valores que são os nossos – e nos quais cabe a separação Igreja-Estado e a própria liberdade de não crer – e o cimento último que nos permite uma identidade e uma diferenciação no concerto das grandes culturas do mundo.

Nós não compreendemos ou não queremos compreender isto, mas há quem no mundo islâmico o tenha compreendido e parece não hesitar em abrir brechas num mundo que despreza as suas próprias origens. Há um velho sonho em certos sectores do Islão – e que não serão tão minoritários quanto nos queremos convencer – de uma comunidade única da espécie humana sob a lei do Profeta. O grande inimigo deste projecto foi sempre o cristianismo. Porquê? Por uma interpretação da relação do homem com Deus diametralmente oposta. No Islão, os homens são servos. Servos de Deus e submetidos aos seus representantes. No cristianismo, a relação com Deus não visa a servidão mas a liberdade. Foi esta liberdade que, ao longo de séculos, se foi descobrindo, desenvolvendo e que culminou no Estado de direito.

É por isso que a execução de Jacques Hamel o transforma não apenas num mártir da Igreja Católica, mas num mártir da liberdade. Alguém que não pode ser visto de forma diferente da daqueles homens que deram a sua vida no terrível desembarque nas praias da Normandia para que se pusesse fim ao terror nazi. Não sei se nós ocidentais compreendemos isso. Não sei se nós ocidentais percebemos que a destruição do cristianismo – um dos fins do radicalismo islâmico – arrasta consigo o conjunto de valores que sobre ele foram erguidos. Hoje em dia parece acreditar-se que se destruirmos os alicerces de uma casa esta ficará de pé. Não ficará, não sobrará pedra sobre pedra.

terça-feira, 26 de julho de 2016

Livro do Êxodo 19. Uma figura lívida fulgura na noite

Eugène Carrière - Jovens Mães (1906)

Lívidas figuras na escuridão se desenham, lívidas figuras como mães perdidas na névoa de Novembro, lívidas figuras de tudo se acercam, como regato de outro regato, ou os dias aos dias se prendem. Neles – esses dias de tão grande lividez – escrevo sobre a brancura exausta da areia, sobre os mil grãos que, como planetas desmemoriados, povoam as praias de onde as estrelas, tão brilhantes na sua cintilação, partem vagarosamente para o palácio negro dos meus versos. Depois, olho o mar e vejo virem ondas, e as palavras soçobram na água, as sílabas a desfazer-se com gemidos inefáveis e um odor a naftalina, a casas antigas e pobres, tomadas pelo pavor da memória. Sobejam letras órfãs e lágrimas correm e tumultuam a face, ganem na floresta, se para o tormento da luz os segredos, lívidas figuras, expulsam.

Assim como vos levei sobre os pássaros da tarde, e vos trouxe a mim, descerei no dorso de um animal e ao caminhar derrubarei flores, jardins de pedras, palavras de ócio, poemas, espelhos despolidos, rasgados em cada verso que a outro se segue. Ah esses poemas tão sem préstimo, tão desfasados da língua, tão incapazes de um sinal, de um rosa, de uma mão aberta sobre o coração. Não cantam, esses poemas. Não indicam e quando falam, ainda a nuvem fica por dizer, mesmo se iluminada, mesmo se crua. Um gesto, o esgar da garganta, o débil sopro da voz e não mais do que pó o poema é. Uma figura lívida fulgura na noite, tão lívida na noite estrelada, versos que se prendem noutros versos e soçobram na areia batidas pelo vigor das ondas, pelo vento marítimo, para a dor que deles se desprende e inclina o coração para a eternidade.

O que está em causa

Ivonne Sánchez Barea - Islam (1999)

Estes últimos tempos têm sido férteis em ataques terroristas. Uns levados a cabo por militantes claramente comprometidos com a jihad, outros por pessoas desavindas com a vida e que encontram, numa súbita adesão aos métodos terroristas, uma saída para a perturbação que as acomete. Este último tipo de atentados – onde se podem inscrever os casos de Orlando, nos EUA, ou de Nice, em França – serviram para uma estranha leitura do que se está a passar. António Guerreiro (AG), no Público, depois de verberar a «lengalenga ciclicamente repetida do “ataque aos nossos valores” e aos lugares simbólicos da nosso “modo de vida”, praticados pelos “inimigos do Ocidente” e até da “humanidade”», defende que o que é preciso ser pensado é «o inconsciente terrorista e aquilo que dá lugar a uma “guerra de subjectividades”». E traz à colação a ideia de Alain Bertho de estarmos não perante uma radicalização do Islamismo, mas «confrontados com a islamização da revolta radical, uma  estranha situação em que o Islamismo se torna uma maneira de exprimir uma recusa do mundo e até um ódio de si».

O problema trazido pelo retorno do Islão à cena mundial é de tal ordem que os ocidentais – à direita e à esquerda –, moldados todos eles nos valores da Modernidade e do Iluminismo, são completamente incapazes de o compreender. É verdade que AG tem razão ao chamar lengalenga às reacções oficiais perante cada carnificina, uma espécie de confissão da impotência que se tem perante aquilo que não se conhece e com o qual não se sabe lidar. Também é verdade que AG não cai na lengalenga marxizante de ver neste conflito mais um episódio da luta de classes. A sua incompreensão do fenómeno, porém, é tão radical quanto a da direita ou da esquerda tradicional. Ao afirmar que o que precisa de ser pensado é o “inconsciente terrorista”, aquilo que dá lugar a uma “guerra de subjectividades”, faz deslizar o problema da área política para a da terapia. O que merece ser pensado, segundo ele, seria então os processos de subjectivação que levam certos indivíduos a uma revolta radical, a qual encontra, de forma acidental, o islamismo para expressar o seu ódio ao mundo ou a si mesmo. O que precisa de ser pensado é a fonte inconsciente de uma patologia.

Por interessante que seja compreender as motivações que conduzem certos indivíduos a esse tipo de actos, isso não esconde a importância fundamental do Islão ter emergido na cena mundial e de transportar consigo um conjunto de princípios que fundamentam tudo aquilo que se está a passar. Os ocidentais – de esquerda e de direita – não perceberam nada do que se passou na revolução iraniana. Não perceberam nada do que se passou nas primaveras árabes. Não estão a perceber nada do que se está a passar na Turquia, tão entretidos que estão com teorias sobre o carácter autoritário (e narcísico) do senhor Erdogan. Para lá do domínio das subjectividades, há um domínio objectivo que age e está disposto a pôr o mundo a ferro e fogo. Apesar de ser uma lengalenga falar do “ataque aos nossos valores” e aos lugares simbólicos da nosso “modo de vida”, praticados pelos “inimigos do Ocidente”, isso não deixa de ser verdade. Não são apenas as elites religiosas radicais do Islão que se opõem ao nosso modo de vida. São também as moderadas e, como é mostrado todos os dias (embora os ocidentais não o queiram ver), as grandes massas de fiéis.

O que está em causa, em primeiro lugar, é que o Islão (isto é, muito do clero islâmico) – na sua diversidade – jamais poderá aceitar isto: “lluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem (Kant)”. O nosso “modo de vida”, por lengalenga que seja a sua invocação, funda-se nisto, neste reconhecimento de que cada um tem o dever e o direito de pensar por si mesmo e, sendo assim, de orientar a sua vida como muito bem entender, desde que não colida com iguais direitos do outro. Este, porém, é apenas um aspecto do problema. Há um outro e está ligado à história do próprio Islão, da sua auto-compreensão – a qual persiste inabalável – como a única religião verdadeira, o que lhe dá o fundamento para agir no mundo para impor a verdade, isto é, que dá cobertura aos seus projectos políticos. Que um padre católico tenha sido degolado, no dia de hoje, por alguém que não tenha conseguido adequar a sua subjectividade ao mundo onde vive ou por militantes radicais esclarecidos, é irrelevante. O que importa pensar não são os processos de construção das subjectividades mas o conjunto de crenças colectivas, político-religiosas, que alimentam o ódio à ideia de que cada um tem o direito de pensar por si mesmo.

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Diário de um banhista - I

Paul Cézanne - The Bather (1855-57)

Início hoje a republicação dos treze (um número cabalístico, por certo) pequenos episódios do Diário de um banhista, escrito em 2007 e postado no meu antigo blogue averomundo, que já entregou, há muito, a alma ao criador. Confirmo que o meu espírito de banhista não se alterou, talvez algumas facetas se tenham acentuado, só isso. Comecemos então.

Adoro a praia. É um amor enternecido e respeitoso, um amor feito de longas distâncias e cortesias reverentes. Estou a banhos desde domingo passado e, felizmente, ainda não pisei areia. Não se deve pisar aquilo que amamos. Há movimento cá por casa, gente que vai até à beira-mar, volta crestada pelo sol, enfarinhada de areia. Comenta-se a excelência do tempo, do sol, da temperatura, da água… Eu acredito, acredito em tudo piamente, mas a minha devoção a tanta praia impede-me estes excessos. Sacrifico-me por amor e fico em casa. É duro, mas o amor a tudo justifica. (averomundo, 2007/08/01)

domingo, 24 de julho de 2016

Rumores de Maio - 3. Oração

Santiago Rusiñol Prats - La Oración (1890)

3. Oração

O tempo revoltoso
e as tuas mãos,
as tuas mão erguiam-se,
eram signo e sinal
um gesto,
a oração silenciosa
a domar o vendaval.

(Rumores de Maio, 1977)

sábado, 23 de julho de 2016

Contentar-se em olhar

Tintoretto - The Miracle of St Mark Freeing the Slave (1548)

Sosícrates conta, nas suas Sucessões, que Leão, tirano de Fliunte, perguntou [a Pitágoras] quem ele era: «Um filósofo», respondeu. [Pitágoras] comparava a vida aos grandes jogos. Na multidão que neles está presente há três grupos distintos: uns vêm para lutar, outros para fazer comércio, e os outros, que são os sábios, contentam-se em olhar. Também na vida, uns nasceram para ser escravos da glória, outros do engodo do lucro, e outros, que são os sábios, apenas visam a verdade. (Diógenes Laércio, “Vidas, doutrinas e sentenças de filósofos ilustres”)

O triunfo dos escravos. A nossa sociedade, talvez como todas as outras, é o lugar onde os escravos triunfam. É isso que aprendemos ao ler as palavras atribuídas a Pitágoras. A glória da acção ou a busca do lucro são, na visão pitagórica, formas de escravatura. Nesta ideia está contida também a ideia de emancipação. Uma estranha emancipação. Esta não vem da acção mas do olhar, do contentamento que nasce de observar aquilo que se passa. O olhar surge relacionado com a verdade. Esta é aquilo que se revela aos nossos olhos. Só ela emancipa da escravatura, do estar submetido à ânsia da glória ou ao império do lucro.

Muita gente pergunta por que motivo tantos ocidentais, apesar de tudo aquilo que a nossa actual civilização lhes concede e que nenhuma outra teve ou tem a capacidade de conceder, são tão críticos com o modo de vida que é o nosso. Depois, procuram razões políticas ou outras, razões essas que, invariavelmente, se fundam nos últimos dois séculos de história. Não percebem que a fonte desse descontentamento radica na velha sabedoria pitagórica. Apesar da deslumbrante capacidade técnica e da riqueza, mesmo dos mais pobres, muitos ocidentais continuam a desconfiar que a nossa sociedade é um lugar de pura escravatura. Ao tornar o engodo do lucro e a glória do poder nos únicos objectivos dignos proclamou-se a escravatura – uma escravatura dourada e cómoda – no fim último de qualquer homem. Contra isso, porém, não há nada que se possa fazer a não ser, como ensinou Pitágoras, olhar. Só o olhar pode emancipar.

sexta-feira, 22 de julho de 2016

Aprender com a Selecção de futebol

A minha crónica quinzenal no Jornal Torrejano.

Depois dos dias de euforia, vale a pena olhar para o triunfo de Portugal no Europeu de futebol. Esta vitória traz consigo um conjunto de ensinamentos que vale a pena meditar. Comecemos com algumas questões menos agradáveis. Portugal tinha o melhor grupo de jogadores do Europeu? Não, não tinha. Portugal foi a selecção que praticou o melhor futebol? A resposta terá de ser negativa, pois o futebol dos portugueses esteve longe de ser espectacular. E, no entanto, não se pode dizer que Portugal foi um vencedor injusto ou que o foi apenas por sorte. Não vou falar de futebol, mas da atitude que esta selecção ostentou e que a levou ao êxito.

Em primeiro lugar, o princípio de realidade. Fernando Santos teve a perspicácia de adaptar, sem qualquer deriva utópica, o futebol praticado aos jogadores de que dispunha. Com uma ou outra excepção, os futebolistas portugueses eram bons, mas não excepcionais. O futebol escolhido foi um reconhecimento das nossas carências e uma adaptação criativa a essas carências. Inventou-se o possível em vez de se naufragar no impossível. De seguida, o seleccionador criou uma verdadeira equipa. Conseguiu que o todo, tocado pela interajuda, fosse muito mais que a mera soma das partes. Esses espírito de equipa foi fundamental para o êxito. Depois, foi definido um objectivo em que os envolvidos acreditaram. A fé – e não importa se é religiosa ou laica – é fundamental. Ninguém triunfa se não tem fé na possibilidade de triunfar. Em quarto lugar, a humildade de todos. Foi essa humildade que alimentou a persistência, mesmo quando as coisas correram mal, como na fase de grupos. Por fim, a assertividade. Apesar de realista e de humilde, Fernando Santos disse sempre e com clareza ao que vinha.

Agora que os festejos, depois da entrega das comendas pelo Presidente da República, começam a esmorecer, seria bom que os portugueses olhassem objectivamente para o triunfo da sua selecção de futebol e compreendessem o conjunto de virtudes (e não me refiro às virtudes técnico-tácticas, das quais pouco percebo) que, sob o comando de Fernando Santos, Portugal ostentou. Se cada empresa, se cada escola, se cada instituição pública, se cada um de nós estiver disposto a aprender com a selecção de futebol, podemos esperar que Portugal ultrapasse, de uma vez por todas, o pântano da mediocridade onde se afunda há muito. O problema de Portugal não é tanto um problema de recursos, mas de atitude. O país bem pode aprender com a selecção de Fernando Santos.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Livro do Êxodo 18. As verdes colinas do Outono

Caspar David Friedrich - Hill and Ploughed Field near Dresden (1824)

Já não há quem se multiplique, feneceu a aritmética e os cálculos foram à sombra abandonados. Um esquecimento tão esquecido cresceu obsessivo e obsessivo se ergueu, pegou em suas mãos vazias e com elas desenhou um milhafre ferido, transido na dor, fechado no grito a que o voo o impelia. As pústulas eram tão perfeitas no arco pelo peito desenhado. Se o pássaro respirava, a própria perfeição o impelia, enquanto o caminho decrescia e a dor era um mar a lavrar sob a pele tumefacta, dos pulmões o movimento escondia. E tu, preso na tua solidão, és esse milhafre levado pelo vulcão da dor, és o pássaro esquecido que habita o som das palavras e as faz chegar a longínquos ouvidos, tão incautos que ouvem o rumor das tuas palavras no murmúrio das asas da grande ave infância quando, exausta, se inclina na verdura acobreada do Outono.

Agora que chegaste aqui, a este lugar sem nome, sob esta luz tão baça, queima os livros, a parca juventude os deu, acende com eles uma fogueira; e aqueça ela, no Inverno, o frio pensar. Deixa arder, em feroz combustão, conceitos, a tudo recolhem, juízos, uma ordem vesperal trazem, raciocínios, aí encorpa a cega loucura. Vem, ó pássaro ferido pelo fulgor das campinas, falar não a tigres, mas a homens sentados nas espessas esplanadas da cidade. Desenha-lhes um carro cego e, com inquieto dedo, mostra-lhes o caminho onde gritem de pavor, tocados pela mansidão debruada pelo cântico dos limoeiros. Ó exaustas sentenças, cansadas equações, leves chagas cobertas pelo pó das gramáticas: cantem a raiva rosada pela álgebra, o rasto eterno no fogo das colinas, verdes de tanto Outono.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

A desolação da democracia

Georgia O'keeffe - Lake George (1924)

A deriva turca a que assistimos sublinha uma mudança de matriz política global. Nos anos 80 e 90 do século passado, não apenas os regimes democráticos estavam a crescer como a democracia - tal como vivida na Europa - era o modelo que muitos povos e elites oposicionistas, sob regimes ditatoriais, desejavam para as suas sociedades. A democracia, segundo a pulsação da época, parecia o futuro inevitável para o qual tendiam os regimes autoritários espalhados por todo o mundo. Isto devia-se ao prestígio dos regimes democráticos alicerçado no respeito pelas liberdades, no desempenho das suas economias e na igualdade perante a lei. Hoje em dia, a democracia é uma paisagem desolada à qual ninguém parece aspirar. O que terá contribuído para degradar a imagem dos regimes livres e representativos? Há múltiplas causas. Vale a pena olhar para duas.

Em primeiro lugar, o exemplo chinês. A China tornou patente, de forma ostensiva, que pode não haver conexão entre desenvolvimento económico e democracia. Pelo contrário. Com a cumplicidade das potências democráticas, com os EUA e a União Europeia à cabeça, a China tornou-se um caso de sucesso económico sem que a férrea ditadura do Partido Comunista Chinês tenha sido aliviada. Ela é um exemplo que seduz muitos líderes políticos. Em segundo lugar, as experiências recentes das chamadas primaveras árabes, tentativas de transferir algumas experiências europeias para um mundo não ocidental, desembocaram em cenários mais ou menos tenebrosos, desde o Egipto até à Síria, passando pela Líbia, não esquecendo o pesadelo iraquiano, desencadeado ainda antes. Estas duas experiências globais, para não falar da evolução musculada da Rússia, encontraram ecos dentro de alguns países da própria União Europeia.

Esta desolação democrática atinge ainda os próprios regimes democráticos mais antigos, nos quais crescem movimentos xenófobos de características marcadamente autoritárias. Se nas décadas finais do século XX, a democracia se apresentava como a ideia reguladora da actividade política, o século XXI dá os seus primeiros passos - estará na fase da adolescência - sob a égide da autoridade. O que se está a passar na Turquia inscreve-se já na nova matriz e traz para a fronteira mais sensível da União Europeia o modelo autoritário, o qual, conjugado com a deriva russa, o terrorismo islâmico e a crise dos refugiados, irá exercer uma enorme pressão sobre as democracias e um crescente fascínio sobre os eleitorados ocidentais, que se sentirão cada vez mais tentados a responder na mesma moeda. Chegámos ao tempo em que a democracia representativa deixou de ser uma evidência política. Chegámos ao tempo em ela exige que aqueles que acreditam nela têm de voltar a bater-se por ela. Em primeiro lugar, porque é aí que se joga o essencial, no plano das ideias.

terça-feira, 19 de julho de 2016

Os clássicos e a actualidade


14. É clássico o que tiver tendência para relegar a actualidade para a categoria de ruído de fundo, mas ao mesmo tempo não puder passar sem esse ruído.

15. É clássico o que persistir como ruído de fundo mesmo onde dominar a actualidade mais incompatível. [Italo Calvino (2009). Porquê Ler os Clássicos? Lisboa: Teorema, pp. 12]

Eu diria ainda outra coisa. É clássico aquilo que nos permite ler o ruído da actualidade como ruído e como actualidade. É clássico o que nos permite perceber que a cacofonia não é mais do que isso. É clássico aquilo que deixa ver o instante que impera na actualidade contra a sombra de eternidade que se desprende dos clássicos. Mais, os clássicos ainda permitem outra coisa. Permitem vislumbrar aquelas obras que, sendo fruto da actualidade, trazem uma marca genética que as liga aos clássicos, e que assim têm todas as condições de filiação para se tornarem também eles parte da família, mesmo que aparentemente sejam filhos rebeldes. Tornar-se-ão filhos pródigos. (avermundo, 2009/10/23)

domingo, 17 de julho de 2016

Rumores de Maio - 2. A velha faia


2. A velha faia

A velha faia, a sombra projectada,
sonhos de vento sobre o vazio,
a ave que poisa serena e cansada.

Entre ramos, desenham-se estrelas,
e os olhos presos na água do rio
abrem-se e adormecem ao vê-las.

(Rumores de Maio, 1977)

Nice, duas lições

Francisco de Goya - Casa de Locos (1812-14)

Voltemos ao atentado de Nice e a duas lições que ele traz consigo. Consta que o autor do atentado, o franco-tunisino Lahouaie-Bouhlel, era um pessoa desequilibrada e que se terá radicalizado de forma muito rápida (leia-se: os serviços secretos não deram por isso). A ideia de que o atentado foi um acto de loucura tem em si mesma um perigo: transforma um acto político num mero acto psicológico de foro privado. Isso poderia ser reconfortante para quem teima em não perceber o que está em jogo. A questão é, todavia, muito pouco de reconfortante. Sabemos agora que qualquer desequilíbrio emocional pode encontrar a sua solução na prestação de um serviço político ao radicalismo islâmico. As organizações radicais islâmicas, por muito que custe a admiti-lo, não são um bando de loucos. São dirigidas por agentes racionais, que têm objectivos políticos (que desconhecemos) e que os perseguem, procurando atingi-los com o máximo de eficácia. A utilização do desequilíbrio existencial de muçulmanos a viver na Europa faz parte dessa mesma eficácia. O perigo não vem apenas daqueles que se radicalizam através da pregação de clérigos radicais ou da propaganda jihadista. O perigo vem de qualquer um que, por motivos sociais ou psicológicos, se desacertou da vida. O campo de recrutamento parece não ter limites. Primeira lição.

Uma das coisas que foi salientado neste atentado é que ele ocorreu numa cidade secundária, não numa das grandes cidades francesas. É verdade que o atentado é escolhido para um dia muito especial para os franceses, mas se ficarmos pela dimensão simbólica do acontecimento deixamos de ver a informação que ele contém. Ele mostra-nos que qualquer sítio, por insignificante que seja, pode ser um alvo e um alvo espectacular. A espectacularidade destas acções não se deve ao lugar onde ocorrem, nem ao número de mortos nem à forma como são executadas. A espectacularidade deve-se a que elas são transformadas, pelos órgãos de comunicação social, num espectáculo universal. A transmissão de imagens dos atentados e da dor que eles provocam é um dos efeitos que o radicalismo islâmico pretende, tirando assim partido da liberdade de informação. É esta liberdade de tudo mostrar que tem a virtualidade de tornar qualquer local na Europa ocidental um alvo potencial e incontrolável. Segunda lição.

sábado, 16 de julho de 2016

Nice e Turquia


O atentado de Nice e a tentativa frustrada de um golpe militar na Turquia são duas faces de um mesmo problema. Esse problema é o da relação do mundo islâmico com a Modernidade e o Iluminismo. O pesadelo de Nice inscreve-se na já vasta lista de atentados com que o islamismo radical tenta assustar, em todo o mundo e não apenas no Ocidente, as populações, como forma de impor, pelo medo, a sua visão do mundo. Quanto à tentativa de golpe na Turquia, ainda é bastante obscura a sua origem. Duas teses parecem em confronto. Por um lado, uma operação militar ligada aos valores da Turquia moderna trazidos por Mustafa Kemal Atatürk, marcados pela a abertura ao Iluminismo e ao carácter secular do Estado. A segunda tese, proveniente do núcleo central do poder turco, acusa o imã Fethullah Gülen e o seu movimento Hizmet, um movimento conservador e antigo aliado de Erdogan, de estarem na origem do golpe. Seja qual for a realidade, o problema gira sempre em torno da relação entre a Turquia e os valores provenientes da modernidade e do Iluminismo.

A Modernidade e o Iluminismo – com a sua visão laica do Estado, o respeito pelas liberdades individuais, a igualdade entre homens e mulheres – são criações ocidentais. São elas que, de uma forma ou outra, têm moldado o mundo, tendo sido adoptadas – em maior ou menor extensão – pela generalidade dos países, os quais têm vindo a substituir as formas de poder tradicionais por formas de poder modernas. O lugar de grande resistência aos valores modernos e iluministas está nas sociedades islâmicas. A excepção foi precisamente a República da Turquia de Atatürk, mas que, paulatinamente, tem vindo a afastar-se desses valores. Todo este terrível espectáculo de dor e sofrimento que o terrorismo islâmico espalha pelo mundo e a convulsão militar na Turquia estão ligados à recusa destes valores. E no centro desta recusa encontra-se o problema religioso. Com a Modernidade e o Iluminismo, a religião torna-se um problema de consciência dos indivíduos (Locke na sua Carta sobre a Tolerância, ainda no século XVII, explica-o de forma muito clara). A distinção entre governo civil e religião torna-se central. É isto que, com as suas consequências sociais e éticas, é recusado por grande parte do mundo muçulmano. Podemos encontrar as explicações que os nossos preconceitos quiserem, mas a questão central encontra-se aqui e, diga-se, não é de fácil resolução. Veja-se o exemplo das chamadas Primaveras Árabes. Há problemas que podem não ter solução. Este pode ser um deles.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Livro do Êxodo 17. A grande estiagem de Fevereiro

Caspar David Friedrich - Town at Moonrise (1817)

Apagaram-se os lilases quando à porta bateram e a noite se cerrou, tão cerrada e tão negra, ocultando regatos, areias, pedras brancas e lisas, os primeiros passos, ainda precários e sonâmbulos, então os deram. Pelos corredores, os animais degolados passavam enlouquecidos e nas ruas, sempre ventosas e inquietas, projécteis de aço a incendiar silêncios no coração. Os tumultos feriam o peito, o medo o assediava, e por isso tomaram uma pedra e a puseram debaixo dele e logo da boca um canto vagaroso cresceu, inundou de archotes os pátios, ateou bandeiras pelas portas que bateram, empurradas pelas giestas, do silêncio se desprendiam. Na mecânica celeste, nas órbitas, os planetas as desenhavam, tudo se tornara movediço, rota incerta, aterrada fúria nos campos onde o caos silente se estende.

Os dedos despediram-se das mãos e partiram tocando searas, fendendo musgos, abrindo
sulcos de saliva e sangue, sanguíneo sangue era o desses dias, no veludo espesso e invernoso, a vida frágil cobre. Passavam carros nocturnos, expeliam relâmpagos, a velha luz caída dos céus, e deixavam troar os motores acordando a noite, fazendo gritar das crianças a garganta inquieta, a voz, ao brotar na noite, as empalidecia. Um zumbido misturava-se no ar da cidade, era Fevereiro, e as chuvas ainda não haviam descido sobre os telhados de zinco. O betão arfava ressequido e as janelas estremeciam, se mãos cintilantes, ao coscorar na pressa aziaga da dor, não lhes davam por alimento água. Pura, incolor, sem mácula de sabor ou som, água.

Preso ao mastro, um animal olhava a fúria e despedia-se da vida cantando as regras, a tarde lhas dera. Das mãos, os dedos tinha perdido e das flores esquecera os lilases, como se tivessem secado e ressequidos entrassem na noite, hermeticamente fechados, lembrando os animais degolados, na boca dos que cantavam corriam, a gritar inocência, um manto de vergonha lhes cabia. Um estampido soou. Escondidos, abriam-se ao som pela porta do silêncio. Depois, levantavam os pés, em movimento lento, e invadiam, ao erguer-se a lua, as imensa pradarias da saudade. Iam de coração aberto e coberto de pústulas. Os olhos ressequidos esperavam a torrente das lágrimas que, ao chegar, eram recolhidas em pequenos cálices e bebidas até ao fim, um fim final perdido no azedume, a vida sempre o traz, entre pomares de alegria e cumes sombreados de esperança.

terça-feira, 12 de julho de 2016

A sede que se deseja


Este belíssimo anúncio à cerveja Sagres, retirado com a devida vénia do Rua Dos Dias Que Voam, um blogue cheio de coisas destas e a visitar com regularidade, evoca em mim a primeira experiência com a cerveja (bebida da qual não sou particular adepto). Não me refiro à experiência de beber cerveja, mas de admirar a própria garrafa. Uma garrafa castanha com os símbolos e o lettring pintados a creme. Julgo que a tampa, carica, era cinzenta ou prateada com Sagres escrito a vermelho e naquelas belas letras cursivas que se vêem na imagem. Há toda uma elegância, fundada num quase despojamento de elementos icónicos, que contrasta com o ruído visual que foi crescendo ao longo dos tempos. Nas raras ocasiões que se me coloca a questão de beber uma cerveja, nunca me passa pela cabeça preterir a Sagres pela concorrência. Isso deve-se, porém, à peça de arqueologia aqui representada, a velha garrafa da Sagres. É o que faz ter espessura temporal. O slogan também é perfeito, a sede que se deseja. Há imagens que são verdadeiros arquétipos. (averomundo, 2010/01/07)

Rumores de Maio - 1. Maio

Albert Rafols Casamada - Mayo (1978)

1. Maio

Suspenso na claridade, Maio é uma aurora,
a rasura férvida ateada nos campos
a manhã ainda fria a rasgar
a cidade presa ao porão da primavera.

Leves, leves, pássaros poisam pelas ruas,
e um corvo descreve na curva carbonizada
um presságio ardente, a luz no fundo das trevas.

Sobre as ruas, relâmpagos sonolentos
cobertos de sede e sangue e silêncio.
Maio rumoreja e rumina a madrugada.

(Rumores de Maio, 1977)

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Futebol, comunidade e política


Um acto político que teve o apogeu em Paris, no jogo contra a França, e se prolonga no dia de hoje e, muito previsivelmente, durante muito tempo. Algumas pessoas - à direita e à esquerda - olham com desprezo para o fenómeno  do futebol, pois, entendem, é uma forma de alienação das grandes massas, que as não deixa tomar consciência real da situação em que se vive. O futebol seria uma forma de negação da política, de desvio das pessoas da realidade para o domínio da ilusão e das aparências. Não compreendem, porém, a natureza essencialmente política que o futebol possui e que se está a manifestar, nestas horas, de forma exuberante. E, claro, não me estou a referir ao eventual aproveitamento da vitória portuguesa pelos actores políticos do momento.

O futebol tem uma natureza complexa. Ele, como referimos num post anterior, é o modelo das sociedades actuais. Surpreendentemente, porém, ele é também um dos últimos bastiões da ideia de comunidade. A vitória de Portugal no Euro-2016 trouxe ao de cima um aspecto político que é pouco visível. Pessoas de direita e de esquerda, crentes e não crentes, ricos e pobres, homens e mulheres, enfim toda a gente se uniu em torno da selecção. O que este acontecimento nos diz é que todos, com as nossas diferenças e antagonismos de interesses, queremos continuar a ser portugueses. Ao celebrar a vitória de Portugal estamos a afirmar a nossa vontade de que a comunidade política de que fazemos parte persista no tempo. O futebol, ao nível da selecção, toca na dimensão mais fundamental da política: a da persistência da pólis. Sem esta, nenhuma outra actividade política tem razão de ser. Aquilo a que se está a assistir não é a um delírio colectivo de alienação da realidade, mas a uma manifestação exuberante do nosso querer e do nosso prazer da existência de uma coisa que tem o nome de Portugal.

É uma manifestação de nacionalismo? É. E o nacionalismo não pode ser uma coisa perigosa? Pode, mas não nestas situações. O nacionalismo é perigoso quando nasce de uma lógica de confronto dada nos conceitos de amigo e de inimigo. Foi esse nacionalismo que levou povos inteiros a precipitarem-se na primeira Guerra Mundial. Ora, o futebol transforma a lógica do inimigo na lógica do adversário. A França não era, ontem, a nossa inimiga. Era apenas o nosso adversário. Ganhámos à selecção francesa, mas não estivemos em guerra com a França. O futebol - noutros lados poderão ser outros desportos - permite gerir sabiamente o sentimento de pertença. Faz reviver o espírito de comunidade, sem que ele se transforme num nacionalismo agressivo que vê inimigos por todo o lado. Querem fenómeno mais político que este?

domingo, 10 de julho de 2016

Estrutura cerebral e posição política

Giorgio de Chirico - The Child's Brain (1914)

(…) Um grupo de investigadores de Londres, liderados por Geraint Rees – e incluindo o actor Colin Firth – explorou a relação entre as ideologias políticas e o volume estrutural do cérebro. Isto é, exploraram a possibilidade de o cérebro dos liberais [esquerda] e dos conservadores [direita] diferir na sua estrutura física. (…) A equipa de investigadores observou que as imagens dos cérebros dos liberais mostravam mais massa cinzenta no córtex cingulado anterior, a região do cérebro conhecida por estar envolvida na detecção e resolução de conflitos cognitivos. As imagens dos cérebros dos conservadores mostravam mais massa cinzenta na amígdala, que está envolvida no processamento de emoções, incluindo medo e recompensa. (…) Pode ser que as diferenças na estrutura e na actividade do cérebro contribuam para a emergência de diferenças ideológicas – ou que a adopção de determinadas perspectivas ideológicas  condiciona a estrutura e as funções do cérebro ao longo do tempo. [John T. Jost (2016), “O cérebro e as ideologias”, in XXI (Revista da Fundação Francisco Manuel dos Santos), n.º 7, Jun-Dez 2016, p. 78]

A relação entre a estrutura do cérebro e a ideologia política, ao descobrir-se a existência de correlação entre a estrutura cerebral e a ideologia política, permite fazer uma interrogação muito mais essencial do que aquelas que se levantam nos estudos que, de forma sistemática, mostram que – estatisticamente, note-se – as pessoas de esquerda são mais inteligentes do que as de direita. Devido ao alto valor que, nas nossas sociedades, se atribui à inteligência lógico-abstracta, este tipo de estudos gera sempre indignação nas pessoas de direita, indignação que as levam a menosprezar esses estudos, como se eles lhe trouxessem notícias que não são capazes de suportar.

O estudo citado por John T. Jost – Professor de Psiciologia e Política na Universidade de Nova Iorque e Presidente da Sociedade Internacional de Psicologia Política – diz-nos que as pessoas de esquerda têm mais desenvolvida a área cerebral ligada à detecção e resolução de conflitos cognitivos (serão mais inteligentes se utilizarmos a linguagem comum), enquanto as pessoas de direita apresentam um maior desenvolvimento na área ligada às emoções. O interessante nisto tudo é a espécie humana ter evoluído desta forma. Parece que do ponto de vista individual, não é grave, para a sobrevivência do indivíduo, ter uma estrutura mais desenvolvida ao nível da razão ou ao nível da emoção. Mas se olharmos para o desenvolvimento das sociedades democráticas, onde, com flutuações sempre pontuais, há um certo equilíbrio de forças entre esquerda e direita, percebemos que aquilo que é válido para o indivíduo pode não o ser para a sociedade.


Estas parecem precisar da tensão entre a inteligência racional e o domínio das emoções. Aquilo que aos olhos do cidadão comum parece ser uma luta dilacerante pelo poder surge, desde modo, como um ardil da própria natureza com vista a adaptação da espécie humana à realidade envolvente. Os indivíduos estão convencidos que seguem as suas próprias inclinações e perseguem aquilo que, aos seus olhos, é o bem para a comunidade. Ao olharmos para estudos como aquele que o professor Jost cita, descobrimos uma outra coisa. Descobrimos a necessidade da tensão entre direita e esquerda, entre o domínio da razão e o da emoção. O corolário político parece óbvio: o importante não é a vitória absoluta de um dos lados, mas o equilíbrio que resulta da ilusão de cada um dos lados estar do lado da verdade e do bem. No fundo, voltamos ao velho Aristóteles e à virtude do meio termo.

sábado, 9 de julho de 2016

Mão forte

Francis Bacon - Figures in a Garden (1936)

Consta que o FMI pede mão forte de Bruxelas contra Portugal. O motivo é o não cumprimento pelo governo anterior das metas do défice. A finalidade é garantir a disciplina orçamental. Nesta manifestação de mau temperamento por parte do FMI há duas coisas que se devem notar. Em primeiro lugar, elementos ligados ao FMI, em diversas circunstâncias, reconheceram que as políticas de austeridade seguidas pelos países do Sul tinham resultados negativos, que estavam erradas. Agora o Fundo insiste nessas mesmas políticas, na modalidade da penalização. Em segundo lugar, se há instituições que têm responsabilidade nas políticas que conduziram ao ultrapassar do défice em Portugal, uma delas é o FMI. Este pede, sem corar, que um país que seguiu as políticas por si impostas, muitas vezes com acinte, seja penalizado por essas políticas não terem dado resultado. Este pedido de mão forte é mais uma cena do teatro do absurdo em que se tornou  vida política europeia.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

A bandeira na lapela

A minha crónica quinzenal no Jornal Torrejano.

Uma trilogia ou, melhor, uma troika. Maria Luís Albuquerque, Passos Coelho e Assunção Cristas. A direita portuguesa perdeu o decoro. A rábula das sanções a Portugal é o exemplo acabado do que é a política na Europa. A aposta é rebentar com o actual governo. O que terá este feito de mal para o país ser sancionado? Nada. As sanções dizem respeito ao não cumprimento do défice por parte da governação de Passos Coelho. Como é que as direitas, portuguesa e europeia, estão a montar o cenário? As sanções não seriam tanto devido à incompetência do anterior governo e da União Europeia, mas à suspeita de que o actual governo não é virtuoso e, eventualmente, não cumprirá as metas do défice no final deste ano. Penaliza-se preventivamente. O que significa isto?

Significa que voltámos à época do Terror da Revolução Francesa. Robespierre e os seus amigos tinham como princípio político a virtude republicana. A mais leve suspeita de falta de virtude conduzia a pessoa para o cadafalso, onde perdia, literalmente, a cabeça. Esta imagem hiperbólica tem a vantagem de mostrar a natureza daquilo que se está a passar. Qualquer dissidência – e a democracia não é o lugar onde a dissidência é fundamental? – é  punida sem apelo nem agravo. O senhor Schäuble não gosta do actual governo e parece apostado a fazer tudo o que estiver ao seu alcance para que ele caia. Ora aquilo que seria expectável da direita, ainda por cima foi ela que não cumpriu o défice, é que se demarcasse clara e distintamente, em nome do interesse nacional e da democracia, de qualquer sanção, baseada em que motivo fosse. Mas não. Ela parece deliciada com a situação.

E o interesse nacional? Esse, para a direita, resume-se a usar a bandeira na lapela. De resto, sonha em voltar rapidamente para o poder, para assegurar que o empobrecimento dos portugueses e a destruição de Portugal seja consumada. É preciso recordar os factos. O governo anterior, PSD-CDS, não cumpriu uma única vez a meta do défice, destruiu a classe média, empobreceu os portugueses e deixou o país à beira do colapso. Não acertou uma previsão. Enganou-se em tudo o que era essencial. Para ela, tudo isso, pouco conta. Vivemos num tempo em que os Robespierres, com a sua sanha virtuosa fundamentalista, ocupam o poder por essa Europa fora. Robespierres que não hesitam, ainda que simbolicamente, em cortar cabeças. E em Portugal? Por cá, parece que Miguel de Vasconcelos deixou uma herança genética persistente ou um conjunto infindável de bons alunos.

quinta-feira, 7 de julho de 2016

A noite e a rosa - 18. Noite (II)

Eugène Carrière - Place Clichy, Night (1899-1900)

18. Noite (II)

A noite: uma promessa de sangue
a arder na escarpa do sol-pôr.
Uma campânula coberta de vento.
Uma vespa nascida no pólen da flor.

A noite: uma guerra inviolável
refractada no fundo da terra crua.
Um segredo sigiloso que vacila
na fímbria rude e flexível da lua.

[A Noite e a Rosa, 1977]

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Livro do Êxodo 16. Na devastação da tristeza

Emil Nolde - Group of People

Não havia túmulos, cálidos e caiados de luz, nos brancos cemitérios, que às águas acolhiam, as que velozes vinham do extremo norte e caíam sobre a terra dos mortos, como se eles ainda fossem vivos e de água assim precisassem, com uma urgência que só a morte explica. Se era uma época de flores, os vivos partiam pelo seu pé, viajantes tão frios no olhar, dúbias figuras iluminadas pelas trevas, as que cobrem de vestígios os campos, da terra levam ao mar. Iam no esquecimento dos que tinham morrido, no olvido da própria memória, agora um campo esventrado por batalhas sem préstimo ou glória. Iam – que outra coisa haveriam de fazer? – presos à lepra da vida, às pústulas que cobriam faces, aos olhares transviados pelos corpos secos e amargos.

Na devastação da tristeza, abria-se uma arena de folhas onde os que caminham foram e colheram rosas amarelas, da volúpia vinham, e sob o impulso do vento inundaram o curso dos jardins sobre a esfera terrestre. Nas terras geladas, cobriam-se os dias com um manto de cinza e no céu o chumbo derretia-se pelo fogo glacial, a tua pena o desenhava. Nessa inconstância, as mulheres deixavam as madeixas cobrir a fronte, sombrear os olhos, infestar os prados do coração. Um negrume vinha então do fundo do corpo e todos se calavam, enquanto os pés tocavam o chão e num gesto premeditado faziam avançar, como se libertação fosse, cada um para a rosácea rumorejante, a fonte do destino, diziam em alvoroço.

Quando suspenderam a mão, no meio caminho que do corpo à raiz conduz, um clarão riscou, como um machado, a linha pura do horizonte. As aves juntaram-se em bandos, colónias nos fios da terra erguidos, olharam os céus e de bico cerrado voaram para o vazio, à sua frente um deus, precário e belo, o estendera. Já ninguém sabia ler o voo dos pássaros e na escuridão da sabedoria viram-nos partir. Se havia silêncio, o choro das crianças o quebrou e dessa tarde resta na poeira uma recordação de frutos maduros, abandonados na orla de espuma, o mar na praia a esboça. Depois, tomaram outra rota e abriram um caminho por entre densos matagais, infestados de insectos, contaminados pela saudade. Um murmúrio desprendia-se das suas bocas, até que a noite o apagou.

terça-feira, 5 de julho de 2016

Estatuto e prestação de provas

Pierre Rousseau - War or The Horseman of Discord (1895)

Mourinho equivoca-se. Anda há tanto tempo no mundo do futebol e ainda diz coisas como estas: “Sinto que tenho algo a provar a mim próprio, não aos outros”. A verdade é exactamente ao contrário. A ele próprio, Mourinho não tem nada a provar. Aos outros, porém, tem tudo a provar. Quem lhe paga o ordenado são os outros e é a eles que ele tem de provar que merece o que ganha. O futebol inscreve-se, como indústria de entretenimento, de forma plena nas sociedades modernas assentes na economia de mercado. O estatuto que se possui – e o estatuto não tem a ver com a minha relação comigo mas com os outros – está constantemente ameaçado pela concorrência e pelos resultados que se obtêm.

É provável que isto sempre tivesse acontecido nas sociedades humanas, embora certo tipo de estatutos fossem nas sociedades tradicionais, pela força do costume e da lei, preservados enquanto privilégios. Nas sociedades modernas, o estatuto é muito mais volátil. Para manter um alto estatuto social há que lutar continuamente pelo reconhecimento dos outros. Sem esse reconhecimento, o estatuto cai em três tempos. Não seja vitorioso no Manchester United, e Mourinho logo perceberá aquilo que tem a provar aos outros. Sem reconhecimento do outro não há estatuto, e este só se mantém elevado se se fundar em vitórias, seja no futebol ou noutro lado qualquer. O reconhecimento, fundado na luta contínua por ele, é o eixo central das sociedades liberais, das quais o futebol é o mais poderoso símbolo.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

Uma deriva fundamentalista

Jean Cousin the Elder - The Rape of Europa (1550)

Aquilo que se passa na Europa já pouco tem a ver com política. Entrou-se no domínio da religião. A notícia de que Portugal e Espanha terão mais três semanas para corrigir o défice do ano passado (ver aqui) tem muita coisa preocupante. A divisão entre falcões e pombas, por exemplo, mostra já um edifício em ruínas, embora ainda apertado pelas mãos dos falcões. Mas o mais grave, aquilo que mostra o delírio em que se entrou é a metafórica usada por fonte Europeia: "Temos de punir os pecados do passado, mas com o olho numa futura redenção".

Pecados e redenção? É nisto que se transformou a União Europeia. O uso destas metáforas é aquilo que se pode chamar um acto falhado. E como todo o acto falhado é uma confissão daquilo que vai no coração dos dirigentes europeus. O problema não é de racionalidade política. O problema é, estritamente, religioso. Há que punir os valdevinos que se portaram mal, mas, alardeando o mais insuportável dos paternalismos, acrescenta-se o desígnio da redenção. Tal como um pai castiga o filho para este se tornar um homem de bem. O fundamentalismo protestante tomou conta da política e diluiu-a num cocktail religioso explosivo. Deixou de haver parceiros políticos que buscam as melhores soluções. A Europa agora é constituída por puros e pecadores. Pela mão do protestantismo, a política foi tomada pela velha heresia maniqueísta. Nem sequer há lugar para filhos pródigos.

domingo, 3 de julho de 2016

A noite e a rosa - 17. Na areia alva

Vincent Van Gogh - Lírios (1889)

17. Na areia alva

Na areia alva
do caminho
descem anjos
alados e fugidios.
Cresce a súbita
erva do sul,
promessas
de Maio
sobre os lírios
cintilantes
siderados de azul.

sábado, 2 de julho de 2016

Em louvor dos empatas

Cândido Portinari - Futebol (1935)

A minha crónica mensal no jornal A Barca.

Escrevo a seguir ao glorioso empate entre a selecção portuguesa e a selecção húngara. Não sei, por falta de dotes proféticos, quando a edição de A Barca chegar aos leitores, qual o destino dos portugueses no europeu de futebol. Seja o que for, quero louvar a virtude dos empatas. Portanto, não vou meditar sobre a glória de atirar microfones para os lagos e a correlação desses actos com a liberdade de imprensa ou a virtude moral dos atiradores de microfones. Quero mesmo falar dos empatas. Empatar não é uma coisa assim tão deprimente. Quem empata não ganha mas também não perde.

Recordo um episódio do distante ano de 1982. O Borges, um restaurante e café mesmo por baixo da casa do dr. Mário Soares, estava cheio de estudantes, gente das várias faculdades da cidade universitária, em Lisboa. Entre imperiais e tremoços, o pessoal assistia a um Brasil – Itália para o campeonato do mundo disputado, salvo erro, em Espanha. Como era habitual e na ausência de Portugal, quase toda a gente torcia pelo Brasil. Então as raparigas, talvez pela influência da música brasileira, eram fanáticas. Eu, que nunca fui pró-Brasil, e outro colega de filosofia (éramos só dois pró-Itália ou anti-Brasil) tivemos o grato prazer de ver Paolo Rossi marcar três golos e mandar a super selecção brasileira para casa.

O que tem isso a ver com os empatas, se os italianos ganharam ao Brasil? Tem e muito. Antes de falar nisso, recordo ainda outro episódio. Um dos mais reputados jornalistas desportivos da altura, antes do campeonato do mundo, prognosticou na RTP um destino negríssimo para a selecção italiana. A fase de grupos quase confirmava a profecia. A Itália calhara num grupo fácil com a Polónia, o Peru e os Camarões. Apurou-se para a segunda fase com três empates e muita, muita sorte. Uns empatas, dir-se-ia. Conclusão da história. A Itália não só despachou o Brasil e a Argentina, como foi campeã do mundo ao ganhar, na final, à Alemanha. Não digamos mal, mesmo que sejamos eliminados, dos nossos empatas do futebol, nós que somos, na verdade e na generalidade dos casos, um povo de empatas. Como se viu em 1982, dos empatas também reza a História.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Livro do Êxodo 15. Um fogo errante

Thomas Cole - Expulsão. Lua e luz de fogo (1828)

Caminhavam os caminhantes sem estandarte, olhos, quase puros quase frios, sujeitos ao poente, ao sol que se esconde além da terra, se oculta na fria floresta percutida pelo esquecimento. Assim iam aqueles que iam, arrastando a memória, tão dolorosa e tão ímpia, entre mãos, perdidos do caminho, esquecidos de Deus, destituídos de nome. Respiravam, na desmemória que sobre eles caíra, o vapor dos campos, o óleo derramado pelo chão, o alcatrão, sempre tão negro, o cobre. Se cantavam canções de erva à luz do silêncio, ninguém os escutava. A voz então assombrava-se e a boca, presa na fragilidade das horas, não mais se abria.

Mudos, marchavam na noite, ouviam o eco das aves a ribombar ao longe e irrompiam na alvorada exaustos,  a desenhar mapas, a traçar constelações, a descobrir entre dedos lagos de sombra e praias, as frias praias de cascalho. Esperavam-nos a aurora, aquela que um dia teve róseos dedos, e a imensa fome que a noite, tecida na penúria e sempre tão avara, nunca consola. O nome, de que foram despojados, tinham-no esquecido, e só por sinais e gestos de si sabiam. Olhavam, agora, o dia, os olhos teciam nuvens e cerravam-nos na escuridão que caíra sobre a alma.

Gelados, se chegava a noite, acampavam pelas planícies e olhavam os céus, criando uma geometria frágil, sem círculos nem rectas, apenas alguns pontos e em sua órbita a fugaz luz, mortal e extraviada, de um cometa. Quando o grande pássaro do Oriente pousou sobre a rocha, a terra tremeu. Então, movidos pelo temor, levantaram-se, subiram as escarpas rugosas, atearam um fogo errante e seguiram-no. O lume aquecia-os, iluminava-os, deixava-os ver  as colmeias semeadas entre as urzes e, lentamente, restituía-lhes a voz. Do fogo, tão errante, fizeram um estandarte e marcharam para o nenhures que, como uma cidade hospitaleira, os esperava.