Caspar David Friedrich - Town at Moonrise (1817)
Apagaram-se os lilases
quando à porta bateram e a noite se cerrou, tão cerrada e tão negra, ocultando
regatos, areias, pedras brancas e lisas, os primeiros passos, ainda precários e
sonâmbulos, então os deram. Pelos corredores, os animais degolados passavam enlouquecidos
e nas ruas, sempre ventosas e inquietas, projécteis de aço a incendiar
silêncios no coração. Os tumultos feriam o peito, o medo o assediava, e por
isso tomaram uma pedra e a puseram debaixo dele e logo da boca um canto
vagaroso cresceu, inundou de archotes os pátios, ateou bandeiras pelas portas
que bateram, empurradas pelas giestas, do silêncio se desprendiam. Na mecânica
celeste, nas órbitas, os planetas as desenhavam, tudo se tornara movediço, rota
incerta, aterrada fúria nos campos onde o caos silente se estende.
Os dedos despediram-se das
mãos e partiram tocando searas, fendendo musgos, abrindo
sulcos de saliva e sangue,
sanguíneo sangue era o desses dias, no veludo espesso e invernoso, a vida frágil
cobre. Passavam carros nocturnos, expeliam relâmpagos, a velha luz caída dos
céus, e deixavam troar os motores acordando a noite, fazendo gritar das
crianças a garganta inquieta, a voz, ao brotar na noite, as empalidecia. Um
zumbido misturava-se no ar da cidade, era Fevereiro, e as chuvas ainda não haviam
descido sobre os telhados de zinco. O betão arfava ressequido e as janelas
estremeciam, se mãos cintilantes, ao coscorar na pressa aziaga da dor, não lhes
davam por alimento água. Pura, incolor, sem mácula de sabor ou som, água.
Preso ao mastro, um animal
olhava a fúria e despedia-se da vida cantando as regras, a tarde lhas dera. Das
mãos, os dedos tinha perdido e das flores esquecera os lilases, como se
tivessem secado e ressequidos entrassem na noite, hermeticamente fechados,
lembrando os animais degolados, na boca dos que cantavam corriam, a gritar
inocência, um manto de vergonha lhes cabia. Um estampido soou. Escondidos, abriam-se
ao som pela porta do silêncio. Depois, levantavam os pés, em movimento lento, e
invadiam, ao erguer-se a lua, as imensa pradarias da saudade. Iam de coração
aberto e coberto de pústulas. Os olhos ressequidos esperavam a torrente das
lágrimas que, ao chegar, eram recolhidas em pequenos cálices e bebidas até ao
fim, um fim final perdido no azedume, a vida sempre o traz, entre pomares de
alegria e cumes sombreados de esperança.
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