Georgia O'keeffe - Lake George (1924)
A deriva turca a que assistimos sublinha uma mudança de matriz política global. Nos anos 80 e 90 do século passado, não apenas os regimes democráticos estavam a crescer como a democracia - tal como vivida na Europa - era o modelo que muitos povos e elites oposicionistas, sob regimes ditatoriais, desejavam para as suas sociedades. A democracia, segundo a pulsação da época, parecia o futuro inevitável para o qual tendiam os regimes autoritários espalhados por todo o mundo. Isto devia-se ao prestígio dos regimes democráticos alicerçado no respeito pelas liberdades, no desempenho das suas economias e na igualdade perante a lei. Hoje em dia, a democracia é uma paisagem desolada à qual ninguém parece aspirar. O que terá contribuído para degradar a imagem dos regimes livres e representativos? Há múltiplas causas. Vale a pena olhar para duas.
Em primeiro lugar, o exemplo chinês. A China tornou patente, de forma ostensiva, que pode não haver conexão entre desenvolvimento económico e democracia. Pelo contrário. Com a cumplicidade das potências democráticas, com os EUA e a União Europeia à cabeça, a China tornou-se um caso de sucesso económico sem que a férrea ditadura do Partido Comunista Chinês tenha sido aliviada. Ela é um exemplo que seduz muitos líderes políticos. Em segundo lugar, as experiências recentes das chamadas primaveras árabes, tentativas de transferir algumas experiências europeias para um mundo não ocidental, desembocaram em cenários mais ou menos tenebrosos, desde o Egipto até à Síria, passando pela Líbia, não esquecendo o pesadelo iraquiano, desencadeado ainda antes. Estas duas experiências globais, para não falar da evolução musculada da Rússia, encontraram ecos dentro de alguns países da própria União Europeia.
Esta desolação democrática atinge ainda os próprios regimes democráticos mais antigos, nos quais crescem movimentos xenófobos de características marcadamente autoritárias. Se nas décadas finais do século XX, a democracia se apresentava como a ideia reguladora da actividade política, o século XXI dá os seus primeiros passos - estará na fase da adolescência - sob a égide da autoridade. O que se está a passar na Turquia inscreve-se já na nova matriz e traz para a fronteira mais sensível da União Europeia o modelo autoritário, o qual, conjugado com a deriva russa, o terrorismo islâmico e a crise dos refugiados, irá exercer uma enorme pressão sobre as democracias e um crescente fascínio sobre os eleitorados ocidentais, que se sentirão cada vez mais tentados a responder na mesma moeda. Chegámos ao tempo em que a democracia representativa deixou de ser uma evidência política. Chegámos ao tempo em ela exige que aqueles que acreditam nela têm de voltar a bater-se por ela. Em primeiro lugar, porque é aí que se joga o essencial, no plano das ideias.
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