Ivonne Sánchez Barea - Islam (1999)
Estes últimos tempos têm sido férteis em ataques terroristas. Uns
levados a cabo por militantes claramente comprometidos com a jihad, outros por pessoas desavindas com
a vida e que encontram, numa súbita adesão aos métodos terroristas, uma saída
para a perturbação que as acomete. Este último tipo de atentados – onde se podem
inscrever os casos de Orlando, nos EUA, ou de Nice, em França – serviram para
uma estranha leitura do que se está a passar. António
Guerreiro (AG), no Público, depois de verberar a «lengalenga ciclicamente
repetida do “ataque aos nossos valores” e aos lugares simbólicos da nosso “modo
de vida”, praticados pelos “inimigos do Ocidente” e até da “humanidade”»,
defende que o que é preciso ser pensado é «o inconsciente terrorista e aquilo
que dá lugar a uma “guerra de subjectividades”». E traz à colação a ideia de
Alain Bertho de estarmos não perante uma radicalização do Islamismo, mas «confrontados
com a islamização da revolta radical, uma estranha situação em que o
Islamismo se torna uma maneira de exprimir uma recusa do mundo e até um ódio de
si».
O problema trazido pelo retorno do Islão à cena mundial é de tal ordem
que os ocidentais – à direita e à esquerda –, moldados todos eles nos valores
da Modernidade e do Iluminismo, são completamente incapazes de o compreender. É
verdade que AG tem razão ao chamar lengalenga às reacções oficiais perante cada
carnificina, uma espécie de confissão da impotência que se tem perante aquilo
que não se conhece e com o qual não se sabe lidar. Também é verdade que AG não
cai na lengalenga marxizante de ver neste conflito mais um episódio da luta de
classes. A sua incompreensão do fenómeno, porém, é tão radical quanto a da
direita ou da esquerda tradicional. Ao afirmar que o que precisa de ser pensado
é o “inconsciente terrorista”, aquilo que dá lugar a uma “guerra de
subjectividades”, faz deslizar o problema da área política para a da terapia. O
que merece ser pensado, segundo ele, seria então os processos de subjectivação
que levam certos indivíduos a uma revolta radical, a qual encontra, de forma
acidental, o islamismo para expressar o seu ódio ao mundo ou a si mesmo. O que
precisa de ser pensado é a fonte inconsciente de uma patologia.
Por interessante que seja compreender as motivações que conduzem
certos indivíduos a esse tipo de actos, isso não esconde a importância
fundamental do Islão ter emergido na cena mundial e de transportar consigo um
conjunto de princípios que fundamentam tudo aquilo que se está a passar. Os
ocidentais – de esquerda e de direita – não perceberam nada do que se passou na
revolução iraniana. Não perceberam nada do que se passou nas primaveras árabes.
Não estão a perceber nada do que se está a passar na Turquia, tão entretidos que
estão com teorias sobre o carácter autoritário (e narcísico) do senhor Erdogan.
Para lá do domínio das subjectividades, há um domínio objectivo que age e está
disposto a pôr o mundo a ferro e fogo. Apesar de ser uma lengalenga falar do “ataque
aos nossos valores” e aos lugares simbólicos da nosso “modo de vida”,
praticados pelos “inimigos do Ocidente”, isso não deixa de ser verdade. Não são
apenas as elites religiosas radicais do Islão que se opõem ao nosso modo de
vida. São também as moderadas e, como é mostrado todos os dias (embora os
ocidentais não o queiram ver), as grandes massas de fiéis.
O que está em causa, em primeiro lugar, é que o Islão (isto é, muito do
clero islâmico) – na sua diversidade – jamais poderá aceitar isto: “lluminismo
é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade
é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem (Kant)”.
O nosso “modo de vida”, por lengalenga que seja a sua invocação, funda-se nisto,
neste reconhecimento de que cada um tem o dever e o direito de pensar por si
mesmo e, sendo assim, de orientar a sua vida como muito bem entender, desde que
não colida com iguais direitos do outro. Este, porém, é apenas um aspecto do
problema. Há um outro e está ligado à história do próprio Islão, da sua auto-compreensão
– a qual persiste inabalável – como a única religião verdadeira, o que lhe dá o
fundamento para agir no mundo para impor a verdade, isto é, que dá cobertura
aos seus projectos políticos. Que um padre católico tenha sido degolado, no dia
de hoje, por alguém que não tenha conseguido adequar a sua subjectividade ao
mundo onde vive ou por militantes radicais esclarecidos, é irrelevante. O que
importa pensar não são os processos de construção das subjectividades mas o
conjunto de crenças colectivas, político-religiosas, que alimentam o ódio à
ideia de que cada um tem o direito de pensar por si mesmo.
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