quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Persistência e superação


Juan Botas - School (1989)

Os bons resultados de Matemática dos alunos portugueses do 4º ano, no TIMSS (um estudo internacional comparativo sobre o desempenho escolar em Matemática e Ciências) de 2015, acabam por sufragar as políticas educativas na área da Matemática que, desde a primeira participação portuguesa nesses estudos, em 1995, têm sido desenvolvidas. Antes de falar delas, chama-se a atenção para o facto de Portugal ter, em 2015, atingido a 13.ª posição e ultrapassado mesmo a Finlândia, um país de referência na Europa, no sector da educação. Note-se no entanto que Portugal, como a generalidade dos países ocidentais, estão ainda longe dos desempenhos dos países asiáticos. Note-se, por outro lado, que este aumento do desempenho da Matemático foi acompanhado por uma queda no domínio das Ciências.

Há agora uma grande disputa sobre os méritos políticos deste desempenho. Mais importante do que essa disputa entre PS e PSD é salientar três aspectos centrais que me parecem decisivos para esta contínua melhoria dos resultados. Em primeiro lugar, o aumento da carga horária dedicada à Matemática, que permitiu mais tempo de contacto dos alunos com uma linguagem abstracta e muito desligada das preocupações do quotidiano. Em segundo lugar, o Plano Nacional da Matemática, que generalizou novas práticas de ensino da disciplina e permitiu fortalecer o corpo docente. Por fim, os efémeros exames nacionais do 1.º ciclo, que criaram, em muitas escolas, um efectivo espírito de colaboração entre professores, alunos e pais com vista a assegurar um bom desempenho dos alunos, através de aprendizagens consistentes, na avaliação externa.

É lamentável que os exames nacionais no 1.º e 2.º ciclos de escolaridade, em vez de terem sido alargados a outras disciplinas, tenham sido, por este governo, eliminados. Eram um factor de mobilização importante, embora outros factores, como a formação de professores sejam tão ou mais decisivos que os exames. Seja como for, o país poderia aprender um pouco com este sucesso – esperemos que não seja um mero relâmpago – da Matemática no 1.º ciclo. Aprender o quê? Em primeiro lugar, que as transformações exigem tempo. Do miserável penúltimo lugar no TIMSS de 1995 ao actual 13.º demoraram 20 anos. Para haver frutos é necessário tempo e persistência. Em segundo lugar, que é preciso exigir e avaliar resultados. Sem essa pressão, os actores não sentem a obrigação de se superar. Persistência no tempo e um ideal de superação. É isso que o país precisa.

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Livro do Êxodo - 35. Mãos de ardósia

August Macke - Despedida (1914)

Teciam com mãos de ardósia capas de linho e enfeitavam de pedra as ruas, agora avenidas rasgadas na terra dorida e dolorosa, e se ali passavam  viajantes, apressados na sua viagem e desdenhosos de quem fica, elas volviam os olhos para o chão, erguiam os dedos ao alto, assim o diziam, e sussurravam, emboscadas, à espera que os estranhos passassem, sustendo o vento com os braços, os olhos cobertos com folhas de jornal, capas de revista, anúncios em papel brilhante. Se chovia, instável era o tempo, corriam para debaixo das arcadas, se o sol vinha, as pobres raparigas retiravam o véu, a cabeça destapada e o rosto descoberto eram uma luz brilhante na tarde, enfeitada de malmequeres e rosas silenciosas, ornada de promessas, as vagas promessas que ninguém cumprirá.

Delicada azáfama a de abrir, com mãos de ardósia, corações e ver o pulsar do sangue, rubras paredes contaminadas pela ira, rasgadas na cal que as tapava, vestidos leves onde as pernas brancas se escondiam, para se abrirem ao desejo que de não vê-las tomava forma, crescia, rebentava diques, desaguando em gritos, enquanto os carros passavam, a lançar chistes de dióxido e urros luminosos, a desabar nos semáforos, a tarde regulavam. Árduo o trabalho do amor, a cirurgia que desvela o que se oculta nas paredes do corpo, na fímbria onde pés incautos deixam pegadas rutilantes que anunciam desejos, que proclamam um querer irrevogável, o tempo o revogará.

As cortinas do pátio, e suas colunas, e suas bases, e a coberta da porta do pátio, a tudo isso desprezastes quando a mão, a pálida mão que era a minha, caiu para a vossa e levantastes voo, erguendo-vos aos céus, as saias prendiam com as mãos exíguas, não fora eu espreitar-vos pernas acima, e compor um soneto de versos exíguos, ritmo cambado, sem métrica nem rima, que de mim vos fizesse gostar, como as crianças gostam de rebuçados, ou os velhos, gengivas gastas e dentes caídos, de amoras. Para quê desenhar catedrais, jardins, rudes avenidas por onde o vento desliza, tocar-vos os seios, apertar-vos a garganta com o pólen do sentimento? Para quê lançar o bisturi sobre a artéria do amor e ver um rio de sangue tresmalhado entre pernas? Para quê tecer com mãos de ardósia capas de linho?

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Cinza de Pedra - 3. Uma labareda lavra

Felix Vallotton - Sem título (1917)

3. Uma labareda lavra

Uma labareda lavra
a planície da solidão.

Dunas de caruma
à porta de casa.

Uma canção de ervas,
uma ferida matinal,
a fria flecha do fogo.

(Cinza de pedra, 1978)

domingo, 27 de novembro de 2016

Alma Pátria - 6: João Ferreira-Rosa - Fado dos Saltimbancos




Este é um post quase falhado. Não sei qual a data do Fado dos Saltimbancos, nem encontrei a capa do disco onde, pela primeira vez, João Ferreira-Rosa o grava. Fica, porém, uma imagem de um Portugal praticamente morto. Um Portugal monárquico, tradicionalista e amante de toiros a que a excelente voz de João Ferreira-Rosa dava uma aura que já fenecera. A Revolução do 25 de Abril e a entrada para a CEE liquidaram-no, mas as pessoas da minha geração ainda o conheceram muito bem. Ah, não se pense que sou inimigo de touradas. Não sou, embora não seja um aficionado e esteja convicto que têm os dias contados. Não é impunemente que se nasce no Ribatejo, perto da Golegã e da Chamusca, de toda a linha do Tejo onde a tradição taurina era bem forte. Seja como for, esta é uma parte da alma pátria em transformação acelerada. Continua, porém, a haver saltimbancos, aqueles rapazes, moços forcados, que, gratuitamente, teimam em pegar um touro de caras. E pegar um touro de caras, seja que tipo de touro for, real ou metafórico, não é para toda a gente.

sábado, 26 de novembro de 2016

António Costa, um moderador


Passado um ano de governo de António Costa já é possível perceber, para além das paixões de seita, o quão acertada foi a sua decisão de não suportar um governo minoritário de direita. Quando o actual primeiro-ministro decide romper com a tradição e aliar-se à esquerda, a direita anunciou que vinha aí uma radicalização do país e vociferou que ele apenas fazia isso para salvar a sua pele de uma derrota clara. É verdade que, sem o poder, António Costa tinha a carreira política por um fio. Porém, isso é apenas uma parte da verdade e uma parte bem limitada.

A decisão de António Costa foi também a salvação do Partido Socialista. Tivesse vencido a perspectiva de Francisco Assis e hoje o PS estaria a caminho da liquidação, como aconteceu com o PASOK grego ou, em menor escala, com o PSOE espanhol. Um governo de direita assente na cumplicidade dos socialistas iria atirar uma parte importante do eleitorado tradicional do PS para os braços do Bloco de Esquerda e, embora bastante menos, do PCP. A decisão de António Costa não salvou apenas a sua carreira política. Salvou também o PS como grande partido da democracia portuguesa.

Uma terceira consequência, a mais importante, liga-se ao todo nacional. Um governo de direita, fundado na cumplicidade dos socialistas, continuaria a abrir clivagens no todo nacional, radicalizando ainda mais a sociedade portuguesa. O que aconteceu é que a actual governação mostrou uma coisa que, para quem observa desapaixonadamente a vida política, parecia clara: a esquerda portuguesa, mesmo aquela que está à esquerda do PS, é bastante moderada. Depois de uma governação de direita apostada claramente na radicalidade político-económica, na  polarização social e na luta de classes, António Costa conseguiu um governo fundado na moderação e na busca da conciliação interclassista. António Costa é um moderador e isso, num tempo ansioso de radicalizações, não é pouco.

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Descrições fenomenológicas 11. O relógio

Pablo Palazuelo - Orto V

A luz da manhã entrava pela janela e desenhava uma fronteira entre o que logo era visível e uma zona sombria que obrigava o olhar a uma longa habituação. Nessa obscuridade pressentiam-se presenças, talvez de objectos, mas isso gerava no espectador um sentimento de incongruência, pois a primeira sensação que se tinha era a de vazio. Onde a luz incidia com mais furor, no centro da divisão, talvez um quarto, havia, no chão, uma gigantesca almofada vermelha, rectangular, do tamanho de uma cama de casal, guarnecida, nos topos, com faixas de pequenas cordões dourados que mal tocavam o soalho. Num dos cantos da almofada, o que mais próximo estava da janela, havia um enorme prato, daqueles que servem para reter a água que se desprende de algum vaso com plantas ornamentais, talvez uma aspidistra, tão em uso nessa época. Estava pejado de pontas de cigarros, papéis rasgados, chamuscados aqui e ali, uma velha esferográfica de plástico transparente, sem carga e sem préstimo, aparas de unhas e, incompreensivelmente, um relógio, misturado com a cinza. Sobre essa almofada gigante, que alguém desatento poderia confundir com um tapete, havia uma outra, minúscula, cor de pérola. Sustentava a cabeça de um homem moreno, de cabelo negro, com um bigode regular sob um nariz pequeno, dirigido para cima, quase feminino. As pernas, vestidas por calças de ganga, presas por um cinto castanho de cabedal, e os pés, com botas de carneira, estendiam-se sobre a almofada gigantesca. O tronco estava despido. Um relógio de mostrador negro, idêntico ao que jazia entre cinzas e pontas de cigarros, ornamentava o pulso do braço direito, que, como o esquerdo, se estendia inerte pelo chão. A luz da manhã, uma luz fria, mas intensa, desenhava um auréola naquele corpo. Do canto esquerdo da boca, corria um fio de sangue, encontrava o caminho entre a barba por fazer há vários dias, escorregava, deixando um mancha viscosa de encarnado no pérola da almofada, e fundia-se no mar vermelho do que era, naquele instante, um leito de morte. Uma porta aberta deixava pressentir uma ausência ou a sombra de uma solidão. Olhava-se para o homem, mas, de imediato, o olhar fugia, talvez assustado pela morte, saltitava pelas paredes vazias, vagueava entre a luz da janela e a obscuridade que se adivinhava para além da porta do quarto, para se prender, como que enfeitiçado, no relógio perdido no cinzeiro improvisado. 

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Da democracia como terapêutica

Julio Gómez Biedma - Democracia. Siempre hay un ojo que lo ve

Agora que muito se fala no espectro de uma recessão democrática, não será inútil olhar para as virtudes do regime democrático. São múltiplos os aspectos que recomendam a democracia em detrimento de qualquer outra forma de governo. Há uma faceta que, por norma, não é notada, mas que é das mais importantes, senão mesmo a mais importante. Trata-se do carácter terapêutico da democracia. Quando se fala em terapia supõe-se, e não sem razão, a existência de  patologias. A questão que se coloca então é a de saber que patologias são tratadas pela ordem democrática.

Basta dar uma vista de olhos pelo discurso político e pela opinião pública que se movimenta em torno do fenómeno da política para compreender a natureza da patologia. Mesmo nos actores e comentadores mais sensatos, a posição política que defendem tende a ser apresentada como uma verdade. Verdade essa que lhes parece tão óbvia que se espantam pelos outros não a compreenderem. O que significa isto? Significa que política traz nela uma inclinação que dobra os homens para o delírio da verdade absoluta.

O carácter terapêutico da democracia não incide na cura dos doentes que sofrem dessa patologia delirante. A terapia limita-lhes a acção e ensina-lhes algumas boas maneiras. Obriga-os a disfarçar a loucura que arde dentro deles. Como o faz? Pelo confronto dos múltiplos delírios e das múltiplas loucuras. Na democracia, os agentes infectados vigiam-se entre si. A loucura e o delírio continua a arder em cada um, mas a exibição das diversas patologias, pressuposta pela democracia, acaba por criar uma clareira onde uma vida saudável é possível. E isto não é pouco.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Livro do Êxodo - 34. A cidade perdida

Nadir Afonso - Teerão

Expulsos fomos dos lugares, os mais veneráveis. A porta fechou-se, o bosque, sagrado bosque diriam, ardeu e nas labaredas voaram os pássaros de Apolo, os corvos brancos da cidade. Os milhafres há muito haviam partido para os campos devastados da melancolia, para as fontes imersas na bruma da tarde. Ao longe, tão ao longe, ainda soam harpejos, o som das escavadoras, o canto das gaivotas, no infindável anil do mar, o marulhar das águas nos esgotos pútridos das avenidas. Nelas, as tão solitárias avenidas, a vida mingua e desparece, perdida não se sabe onde, levada não se sabe por quem.

A cidade já não é uma cidade de comércio aberto para as ruas, gente que a correr, as mulheres de sombrinha, homens escondidos a espreitar e raparigas sedentas, os olhos a luzir e a boca a salivar. Sobe-se e desce-se, conquista-se colina a colina, em combate corporal, a espada erguida, a mão pelo corpo, um braço decepado, a perna partida. Se a boca para um seio vai, logo sangram as espáduas ao som dos fuzis, no estrondo das bombas que de longe caem. Enumero: alumínios, vidro acrílico, betão armado, verga de ferro, o néon, e ainda o plástico e a madeira e o mármore. Tudo se confunde, no incêndio da noite, bombeiros de carros cariados, água seca ao entrar no mar, uma árvore derrubada entre bolas de naftalina e um coro de gatos enfrenta a multidão na rasura da avenida.

Um dia, a tarde caíra, ela veio e sentou-se. A saia subiu pernas acima. Olhou ao longe, o mar a entontecia, e tomou duas tábuas de pedra em sua mão e desenhou bosques e pássaros e flores e figuras de homens e de mulheres. Dizia: estes são deuses e deusas, imortais são e se a sua voz não escutamos não é que tenham emudecido. Prendemos os ouvidos na pressa mecânica dos dias e só escutamos o rumor dos cilindros nas ruas, o bater pneumático do martelo, o ronco com que os automóveis, na pressa que levam, adormecem. A pedra, no labor daquela mão, ganhou vida. Primeiro respirava, logo adormecia e se ela a acordava um riso no silêncio medrava.

Assim, acabou a tarde e veio a noite e tudo era agora banhado por um rio. Cidade inquieta na água do rio, cidade de margens de pedra abertas ao labor dos olhos. A mão, pois do braço pendia, trabalhava, umas vezes cortava, outras esculpia, mas enquanto ela respirava e os seios se descobriam, tudo se iluminava. Quando a aurora chegou e anunciou o dia, o incêndio começou. A porta fechou-se e eu, preso pela mão, olhei: os pássaros de Apolo partiam e, por eles protegidos contra os ventos, vi dois corvos brancos. Não grasnavam, não sorriam, apenas voavam. No incendiado silêncio do coração, caiu uma noite de pedra e gaivotas azuis a voar rente ao chão. A cidade é agora uma saudade, a leve melancolia de um domingo à tarde, o sonho nunca sonhado do meio-dia.

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Cinza de Pedra - 2. Toco-te com mão

Claude Monet - Mulher no jardim de Saint-Adress (1867)

2. Toco-te com mão

Toco-te com mão
de mármore
e vozes de poeira
erguem-se
no jardim assombrado
pela volúpia de vidro
do sol da manhã.

(Cinza de pedra, 1978)

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Alma Pátria - 5: Rui de Mascarenhas - Encontro às dez




Encontro às dez, uma canção de 1961, da imbatível dupla Jerónimo Bragança e Nóbrega e Sousa, na voz de Rui Mascarenhas. Ouvir aquilo que se ouvia nos tempos em que o professor Salazar pastoreava o rebanho luso é sempre uma bela lição, um retrato sociológico do Portugal de então que não se deve perder. Note-se, por exemplo, a utilização do você e do si na letra da canção. Afastamo-nos dos padrões populares do amor e entramos numa esfera social onde a distância dos amantes é a marca de casta. A mulher não é aqui um tu qualquer, mas um si que merece a deferência da terceira pessoa. Não é que a ambiência da canção não seja kitsch, é-o, essa era, porém, a marca ideológica que envolvia a atmosfera que se desprendia do regime e a tudo contaminava.

domingo, 20 de novembro de 2016

Uma lei do mundo

Salvador Dali - Rostro de la guerra (1940-41)

O reaccionário Joseph de Maistre, esse inimigo jurado da revolução francesa e do Iluminismo, talvez seja o pensador que, nos dias conturbados de hoje, mereça ser lido e meditado com mais atenção. Não apenas pelo seu pendor autoritário, mas pelas suas considerações sobre a guerra. Há uma célebre citação do conde saboiano que tem escandalizado muita gente, mas que deve ser pensada. Diz Maistre: A guerra é, em si mesma, divina, pois é uma lei do mundo.

O problema não é se nós gostamos ou não da guerra. O próprio Joseph de Maistre achava-a um horror e uma derrota da razão e da civilização. O problema é se a nossa pobre espécie tem em si o poder de construir uma paz perpétua ou se a guerra é mesmo uma lei metafísica inexorável a que estamos submetidos. Se olharmos para o actual panorama geopolítico temos todas as razões para temer que Joseph de Maistre tenha razão.

E a possível razão de Maistre não advém só do flagelo que o fundamentalismo islâmico espalha pelo mundo. É nas próprias nações marcadas pelo Iluminismo – isto é, as nações ocidentais – que parecem emergir as ervas daninhas que antecedem os tempos de confrontação militar e os grandes rituais sacrificiais da guerra. A intolerância religiosa, política e moral que se espalha pelo mundo ocidental é um dos sintomas.

O pior sintoma, porém, é a aceitação em parte cada vez mais exuberante da intelligentsia e da própria população a normalidade da eleição de Trump, da vitória de Farage e do Brexit, do crescimento dos fenómenos ditos populistas pela Europa fora. Por detrás destes fenómenos pulsa visivelmente, para quem não for distraído, um desejo enorme de confrontação e de esmagamento de tudo o que os contraria.

Não são tanto as personagens políticas que são problemáticas – apesar de o serem – mas aquilo que as constitui em personagens políticas com peso. O rancor de enormes máximas sociais é apenas a face visível da pulsão de morte e de um desejo insaciável de fazer correr o sangue pela terra que a espécie humana traz consigo. É aqui que a leitura e a meditação do velho inimigo da contra-revolução faz todo o sentido. Ele torna claro um limite do Iluminismo e da própria razão. Mostra-nos para onde caminhamos, plenamente inconscientes, cada vez mais depressa.

sábado, 19 de novembro de 2016

Descrições fenomenológicas 10. Um vulto

Esteban Vicente - Ao longe (1970)

Um pequeno bosque de cedros e ciprestes ergue-se mesmo em frente. Inclinadas pelo vento, as árvores oferecem-se aos olhos numa profusão de verdes que um espectador incauto nunca sonharia. Se o vento sopra, elas, em uníssono, inclinam-se, resguardando-se da fúria. Quando o vendaval pára, erguem-se majestosas, apontam para o céu, e nunca deixam perceber se o acusam do mal ou se o louvam como destino da sua caminhada. Vejo-as agora sob uma chuva miúda. A água escorrega por elas e empapa a terra castanha. Aqui e ali despontam pequenas poças. Alguém atravessa o bosque. Vai apressado, fustigado pela chuva. Logo desaparece e tudo volta à solidão. Um pássaro poisa no cimo de um cipreste. Estremece, levanta voo e perde-se no horizonte cinzento. Por baixo das copas, divisam-se, para lá das árvores, carros a passar lentamente. Vejo-lhes as cores, branco, vermelho, preto, alguns cinzentos, mas estão demasiado longe para que lhes oiça o roncar dos motores. São carros fantasmas perdidos num outro mundo. Uma brisa suave levantou-se agora mesmo e os cedros cedem já à tentação de ondular, enquanto os ciprestes se mantém hirtos, presos a um orgulho despropositado. Ouve-se um grito. Parece crescer de intensidade, mas de súbito cessa. Silêncio. Um carro parou para além do bosque. Uma mulher sai da viatura, põe os pés na terra castanha e vagueia entre árvores. Não tem chapéu de chuva. O carro desapareceu. Ela caminha à deriva, parece cambalear. Um cedro de copa alta serve-lhe agora de abrigo. Senta-se, encostada ao tronco. Flecte as pernas e envolve os joelhos com os braços enlaçados. Sobre eles poisa a cabeça. O cabelo cai-lhe e tapa as pernas. Quase posso ver-lhe a nuca. A chuva persiste e ela ali parada, silenciosa, encharcada. Um vulto perdido na cor parda do dia, uma sombra à espera do anoitecer.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

W. G. Sebald


A minha crónica no Jornal Torrejano.

Winfried Georg Sebald morre nos finais de 2001, com apenas 57 anos. Quando, há anos, o descobri fiquei fascinado pela sua escrita. Li de enfiada, sem conseguir parar, todas as traduções das suas obras. Naquela escrita transparece um tema que me assombra desde há muito. Trata-se da relação com o passado, com o fundo dos tempos, com aquilo que se retirou e que, lentamente, desliza da memória para desaguar no grande oceano do esquecimento. O trabalho de Sebald é um exercício de reconstrução dos fios da memória obliterados pela voracidade do tempo. Esta minha atenção pela memória e pelo que passou tem as mesmas dimensões que se encontram no escritor alemão. O interesse pela memória pessoal e pela memória colectiva. O querer conhecer os laços que ligam ao concerto da família e os liames que estabelecem relação à comunidade social e política.

Sebald, que nasce em 1944, parte da situação traumática por excelência que marca várias gerações de alemães: a segunda guerra mundial, o nazismo, a perseguição aos judeus. São os traços dessa memória que ele se aplica a refazer em algumas das suas obras. Em História Natural da Destruição, o autor trata, sob a forma de ensaio acerca da relação entre guerra e literatura, o modo com os alemães se apropriaram dos acontecimentos da guerra. No romance Austerlitz é a recuperação da memória pessoal de um judeu que, perante a ameaça nazi, foi enviado em 1939, ainda criança, da Checoslováquia para Inglaterra, onde acabaria por perder os laços com a sua origem. Estamos, com estas obras, perante o trabalho sobre as duas memórias, a colectiva e a pessoal. Os romances Vertigo, Os Emigrantes e Os Anéis de Saturno expandem este trabalho da memória para os campos da literatura, da emigração e da história.

Com W. G. Sebald, a literatura confronta-nos com o recalcado pela memória, com aquilo que na sociedade e em nós persiste em ocultar-se, apesar de nunca deixar de sinalizar a sua presença através de sinais e símbolos muitas vezes obscuros. Neste sentido, a literatura é ainda um projecto iluminista, ao tentar trazer à luz o que está escondido e que pode ajudar a compreender quem somos e o que fazemos. A leitura de Sebald torna-se assim imperativa. Ao aliar a grande qualidade narrativa e ficcional à dimensão da memória perdida, o escritor alemão reactualiza, alargando-o a uma dimensão social, o projecto de Marcel Proust, que tomou forma no Em Busca do Tempo Perdido. Em tempos de grande conturbação como os actuais, a memória não é apenas um lugar de consolo, mas ainda uma luz que, ao lado da razão, nos pode guiar na escura noite dos tempos.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Cinza de Pedra - 1. Um sopro na água do coração

Ángel Orcajo - Cenizas (1994)

1. Um sopro na água do coração

Um sopro na água do coração
e no fundo trémulo do peito
uma luz de giestas
arde na cinza de pedra
e cai na casa de sombra
onde adormeço.

(Cinza de Pedra, 1978)

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Livro do Êxodo - 33. Os anjos de salitre

Marc Chagall - Abraham and the Three Angels (1958-60)

Tudo arde em lume brando, a porta escancarada por onde anjos desvairados entram e saem. Ouvem-se gritos. Um risco de cal ainda preso na parede, mas o salitre já a tomou por dentro, cresce para as ombreiras, primeiro das janelas, logo de seguida da porta, por fim infiltra-se no coração e dizima, célula a célula cada corpo que vai pelas ruas e navega pelo ar da tarde, absorvendo os odores da cidade, estranhos odores são, enquanto os carros passam, tão tristes, com um rasto de ar contaminado, com uma pressa de silêncio, com uma angústia de rosas desfolhadas à janela da melancolia. Os candeeiros cavalgam a tarde e em tropel abrem a noite à víscera da solidão.

Há anjos presos nas gruas, vejo-os se saio pela porta, infestam a cidade, anjos descuidados, pássaros entontecidos na ânsia de humanidade, voam sem memória, olhos desatentos, presos aos transeuntes, lá em baixo vão, cegos e confiantes no seu anjo, e este já preso, o ferro espetado na asa, uma dor não sentida no quase corpo que é o seu. Ondulam assim os anjos deste dia, e sentem vertigens, o fumo os toca, tossem e esfregam com dedos de arame os olhos chorosos. O cheiro da cidade contamina-os, se tudo arde em lume brando e pelas escancaradas portas entra e sai gente de gravata no colarinho, o fato escuro e a camisa acesa, carros que passam, sirenes cortam as palavras, e, se falam, prendem os olhos e seguem na inquieta velocidade, cidade fora, a arder no lume de onde me chamaste.

E havendo eu tirado minha mão, me verás por detrás; mas minha face não se verá, nem o nome te direi, apenas enumerarei os sais e abrirei perante o teu olhar um comércio de ácidos e bases, os sais amargos de anjos salitrados a voar sobre a cidade, em funesto trabalho, o de compor lojas com mãos de pelica e um fato de xadrez e mangas de camurça. São assim os dias e as noites nesta cidade de anjos avessos, tomados pelo desconsolo, ébrios de escuridão. Mais tarde – quantas avenidas mais tarde? – soube o nome que eles me deram. Tinha um som de calcário, e diziam-no em ritmo lento, como se comessem nêsperas e falassem devagar, a boca enrugada e, nos dentes cariados, houvesse uma violeta pilhada na venda da esquina, agora para sempre fechada.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Os banqueiros excepcionais

Gustavo - Banquero abanderado, bailando con una serpiente africana (1986)

A telenovela da entrega da declaração de rendimentos e património (ver aqui), por parte dos administradores da Caixa Geral de Depósitos, no Tribunal Constitucional, tal como é exigida pela lei, está a ultrapassar todos os limites da sensatez. Não faço ideia se os actuais administradores foram convidados com a promessa que não teriam de o fazer. Tudo é possível num país como Portugal, e o Partido Socialista, por vezes, tem uma visão muito própria da realidade e da legalidade. Confrontados, porém, com o dever de o fazer, parece-me inaceitável o jogo a que se dedicam. 

Esse jogo não apenas representa um desgaste político para o governo que os convidou, embora isso seja irrelevante (e talvez o governo o mereça por ter convidado esta gente), como lança um véu de incerteza sobre a própria instituição, afectando não só o accionista, o Estado Português, como os próprios clientes que vêem o banco em que confiaram a ser envolvido num braço de ferro entre os putativos génios financeiros descobertos pelo governo e as leis da República. 

Em tudo isto há duas coisas que me fazem muita impressão. Em primeiro lugar, se os senhores administradores não querem depositar no Tribunal Constitucional, segundo as regras em vigor, as suas declarações de rendimentos e património, então demitam-se e vão à sua vida (ou estão à espera de ser demitidos?). Em segundo lugar, parece-me extraordinário que estas pessoas vejam a sua situação como uma excepção e, excepcionais que são, julguem que a lei comum não se lhes aplica. Frequentar as conselhos de administração da banca será por certo muito proveitoso, mas parece não ajudar nada a ter uma visão clara sobre a realidade, como se tem visto nos últimos anos pelo mundo fora.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Alma Pátria - 4: Quarteto 1111 - A Lenda d'El Rei D. Sebastião




Segundo informações encontradas na Wikipedia, o EP A Lenda d'El Rei D. Sebastião, do Quarteto 1111, foi o primeiro disco português a ser tocado no célebre programa Em Órbita, do Rádio Clube Português. Era o rock progressivo da paróquia mesclado de música tradicional, para combinar com o sebastianismo do tema e a filosofia da saudade. Estávamos em 1967 e o fechamento do país ao mundo também passava por aqui. Mas não há ninguém, da minha geração e das que a bordejam, a jusante e a montante, que não tenha ouvido muitas e muitas vezes a canção do grupo de José Cid. A saudade, por esta pobre terra, sempre teve bom mercado.

domingo, 13 de novembro de 2016

Rumores de Maio 24. Uma folha de água e vertigem

León Kossoff - School Building, Willesden, May (1983)

24. Uma folha de água e vertigem

Uma folha de água e vertigem
cai da árvore da vida.
Com ela, cobrimo-nos de sal
e caminhamos exaustos,
presos ao vento do amor,
ao regaço da melancolia,
ao rude rumor de Maio.

(Rumores de Maio, 1977)

sábado, 12 de novembro de 2016

Dilemas à esquerda e à direita

Domenico Beccafumi - L'amor di Patria (1832-35)

Voltemos à eleição de Donald Trump. Se o futuro presidente dos EUA mantiver o programa que a retórica eleitoral deixou transparecer, então tanto a esquerda como a direita europeias – abstenho-me aqui da situação americana – estão confrontadas com dilemas que estão longe de as deixar confortáveis. Veja-se a esquerda. É verdade que o programa de Trump ligado às questões dos costumes, da imigração e do clima contrariam as bandeiras dessa esquerda, mas há toda uma outra dimensão programática, desde o papel das obras públicas até ao fim dos acordos internacionais de comércio, que essa esquerda advoga desde há muito. Não foi por acaso que Bernie Sanders, o ídolo americano da esquerda europeia, veio dizer que nesses aspectos está disponível para cooperar com Donald Trump. Na verdade, a esquerda não sabe muito bem o que fazer perante este dilema. Julgo que muita gente na esquerda (e não me estou a referir ao eleitor comum), embora não o diga por pudor e cálculo, prefira Trump a Clinton.

A direita europeia – e talvez ainda mais a portuguesa por razões idiossincráticas – não está numa situação melhor que a da esquerda. Trump é claramente alguém que pertence à família das direitas. No entanto, estas há muito que navegam nas águas da globalização e do liberalismo mais estrito. Essa orientação está agora ameaçada e a ameaça vem de onde menos se esperava. A direita vai começar a sofrer o confronto com duas pulsões que vivem nela. Por um lado, a pulsão liberal, a da abertura dos mercados, da liquidação de quaisquer direitos laborais e do próprio Estado social, pulsão que, em alguns aspectos, a afasta de Trump. Por outro, a velha pulsão autoritária, que tão bem casa com a tonalidade política de Trump, vem acender nela uma certa nostalgia pelas suas velhas raízes. Muita gente teme a senhora Le Pen e direita radical europeia. Talvez isso seja um equívoco. Talvez a própria direita europeia tradicional se converta a uma visão mais autoritária e nacionalista. Em Portugal, a vitória de Trump liquidou Passos Coelho, o arauto paroquial, por cálculo político, do neoliberalismo e do ordoliberalismo. O próximo líder do PSD será mais sisudo, mais adepto da autoridade, menos liberal e mais nacionalista. 

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Pôr-se no lugar do outro

Lee Krasner - Abstract #2 (1946-48)

A eleição de Donald Trump bem como o chamado brexit chamam mais uma vez a atenção para um fenómeno recorrente na vida política. Os actores, na ânsia de conquistar o poder ou de fazer valer os seus pontos de vista, acabam enredados no próprio desejo que não os deixa perceber como preconceito os preconceitos de que se alimentam e que confundem com verdades universalmente aceites. Tanto no Reino Unido como nos Estados Unidos havia muitos sintomas de um ressentimento popular crescente contra a ordem estabelecida. Esses sinais, porém, chocavam com a visão do mundo tanto dos defensores da manutenção do Reino Unido na União Europeia como dos democratas e da intelectualidade que apoiou Hillary Clinton na corrida contra Donald Trump.

É verdade que os sintomas tinham e têm uma aparência desagradável, transbordavam de coisas que, segundo os valores que prezamos, são desprezíveis. Cheiravam mal. Os sintomas, porém, não são a doença, mas sinalizadores da doença. Ao recusar lidar com os sintomas, tanto os defensores da manutenção do Reino Unido na União Europeia como Hillary Clinton e os democratas não perceberam a dor profunda que atinge parte substancial do eleitorado. Entregaram os doentes ao primeiro funâmbulo que apareceu. E os funâmbulos não se fizeram rogados. Quem quer fazer política tem de se despir dos seus preconceitos – isto é, do manto ideológico com o qual interpreta o mundo – e pôr-se no lugar daqueles que vão decidir os resultados. Há muito, porém, que as elites políticas ocidentais deixaram de saber pôr-se no lugar do outro. Ensurdeceram e os resultados são os que vemos. 

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Descrições fenomenológicas 9. A espera

Markus Luepertz - 1840 (1999)

A primeira casa, talvez a mais degradada, tinha tido, noutros tempos, cor de púrpura. Agora, um rosa desmaiado suporta os efeitos do tempo transformados em cor. Brancos, azuis, laranjas, amarelos, verdes e castanhos crescem como ervas daninhas pelas paredes. Conseguem distrair os olhos das manchas de humidades, encerrando-os num tumulto colorido que lembra o expressionismo de certas pinturas abstractas. Acede-se à porta de entrada por quatro degraus de cimento, paralelos à porta, sem qualquer protecção, que desembocam num minúsculo patamar, ele sim, com pequeno gradeamento de ferro, de onde se pode, subindo ainda um degrau, entrar na casa. A porta não desmerece das paredes. O castanho degrada-se em mil matizes que o conduzem a um bege, que ameaça ser o destino final de toda a porta. Pedaços de tinta seca desprendem-se, encarquilhados, prontos para que uma mão os arranque e jogue por terra. Em cima, ao lado das ombreiras surgem dois números de polícia, em placas brancas, esmaltadas e redondas, onde se lê 19, numa, e 21, noutra. Por cima da porta há um ventilador, quadrado, cuja grelha parece, a cada instante, desfazer-se. No lado esquerdo da porta e do ventilador, uma única janela, protegida por grade de ferro. Assenta sobre uma pequena e pretensiosa colunata. A casa do lado é mais recatada. As paredes brancas são também vítimas da usura do tempo. As manchas de humidades metamorfoseiam o branco em azuis, cinzentos e preto. Recolhida, a moradia tem um pequeno quintal, protegido por um muro gradeado a ferro, que a separa da rua. Para se entrar ali, há que abrir um portão preto composto por perfis de ferro cruzados. Sobe-se quatro degraus de cimento e, caminhando por uma pequena passagem também em cimento, chega-se à casa. O rés-do-chão tem duas janelas a ladear uma porta. Mas são quase invisíveis daqui. O primeiro andar prolonga-se para além do andar inferior e é suportado por duas colunas, formando-se assim uma varanda sombria. O portão está aberto. Um braço cresce da parede e prende-se a um corpo que, desse modo, suporta o seu peso. É uma mulher jovem, de cabelo apanhado no alto da cabeça, formando um carrapito frisado, preso por uma fita avermelhada. O vestido branco contraste com a cor negra da pele. A mulher espera com a mão esquerda na anca, o que permite que o braço desenhe um ângulo agudo. Nos olhos, há uma sombra ansiosa, que ela tenta disfarçar com uma atitude de indiferença. Os lábios tremem. Talvez sussurrem uma canção, ou orem. Talvez praguejem. Ela espera.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

American dream

Francis Bacon - Figures in a Garden (1936)

A eleição de Donald Trump tem pelo menos uma virtude. Mostra a natureza do fenómeno político. E a política tem como única finalidade a conquista do poder. Por muito que os corações benevolentes achem que a política é o lugar onde se trabalha para o bem comum, a realidade nunca se ajustou a tal benevolência. E para conquistar o poder vale tudo desde que esse tudo sirva para o fim em questão e não o ponha em causa. A vitória de Trump veio sublinhar isso mesmo.

Por norma, os candidatos põem a máscara de pessoas civilizadas e de verdadeiros cavalheiros ou damas, de uma irrepreensibilidade moral acima de qualquer suspeita. O eleitorado tem tendência para premiar esse tipo de conto de fadas. Donald Trump decidiu pôr a nu a realidade e mostrou que a política não é para cavalheiros, não é uma espécie de jogo que se disputa com fair-play. E quanto mais quebrava as regras implícitas do fair-play político mais entrava nos corações ressentidos com o mundo e a ordem moral e social deste.

A elite política e cultural não percebeu que as pessoas se cansaram de contos de fadas e, nos dias que correm, não valorizam as virtudes da gentlemanship. Aos velhos contos de fadas preferem a grande narrativa do american dream. Este é uma ilusão, claro, mas uma ilusão que não é feita de gentileza nem de fair-play. Corações irados não querem amabilidades, mas um justiceiro que seja decidido, sarcástico e rápido no manuseamento das pistolas. E foram estes corações irados com a evolução do mundo e ressentidos com as elites que abriram caminho para que Donald Trump viesse recordar o que é a política, uma dura luta, onde vale tudo, pela conquista do poder.

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Rumores de Maio 23. Poemas do 1.º de Maio (IV)

Gerhard Bondzin - The Path of the Red Banner (1969)

24. Poemas do 1.º de Maio (IV)

Escavas no coração a tormenta,
a voz perdida sobre a cal
de paredes vergadas ao sul,
às ervas trazidas por Maio.

Pétalas e astros, um tumulto.
E na fresta entreaberta do dia
cantas a lâmina de púrpura
suspensa na fuligem da mão.

(Rumores de Maio, 1977)

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Alma Pátria - 3: Maria de Fátima Bravo - Vocês sabem lá



Em 1958, o existencialismo penetrava no espírito da pátria. Não, não foi numa faculdade de filosofia, mas na canção popular. Jerónimo Bragança e Nóbrega e Sousa compõem, Maria de Fátima Bravo canta Vocês Sabem Lá. Claro que é um existencialismo fundado na saudade, mas esse é o toque nacional, um existencialismo mais bucólico e mais dado à melancolia. De resto, está lá tudo. Desde o Dasein heideggariano e o seu ser-para-a-morte, até ao absurdo de Camus, passando pela náusea de Sartre. Se Maria de Fátima Bravo fosse francesa talvez rivalizasse com a Juliette Greco na rive gauche... Aqui deve ter andado pelos festivais da canção ou pelos programas da Emissora Nacional e do Rádio Clube Português.

domingo, 6 de novembro de 2016

Livro do Êxodo - 32. De alma vendida

Georges Rouault - Os fugitivos ou o êxodo (1911)

Despojaram-se da alma, venderam-na num comércio de cerejas à beira da estrada, e agora cantam canções ázimas, a voz rouca, o peito encolhido, onde o coração bate, rio velho e tranquilo quando anoitece pela foz. Sentam-se sob o veludo solar e olham horizontes, enquanto as mãos dedilham as velhas contas, estranhas contas assim dedilhadas, e as bocas empalidecem fechadas, sem nada para dizer, sem que o relâmpago de um pensamento corte a placidez da consciência e, como uma roldana de aço, retire do fundo do poço uma palavra para dizer ou uma sílaba para soletrar, agora que o crepúsculo assobia sobre os montes com o cheiro da noite nos alforges puros do esquecimento.

Se nada lhes consola os olhos, nem a sombra nem a luz nem a treva, se nada os consola, resta pôr os pés ao caminho, pegar no mapa, traçar rotas de areia no granito dos montes, escutar o silvo do pássaro na água fria, e gritar no silêncio da garganta os nomes de Deus, se ainda não se esqueceram, e esperar a tarde em que Ele os escutará, o coração em sangue e a voz débil, tanta fora a súplica. Um líquen cor do cheiro da alfazema desponta na clareira do seu silêncio e alastra para dentro da vida, procura o alumínio e o cobre que havia pelas casas, sussurra nomes de fragâncias ultramarinas, abre uma fonte por onde goteja a saudade do coração.

Ao longe, dizem, o último lugar antes de tudo terminar, há fantasmas,  lembram esqueletos, marcham de pernas abertas, as mãos levantadas e entoam cânticos matinais, se os sinos ecoam. E assim o mundo se turva e em olham-te na face, vêem-te armaduras nos olhos, e nas mãos um alguidar, o sangue a correr, a voz irada, e no meio de tanta alegria, os corpos enlaçados, sexo no sexo, presos, tudo se aglutina, vem a noite, depois a madrugada, o dia claro, a tarde sórdida e no crepúsculo há facas pelo ar. A noite vem e torna a vir, divaga, entra pelos corações anónimos. 

Agora, calem-se. Que um furor divino se acenda e os devore.  Que ao longe se oiça o cântico do restolho queimado pela vida, a carne a apodrecer e o mênstruo há muito retirado do segredo das mulheres a escorrer pelos escombros encobertos pelas colinas. Alucinados, suspendem a voz. A noite semeia escamas de aço e desenha uma estrada de neblina na cama onde desfalecem. Compraram as últimas cerejas, apenas caroços, pedúnculos, a pele tinta a manchar a boca. Da alma, a que venderam, ninguém sabia e não há fermento que alumie o destino translúcido de uma canção.

sábado, 5 de novembro de 2016

Descrições fenomenológicas 8. A rua

Gerhard Richter - A.B., Kapelle (1995)

Naquele lugar, em dias de invernia rigorosa, o primeiro cartão de visita é a rua coberta de neve. Branca e ainda pura, vela o alcatrão e as grandes lajes de cimento engravilhado que compõem o passeio. Aqui e ali, a brancura não é suficiente para as ocultar, podem-se observar as manchas do chão, algumas negras e outras acastanhadas, que o Inverno não conseguiu, com o rigor das temperaturas e a limpidez das águas, lavar. Erguem-se três moradias, relativamente grandes, com os seus jardinzinhos pequeno-burgueses. Jardins que, mais que um gosto pela natureza ou um sentimento estético, anunciam a contradição do nosso tempo, pois são, como as casas que decoram, ao mesmo tempo o fruto do igualitarismo social reinante e a marca do desejo irreprimível da diferenciação, um pequeno e frívolo exercício para ostentar um toque distinto, dentro de uma comunidade em que a força do direito tornou todos em iguais. As paliçadas, que separam esses jardins privados e o passeio público, bem como as cancelas, que nos recordam, mais que as próprias paliçadas, a diferença entre os dois espaços e a remota possibilidade de a maioria das pessoas passar para o lado de dentro, suportam montículos de neve, em equilíbrio precário, como se assim anunciassem a fragilidade de tudo o que se vê. Também os telhados, de dupla água e telha negra, estão pintados de branco, embora, aqui e ali, se abram manchas escuras, a denunciar o deslizar das neves. Seria uma rua sem mistério, não fora o caso de ser pontuada por plátanos vigorosos, despidos de folhas, com a ramagem, de aparência acusativa, a apontar os dedos hirtos para os céus. Esta tonalidade crispada impregna o homem que, perto da moradia vermelha, está parado, quase em sentido, olhando para cima. Enquanto espera por alguém ou por alguma coisa, funde-se nos ramos dos plátanos e aponta, com o nariz afilado preso a um rosto avermelhado pelo frio, para o céu, como se maldissesse as deliberações dos deuses ou o arbítrio da natureza.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Carlos de Oliveira


A minha crónica no Jornal Torrejano.

O público é um deus vindicativo e injusto. Carlos de Oliveira, uma das grandes figuras da literatura portuguesa da segunda metade do século XX, morreu em 1981. Paulatinamente, a sua obra começou a entrar num tempo crepuscular, apagando-se da memória cultural do país, do desejo dos leitores e das estratégias do mercado livreiro. A percepção que tenho – pode estar errada – é que já ninguém, com a excepção de um ou outro especialista, lê Carlos de Oliveira. E isso não é apenas imerecido pelo autor como é uma perda para a cultura portuguesa. É claro que o mundo social sobre o qual escreveu foi tragado pela voragem do tempo e pela radical alteração do modo de viver dos portugueses, tão paroquial na sua época. Isso, porém, não explica a amnésia colectiva.

Também é verdade que Carlos de Oliveira foi um neo-realista – porventura, o mais brilhante – e o neo-realismo tornou-se anátema nos meios culturais. Contudo, o romancista e poeta gandarês nunca foi um neo-realista panfletário. Pelo contrário, toda a sua obra é de uma extrema exigência estética, onde as personagens são mais do que simples invólucros de estereótipos sociais. São gente real, com as contradições que habitam em todos os seres humanos. A sua obra romanesca distribui-se por cerca de dez anos. De Casa na Duna, 1943, a Uma Abelha na Chuva, 1953, passando por Alcateia, 1944, e Pequeno Burgueses, 1948. Exceptua-se o último romance, Finisterra – Paisagem e Povoamento, de 1978.

Este último é uma das obras da literatura portuguesa que mais exige do leitor, pois o trabalho sobre a língua portuguesa é levado a um grau de perfeição invulgar. É um romance onde a descrição tem um papel fulcral, o que, por certo, assusta um público impaciente e superficial. Não foi apenas ao nível do romance que Carlos de Oliveira foi um escritor exigente com o trabalho sobre a linguagem. A sua poesia tem a mesma marca. Há nela, o que sempre lhe foi reconhecido, um trabalho artesanal de grande depuração, como se ele procurasse, em cada poema, encontrar a essência da linguagem, encontrar a palavra poética que antecede todas as palavras gastas e sem aura que usamos no quotidiano. Uma grande poesia, num século onde houve em Portugal poetas extraordinários. Carlos de Oliveira um autor a ler e a reler.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Rumores de Maio 22. Poemas do 1.º de Maio (III)

Edouard Manet - The Toilers of the Sea (1873)

22. Poema do 1.º de Maio (III)

O sangue, rio verde e mineral,
estiola no barco incendiado,
perdido na sílica da noite,
no vendaval que coalha
o vermelho furor do silêncio.

(Rumores de Maio, 1977)

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Fronteiras

Mateo Vilagrasa - Frontera (1988)

As fronteiras são divisórias equívocas. Separam os países mas sempre foram muito permeáveis. Hoje, porém, essa permeabilidade cresceu exponencialmente. Pior, as fronteiras desmaterializam-se em alguns aspectos para ganharem sentidos cada vez mais complexos. Por exemplo, a eventual vitória de Donald Trump nas eleições americanas - uma possibilidade cada vez mais real - seria um problema que afectaria essa nossa fronteira imaterial, devido ao impacto que isso acabaria por ter também na Europa e logo em Portugal.

Um outro caso, já nada imaterial, é o que diz respeito à nossa fronteira física a Sul. Os estados ibéricos devem olhar sempre com muita atenção para o que se passa no norte de África. Por exemplo, este caso em Marrocos (ver aqui e aqui) deve ser observado com alguma inquietação. Qualquer perturbação do Reino de Marrocos pode ter repercussões inimagináveis na Península Ibérica. Quem pensar que Portugal só tem fronteira com Espanha está enganado. A nossa fronteira sul é extremamente importante. Uma agitação política persistente em Marrocos - ou na Argélia - seria uma oportunidade para o radicalismo islâmico criar um ninho de víboras pronto a perturbar a vida em Portugal e Espanha.

Se as fronteiras sempre foram importantes, hoje em dia, contrariamente ao que se propagou, são de uma extrema importância. Essa importância advém-lhes não só da sua desmaterialização devido à globalização, o que as torna complexas e incertas, mas também das suas antigas funções que estão longe de estar esgotadas. Essas funções implicam a divisão do território. O que significa que aquém dessa fronteira se vive de uma maneira que pode ser radicalmente diferente da forma como se vive além dela. Se as coisas se complicarem no norte de África, perceberemos de imediato a importância da fronteira sul de Portugal. Convém não nos deixarmos iludir pela retórica infantil de um mundo sem fronteiras.

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Uma praga

A minha crónica em A Barca.

Os telejornais tornaram-se uma praga sem fim. O caso da fuga de um presumível homicida veio, mais uma vez, mostrar que há um conflito entre mercado e informação. O mercado televisivo, medido pela publicidade, exige espectadores. O problema que se coloca é então como prender as pessoas à televisão. A estratégia é simplória mas parece dar resultado, pois continua a ser aplicada e ampliada. Transforma-se a informação em narrativa, na qual se procura um enredo que conduza a um desenlace e mantenha os espectadores excitados. Para isso, utilizam-se enormes equipas de repórteres, criam-se personagens avulsas – os populares que são continuamente entrevistados – e peripécias para a animar a história.

O que se passa com os crimes é apenas um exemplo da maneira como a informação televisiva é trabalhada actualmente. Um pequeno conflito numa escola em torno da falta de professores ou de funcionários segue o mesmo esquema, tal como o orçamento de Estado, uma eleição política, um atropelamento, uma vitória desportiva, um desastre aéreo, etc., etc., num processo de nivelamento narrativo de tudo. O filósofo François Lyotard fala, na obra La Condition Postmoderne (1979), na morte das grandes narrativas (religiosas ou ideológicas). Esta morte é uma janela de oportunidade para as pequenas narrativas, nas quais qualquer assunto, importante ou não, se torna ocasião para contar histórias, para ficcionar, no sentido negativo do termo, e para dar aos consumidores uns momentos excitantes.

A excitação narrativa é o contrário da informação. Esta visa dar um conhecimento dos factos às pessoas e não entretê-las e excitá-las. Apela à sobriedade para que se possa tomar posição informada e racional. O que assistimos nos longos telejornais é à destruição desta antiga função. A objectividade jornalística foi substituída pelo confronto de múltiplas subjectividades populares que debitam trivialidades e redundâncias, transformando o jornalista num mediador de inanidades. Aliás, o trivial e o redundante são a imagem de marca desta nova informação. O preço desta estratégia comunicacional, rendida ao mercado, é paradoxal. Por um lado, vive da excitação contínua do espectador. Por outro, gera neste apatia por tudo o que é essencial. A informação transformou-se num factor de alienação contínua. Uma praga.