Marc Chagall - Abraham and the Three Angels (1958-60)
Tudo arde em
lume brando, a porta escancarada por onde anjos desvairados entram e saem. Ouvem-se
gritos. Um risco de cal ainda preso na parede, mas o salitre já a tomou por
dentro, cresce para as ombreiras, primeiro das janelas, logo de seguida da
porta, por fim infiltra-se no coração e dizima, célula a célula cada corpo que
vai pelas ruas e navega pelo ar da tarde, absorvendo os odores da cidade,
estranhos odores são, enquanto os carros passam, tão tristes, com um rasto de
ar contaminado, com uma pressa de silêncio, com uma angústia de rosas
desfolhadas à janela da melancolia. Os candeeiros cavalgam a tarde e em tropel abrem
a noite à víscera da solidão.
Há anjos presos
nas gruas, vejo-os se saio pela porta, infestam a cidade, anjos descuidados,
pássaros entontecidos na ânsia de humanidade, voam sem memória, olhos
desatentos, presos aos transeuntes, lá em baixo vão, cegos e confiantes no seu
anjo, e este já preso, o ferro espetado na asa, uma dor não sentida no quase
corpo que é o seu. Ondulam assim os anjos deste dia, e sentem vertigens, o fumo
os toca, tossem e esfregam com dedos de arame os olhos chorosos. O cheiro da
cidade contamina-os, se tudo arde em lume brando e pelas escancaradas portas entra
e sai gente de gravata no colarinho, o fato escuro e a camisa acesa, carros que
passam, sirenes cortam as palavras, e, se falam, prendem os olhos e seguem na
inquieta velocidade, cidade fora, a arder no lume de onde me chamaste.
E havendo eu
tirado minha mão, me verás por detrás; mas minha face não se verá, nem o nome
te direi, apenas enumerarei os sais e abrirei perante o teu olhar um comércio
de ácidos e bases, os sais amargos de anjos salitrados a voar sobre a cidade,
em funesto trabalho, o de compor lojas com mãos de pelica e um fato de xadrez e
mangas de camurça. São assim os dias e as noites nesta cidade de anjos avessos,
tomados pelo desconsolo, ébrios de escuridão. Mais tarde – quantas avenidas
mais tarde? – soube o nome que eles me deram. Tinha um som de calcário, e diziam-no
em ritmo lento, como se comessem nêsperas e falassem devagar, a boca enrugada e,
nos dentes cariados, houvesse uma violeta pilhada na venda da esquina, agora para
sempre fechada.
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