Pablo Palazuelo - Orto V
A luz da manhã entrava pela janela e desenhava uma fronteira entre o
que logo era visível e uma zona sombria que obrigava o olhar a uma longa
habituação. Nessa obscuridade pressentiam-se presenças, talvez de objectos, mas
isso gerava no espectador um sentimento de incongruência, pois a primeira
sensação que se tinha era a de vazio. Onde a luz incidia com mais furor, no
centro da divisão, talvez um quarto, havia, no chão, uma gigantesca almofada
vermelha, rectangular, do tamanho de uma cama de casal, guarnecida, nos topos,
com faixas de pequenas cordões dourados que mal tocavam o soalho. Num dos
cantos da almofada, o que mais próximo estava da janela, havia um enorme prato,
daqueles que servem para reter a água que se desprende de algum vaso com
plantas ornamentais, talvez uma aspidistra, tão em uso nessa época. Estava
pejado de pontas de cigarros, papéis rasgados, chamuscados aqui e ali, uma
velha esferográfica de plástico transparente, sem carga e sem préstimo, aparas
de unhas e, incompreensivelmente, um relógio, misturado com a cinza. Sobre essa
almofada gigante, que alguém desatento poderia confundir com um tapete, havia
uma outra, minúscula, cor de pérola. Sustentava a cabeça de um homem moreno, de
cabelo negro, com um bigode regular sob um nariz pequeno, dirigido para cima,
quase feminino. As pernas, vestidas por calças de ganga, presas por um cinto
castanho de cabedal, e os pés, com botas de carneira, estendiam-se sobre a
almofada gigantesca. O tronco estava despido. Um relógio de mostrador negro,
idêntico ao que jazia entre cinzas e pontas de cigarros, ornamentava o pulso do
braço direito, que, como o esquerdo, se estendia inerte pelo chão. A luz da
manhã, uma luz fria, mas intensa, desenhava um auréola naquele corpo. Do canto
esquerdo da boca, corria um fio de sangue, encontrava o caminho entre a barba
por fazer há vários dias, escorregava, deixando um mancha viscosa de encarnado
no pérola da almofada, e fundia-se no mar vermelho do que era, naquele
instante, um leito de morte. Uma porta aberta deixava pressentir uma ausência
ou a sombra de uma solidão. Olhava-se para o homem, mas, de imediato, o olhar
fugia, talvez assustado pela morte, saltitava pelas paredes vazias, vagueava
entre a luz da janela e a obscuridade que se adivinhava para além da porta do
quarto, para se prender, como que enfeitiçado, no relógio perdido no cinzeiro
improvisado.
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