Nadir Afonso - Teerão
Expulsos fomos dos lugares, os
mais veneráveis. A porta fechou-se, o bosque, sagrado bosque diriam, ardeu e
nas labaredas voaram os pássaros de Apolo, os corvos brancos da cidade. Os
milhafres há muito haviam partido para os campos devastados da melancolia, para
as fontes imersas na bruma da tarde. Ao longe, tão ao longe, ainda soam
harpejos, o som das escavadoras, o canto das gaivotas, no infindável anil do
mar, o marulhar das águas nos esgotos pútridos das avenidas. Nelas, as tão
solitárias avenidas, a vida mingua e desparece, perdida não se sabe onde,
levada não se sabe por quem.
A cidade já não é uma cidade de
comércio aberto para as ruas, gente que a correr, as mulheres de sombrinha,
homens escondidos a espreitar e raparigas sedentas, os olhos a luzir e a boca a
salivar. Sobe-se e desce-se, conquista-se colina a colina, em combate corporal,
a espada erguida, a mão pelo corpo, um braço decepado, a perna partida. Se a
boca para um seio vai, logo sangram as espáduas ao som dos fuzis, no estrondo das
bombas que de longe caem. Enumero: alumínios, vidro acrílico, betão armado,
verga de ferro, o néon, e ainda o plástico e a madeira e o mármore. Tudo se
confunde, no incêndio da noite, bombeiros de carros cariados, água seca ao
entrar no mar, uma árvore derrubada entre bolas de naftalina e um coro de gatos
enfrenta a multidão na rasura da avenida.
Um dia, a tarde caíra, ela veio e
sentou-se. A saia subiu pernas acima. Olhou ao longe, o mar a entontecia, e
tomou duas tábuas de pedra em sua mão e desenhou bosques e pássaros e flores e
figuras de homens e de mulheres. Dizia: estes são deuses e deusas, imortais são
e se a sua voz não escutamos não é que tenham emudecido. Prendemos os ouvidos
na pressa mecânica dos dias e só escutamos o rumor dos cilindros nas ruas, o
bater pneumático do martelo, o ronco com que os automóveis, na pressa que
levam, adormecem. A pedra, no labor daquela mão, ganhou vida. Primeiro
respirava, logo adormecia e se ela a acordava um riso no silêncio medrava.
Assim, acabou a tarde e veio a
noite e tudo era agora banhado por um rio. Cidade inquieta na água do rio, cidade
de margens de pedra abertas ao labor dos olhos. A mão, pois do braço pendia,
trabalhava, umas vezes cortava, outras esculpia, mas enquanto ela respirava e
os seios se descobriam, tudo se iluminava. Quando a aurora chegou e anunciou o
dia, o incêndio começou. A porta fechou-se e eu, preso pela mão, olhei: os
pássaros de Apolo partiam e, por eles protegidos contra os ventos, vi dois corvos
brancos. Não grasnavam, não sorriam, apenas voavam. No incendiado silêncio do
coração, caiu uma noite de pedra e gaivotas azuis a voar rente ao chão. A
cidade é agora uma saudade, a leve melancolia de um domingo à tarde, o sonho
nunca sonhado do meio-dia.
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