Georges Rouault - Os fugitivos ou o êxodo (1911)
Despojaram-se da alma, venderam-na
num comércio de cerejas à beira da estrada, e agora cantam canções ázimas, a
voz rouca, o peito encolhido, onde o coração bate, rio velho e tranquilo quando
anoitece pela foz. Sentam-se sob o veludo solar e olham horizontes, enquanto as
mãos dedilham as velhas contas, estranhas contas assim dedilhadas, e as bocas
empalidecem fechadas, sem nada para dizer, sem que o relâmpago de um pensamento
corte a placidez da consciência e, como uma roldana de aço, retire do fundo do
poço uma palavra para dizer ou uma sílaba para soletrar, agora que o crepúsculo
assobia sobre os montes com o cheiro da noite nos alforges puros do
esquecimento.
Se nada lhes consola os
olhos, nem a sombra nem a luz nem a treva, se nada os consola, resta pôr os pés
ao caminho, pegar no mapa, traçar rotas de areia no granito dos montes, escutar
o silvo do pássaro na água fria, e gritar no silêncio da garganta os nomes de
Deus, se ainda não se esqueceram, e esperar a tarde em que Ele os escutará, o
coração em sangue e a voz débil, tanta fora a súplica. Um líquen cor do cheiro
da alfazema desponta na clareira do seu silêncio e alastra para dentro da vida,
procura o alumínio e o cobre que havia pelas casas, sussurra nomes de
fragâncias ultramarinas, abre uma fonte por onde goteja a saudade do coração.
Ao longe, dizem, o último
lugar antes de tudo terminar, há fantasmas, lembram esqueletos, marcham de pernas abertas,
as mãos levantadas e entoam cânticos matinais, se os sinos ecoam. E assim o
mundo se turva e em olham-te na face, vêem-te armaduras nos olhos, e nas mãos
um alguidar, o sangue a correr, a voz irada, e no meio de tanta alegria, os
corpos enlaçados, sexo no sexo, presos, tudo se aglutina, vem a noite, depois a
madrugada, o dia claro, a tarde sórdida e no crepúsculo há facas pelo ar. A
noite vem e torna a vir, divaga, entra pelos corações anónimos.
Agora, calem-se.
Que um furor divino se acenda e os devore. Que ao longe se oiça o cântico do restolho
queimado pela vida, a carne a apodrecer e o mênstruo há muito retirado do
segredo das mulheres a escorrer pelos escombros encobertos pelas colinas. Alucinados, suspendem a voz.
A noite semeia escamas de aço e desenha uma estrada de neblina na cama onde
desfalecem. Compraram as últimas cerejas, apenas caroços, pedúnculos, a pele
tinta a manchar a boca. Da alma, a que venderam, ninguém sabia e não há
fermento que alumie o destino translúcido de uma canção.
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