O debate teórico e a discussão pública sobre questões políticas estão
há muito cativos da oposição entre liberalismo e socialismo. As categorias e as
práticas defendidas por ambos os campos afrontam-se e enfrentam-se pelo menos
desde o século XIX. De certa maneira, a reacção socialista ao liberalismo tomou
o lugar da reacção aristocrática, e solidificou uma interpretação do mundo que
parece ser a única possível, transformando esse conflito no motor da vida
pública. Mesmo a emergência dos chamados partidos Verdes, com as suas políticas
em torno da ecologia, e o aparecimento de causas, mais ou menos transversais ao
espectro político, referentes a direitos específicos acabaram por ser absorvidos
pela guerra civil dos herdeiros do Iluminismo, pela clivagem entre liberais e
socialistas.
O problema que vale a pena pensar, do ponto de vista da teoria
política, é se essa clivagem ainda permite perceber e pensar a realidade que
vivemos. Percebe-se que os liberais, nas suas diversas modalidades, desejem
continuar o debate com o socialismo. É a forma que eles têm para solidificar e
eternizar a sua vitória, é a estratégia seguida para ocultar as brechas que se
abrem no seu próprio campo. Mas a entrada em jogo de novas realidades implica
um reformular das velhas dicotomias. Alguns exemplos. Na China, é um regime antiliberal
que permite o aparecimento de um capitalismo ultraliberal na própria China e, concomitantemente,
o reforço das posições liberais no Ocidente. No mundo árabe, tudo indica que a
liberalização política criará espaço para modos de vida iliberais. Por fim, no
Brasil é uma governação ideologicamente antiliberal, de carácter socialista,
que consegue de forma mais consequente o desenvolvimento capitalista do país,
ao ponto de torná-lo numa das grandes potências emergentes na cena política
mundial. Os exemplos poderiam multiplicar-se.
Esta contaminação de categorias teóricas e de práticas políticas
mostra que algo na velha narrativa do conflito liberal-socialista está já
ultrapassado. Isto significa que os próprios problemas como o da injustiça
social, da pobreza, do desenvolvimento e repartição de bens precisam de um novo
mapa categorial e da construção de novas narrativas sobre a questão política.
Há um coisa que, no entanto, é central. Se o Iluminismo e o projecto da
modernidade cindiram o velho edifício unificado dos regimes monárquico-aristocráticos
em dois campos (primeiro a oposição entre conservadorismo e liberalismo;
depois, a oposição liberalismo e socialismo), a nova situação será ainda mais
fragmentária, gerando múltiplas narrativas que se confrontam com as suas
categorias teóricas e os seus interesses práticos. O conflito entre liberalismo
e socialismo é um assunto da história da Europa. Mas esse mundo acabou. Há que
perceber aquilo que os outros dizem e como justificam as suas pretensões. Há
que dar atenção às suas narrativas, aos seus conceitos, aos seus interesses e
aos seus poderes. Eles já existem e estão a moldar o mundo. Nós é que ainda não
percebemos.
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