sexta-feira, 23 de maio de 2014

Primo Levi, Se Isto É Um Homem


Hesito sobre como começar a escrever acerca deste livro. A primeira tentação é, tendo em conta os dias que se vivem, a da recomendação. Deixo-a de lado, e balanço entre o título Se Isto É Um Homem e a última frase do texto introdutório: Parece-me supérfluo acrescentar que nenhum dos factos é inventado. Decido-me pela frase. A pergunta que se coloca é a seguinte: por que razão o autor teve necessidade de reforçar a injunção de Coleridge para que se suspenda a descrença? Segundo o poeta britânico, suspender a descrença por parte do leitor é fundamental para que este possa atribuir verosimilhança a uma narrativa ficcional. A suspensão da descrença é uma estratégia que, ao tomar a narrativa como se fosse verdadeira, permite o investimento do leitor na leitura da obra. Ora Se Isto É Um Homem não é uma narrativa ficcional, mas uma descrição da experiência real do autor num campo de concentração nazi, entre finais de Janeiro de 1944 e finais de Janeiro de 1945. Os factos, porém, são de tal maneira inverosímeis e tão fora da experiência comum da humanidade, que mesmo um texto descritivo e factual necessita, ecoando as palavras de Coleridge, de reivindicar a sua veracidade e sublinhar a necessidade do leitor suspender a descrença.

O título do livro, Se Isto É Um Homem, é retirado do poema que surge, a abrir a obra, como invocação. O quinto verso diz Considerai se isto é um homem. Aqui encontramos o nó da estratégia narrativa. Por um lado, há uma clara preocupação em descrever a luta, dentro do campo e da sua estrutura, para se continuar a respeitar enquanto homem. Por outro, nós encontramos uma investigação descritiva - se é que a expressão faz sentido - da natureza ontológica daquele que é enviado para um campo de concentração. Que tipo de ser é aquele que, sem cometer crime algum, é sujeito a uma experiência, que mais tarde ou mais cedo deveria culminar com a morte. O verso citado traz consigo um imperativo: Considerai. Primo Levi é Químico de formação, um homem de ciência, e isso reflecte-se na forma como descreve a experiência por que passou. Um sujeito que observa um objecto de investigação, eliminando o pathos e tentando iluminar, pela descrição, a razão do acontecido.

A experiência do Lager (campo de concentração) é um desafio à definição tradicional de homem. Este, desde a época clássica dos gregos, é definido como animal racional. Como pertencente ao género animal e, dentro deste género, como tendo uma diferença específica, a racionalidade. A estratégia nazi, relativamente aos judeus, é cindir o género e a diferença específica. Ao acentuar a animalidade dos judeus e ao suprimir-lhe a dimensão racional - aquela que, na filosofia de Kant, torna o animal humano em pessoa - permite-lhes, sem qualquer problema moral, levar a cabo o gigantesco programa de genocídio de um povo, o qual, devido à cisão operada, é pensado como mero rebanho. Tanto o transporte desde Itália - onde Levi é preso com outros resistentes antifascistas - como os primeiros momentos no Lager são a realização dessa desracionalização dos prisioneiros. As condições de transporte assemelham-se, talvez sejam mesmo piores, àquelas em que seria transportado o gado. Chegados ao destino, os prisioneiros são despidos, tosquiados e tatuados com um número.

Não se perceberá nada deste processo de desracionalização dos homens se não se tiver em conta que ele é um processo que nasce da razão e tem uma estrutura profundamente racional. Por exemplo, os prisioneiros que são escolhidos para trabalhar (os outros são escolhidos para morrer) ouvem a descrição meticulosa das condições onde vão exercer o seu labor. Tudo obedece a uma lógica racional, de uma razão calculante e eficaz, que aplica à desracionalização dos prisioneiros as técnicas de eficiência e de eficácia originadas na razão moderna e iluminista, e que estão presentes tanto na razão de Estado como na lógica organizacional da empresa moderna. Partes substanciais da obra são dedicadas ao trabalho dos prisioneiros. O conceito que se deve usar não é o de trabalho, mas, e na sequência de Hannah Arendt, o de labor, esse esforço físico do animal laborans, do escravo. O labor no Lager tem uma dupla função. Por um lado, supre as necessidades de mão-de-obra dos alemães, e, por outro, sublinha, em cada dia, o estatuto de animal não racional dos prisioneiros. O labor é uma estratégia de desracionalização do animal humano e de aniquilação do estatuto moral da pessoa.

Nestas circunstâncias, o dilema que se põe a cada prisioneiro é se fará parte dos eleitos - isto é, dos que vão sobreviver - ou dos danados - os que morrem. É na luta pela pertença ao primeiro grupo que se coloca a dimensão moral transportada pelo título. O Lager é um ambiente social fervilhante, onde homens destituídos da sua condição moral de pessoas tentam, desesperadamente, manter-se na vida, isto é, preservar a sua dimensão animal. A questão moral pode-se enunciar assim: aquele que sobrevive deve-o à sua aniquilação como pessoa moral ou a sobrevivência foi acompanhada pela preservação do respeito por si mesmo. O que se descobre nas descrições de Primo Levi é que são múltiplas, e por vezes nada honrosas, as estratégias de sobrevivência. Tudo o que na vida fora do Lager está recalcado, pelas regras de civilidade e pelas competências de socialização, vem agora à superfície. Suprimida a racionalidade moral que transforma o animal humano numa pessoa detentora de direitos, emerge uma racionalidade biológica - digamos assim - que luta para triunfar, para nunca deixar de pertencer ao grupo dos eleitos, independentemente dos expedientes usados.

Esta racionalidade biológica é o outro lado da racionalidade calculante que os alemães, com os seus delírios étnicos e os seus planos de genocídio, põem em acção. O Lager  foi o lugar de uma gigantesca experiência biológica e social, um lugar onde se pôde observar o animal humano separado da razão que o torna em pessoa moral, e reduzido à sua condição de animal social. Mas esse lugar infernal que Primo Levi, com a sua razão de cientista, nos dá a ver é ainda uma outra coisa. É um espelho da sociedade alemã, na qual a própria razão, de tão hipertrofiada, se tornou em desrazão. É o espelho de uma nação onde o poder, ao perder todo e qualquer limite, se tornou absoluto e, por isso mesmo, lugar do mal absoluto. A razão pura, fora dos limites que a constrangem, torna-se na mais pura loucura, no arbítrio absoluto. O Lager é o sintoma, a prova e o espelho disso mesmo.

Primo Levi (2011). Se Isto É Um Homem. Alfragide: Teorema. Tradução de Simonetta Cabrita Neto.

2 comentários:

  1. Não foram muitos os homens que sobreviveram ao estádio " Se isto é um homem". E os que lograram não voltaram a ser aqueles homens, mas outros, duplamente marcados.
    Patético é perceber que os homens, os outros, ficaram sem memória ou, o que é pior, ignoram-na.

    Um abraço

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    1. O Primo Levi acabou por suicidar e, agora, parece que estamos dispostos, de novo, para outro suicídio colectivo.

      Abraço

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