domingo, 27 de maio de 2012

Do poder pastoral à arte de marear

daqui

Estou a ver se me lembro de onde e de quando me dei conta. Terá durante o meu primeiro passeio ao longo do Bund, em Xangai, em 2005? Ou no meio do smog e da poeira, em Chongqing, enquanto ouvia um funcionário do Partido Comunista descrever uma montanha de escombros como futuro do centro financeiro do Sudoeste da China? Isto passou-se em 2008, e de certa forma impressionou-me mais do que o espalhafato sincronizado da cerimónia de abertura das Olimpíadas, em Beijing. Terá sido no Carnigie Hall, em 2009, enquanto ouvia hipnotizado a música de Angel Lam, a jovem compositora chinesa deslumbrantemente dotada que personifica a orientalização da música clássica? Julgo que só naquela altura compreendi verdadeiramente a primeira década do século XXI, que estava prestes a terminar: estamos a viver o fim de 500 anos de ascendência ocidental. (Nial Ferguson (2012). Civilização - O Ocidente e os Outros. Porto: Civilização Editora)

O fim da ascendência ocidental está ligado à emergência de outras potências, sendo a China apenas uma entra elas, embora a mais importante e aquela que, de forma mais óbvia, representa um factor de peso na desagregação dos consensos políticos que existiam nos países europeus até à Queda do muro de Berlim e ao processo de globalização que daí decorreu. Independentemente das causas próximas que desencadearam as várias crises que atingem múltiplos países europeus bem como a Europa tomada no seu todo, o problema central está ligado à forma de fazer política numa situação que é radicalmente nova.

A modernidade desenvolveu-se segundo um modelo político que Michel Foucault caracterizou, a partir da leitura que faz da história do cristianismo, como poder pastoral. Vale a pena perceber alguns traços dessa perspectiva. O objectivo final do poder pastoral, no âmbito do cristianismo, é assegurar a salvação individual. Por outro lado, o pastor não é apenas aquele que comanda, mas alguém que deve estar preparado para se sacrificar pela vida e salvação do rebanho. O pastor responde por todo o rebanho, mas também por cada uma das ovelhas, por cada indivíduo. Outra característica do poder pastoral está ligada à transparência da consciência das ovelhas para o pastor (ver aqui e, fundamentalmente, aqui). A modernidade vai laicizar estas preocupações fazendo delas o centro das relações de poder. Facilmente percebemos como é que as questões dos interesses da comunidade e do indivíduo estão em jogo - ambas são legítimas para o poder político  agora pastoralizado -, bem como certo tipo de saberes disciplinares se tornam essenciais ou, ainda, a importância do Estado Providência.

A perspectiva de Foucault é essencial para compreender o que se passou até à Queda do muro de Berlim. Os rebanhos estavam adstritos a determinados territórios, onde a governação cuidava do todo e de cada uma das partes, gerando políticas mais ou menos consensuais, evitando grandes rupturas. Um caso interessante é o da governação de Bismarck, na Alemanha do século XIX. Um político conservador que criou o Estado Providência como forma de integrar o proletariado na consolidação do seu projecto de unificação da Alemanha. A política pastoral está ligada ao carácter sólido das instituições políticas e à sua fundação territorial. Os territórios nacionais eram, para utilizar uma expressão de Norbert Elias, a unidade de sobrevivência. A virtualização da economia, a globalização concomitante e a ascensão de novas potências vieram, segundo Zygmunt Bauman, liquefazer o mundo e as relações sociais que estavam estabelecidas. Isto permite perceber, por exemplo, por que razão nas negociações sobre o novo código laboral, em Portugal, só os trabalhadores perderam. Os compromissos interclassistas, existentes até há pouco, deixaram de ter efeito, pois o capital move-se à velocidade da luz, é nómada, enquanto os trabalhadores são, genericamente, sedentários (cf. Zygmunt Bauman). Não há pastor que consiga evitar esse efeito. O dinheiro impõe condições draconianas ao trabalho, e se este não gostar, paciência, haverá, noutro lugar, quem goste. É isto que significa a metáfora da flexibilidade.

O poder pastoral que orientava, segundo Foucault, o universo político - melhor, o universo biopolítico onde o pastor se preocupava com os indivíduos e a população - parece entrar em declínio. Quando Passos Coelho, Miguel Relvas ou Álvaro Santos Pereira saúdam e incentivam à emigração dos portugueses, estão a dizer que já não são pastores, que não querem prestar contas dos indivíduos nem, provavelmente, do rebanho. O modelo de acção política fundado no cristianismo secularizado parece ter chegado à sua exaustão. O poder demite-se da sua função pastoral e de salvação dos indivíduos. O que significa isto na prática? Desagregação das políticas sociais, nomeadamente na educação, na saúde e na protecção social.

Se podemos assinalar o fim do poder pastoral tal como foi entendido até há bem pouco, que modelos podemos encontrar como alternativa? Foucault é uma fonte inesgotável de conhecimento. Ele mostra que o poder pastoral, por exemplo, nunca existiu na antiguidade greco-latina. O modelo - encontramo-lo nos textos da altura - é o do capitão de navios, do timoneiro. Se considerarmos a situação tal como a descreve Bauman, um mundo em liquefacção, o modelo do timoneiro parece o ideal. O político hoje em dia já não é um pastor que cuida do rebanho, mas um capitão de navio que, navegando pelos mares, pretende levar a embarcação a bom porto. O poeta Walt Withman, em 1865, aquando do assassinato de Abraham Lincoln, parece ter essa consciência ao escrever: O Captain! my Captain! our fearfull trip is done; The ship has weathered every rack, the prize we sought is won...


O problema, todavia, é se o modelo do capitão de navios é pertinente para pensar, ainda que de forma heurística, aquilo que deverá ser a a acção política de hoje. O capitão de navios tem uma finalidade: conduzir a embarcação ao porto de destino. Para isso, necessita de ser competente na arte de marear e de evitar motins a bordo. Mas será que a analogia entre o capitão e o político, aquela que foi usada na antiguidade ou a expressa por Walt Withman, é pertinente? Há um aspecto em que a analogia não colhe. Enquanto o capitão do navio tem um porto por destino, do mundo político desapareceram os destinos onde levar o barco com segurança. Ter um destino significa possuir uma rota. Sem destino, deixou de haver rota. Mas isto fica para um próximo post.

2 comentários:

  1. Excelente texto, como sempre. É um prazer ler opiniões de quem sabe pensar e que quem sabe usar com inteligência as suas bases de conhecimento para o fazer.

    Concordo com tudo e, claro, vou ficar à espera do (ou de um) próximo post.

    Tenho frequentemente a impaciência de querer ver logo um caminho. Ou seja, estou a ler atentamente mas, às tantas, começo a querer descortinar a saída para o raciocínio.

    Claro que em momentos de fractura (e este momento, estes anos, são desses momentos) há uma agitação e uma confusão que precedem um novo alinhamento e, nem sempre, quando se está no meio da confusão, se percebe bem onde está a saída. Por isso, é absurdo querer ver já, com nitidez, como é que tudo se vai, um dia, reorganizar.

    Por um lado há potências económicas e financeiras fortíssimas que antes estavam do 'outro lado' como a China ou a Rússia. Depois há os EUA que andam a patinar embora, sendo maiores e mais pujantes que a UE, sobrevivam à crise com menos dificuldade crise. Depois há aqueles que antes desprezávamos por serem sub-desenvolvidos (vidé Brasil).

    Há África que é o El Dorado que é o território em que todos querem pôr o pé.

    E há a UE, tal e qual uma aristocracia decadente. Países individualmente saudosistas do seu passado, não querendo abdicar das suas tradições e, genericamente, com dificuldade em perceber que o mundo se alterou.

    E, ainda por cima, países articulados segundo um modelo pouco sedimentado, atrapalhado, entregue a burocratas sem chama nem mérito.

    E dentro deste território de países desalinhados há os pequenos poderes nacionais, as pequenas disputas partidárias, tretas.

    Penso que isto só avançará com um modelo de governo europeu forte, com um líder forte que se rodeie de uma equipa forte, gente culta (ie, não tecnocratas), em que cada país passa a região com algumas autonomias mas dependente de uma gestão económica e financeira centralizada. Mas é forçoso que haja alguém forte, representando um órgão coeso, de poder forte, que tenha competência e delegação de poder para estabelecer entendimentos com as outras super potências.

    Assim como andamos na Europa, uns com a mesma moeda, outros não, a maioria sem capacidade para emitir moeda própria e dependente de uma união cujo banco não actua como banco central, à mercê de birras nacionais (como a da Merkel) somos uma pseudo união fraquíssima, de quem qualquer investidor faz gato-sapato.

    Não sei é que reviravolta pode haver para fazer uma limpeza naquele parlamento europeu mastodôntico, para reorganizar e agilizar aquilo tudo, para reforçar poderes a nível central, garantindo que existem mecanismos de controlo, etc, etc, etc. Com os países entregues a partidos fracos cheios de gente fraca, não faço ideia de como é que se consegue sair disto.

    Por isso, vou esperar com muita curiosidade os próximos capítulos da sua 'prosa'.

    (E, uma vez mais, parabéns pelo texto. É uma raridade nos tempos que correm)

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    1. Muito obrigado pelos parabéns. Por certo, não vai ser o próximo post, pois as coisas que tenha de fazer são tantas que... Mas será um dos próximos, onde retomarei a questão do modelo de governação.

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