sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Máximas (23)

João Paulo Serafim, #0033, 2005 (Gulbenkian)

Ver com clareza no turbilhão destes dias não é uma capacidade pessoal, mas uma prerrogativa cuja proveniência e razão de ser o agraciado desconhece.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Hinos marítimos (iii)

Hein Semke, Meerlandschaft-Lofoten, 1980 (Gulbenkian)

Uma pedra casta no centro do mar.

O frágil barco do coração

navega sob a inclemência marítima da luz.

Impérios de areia e algas,

dunas, vento trespassado pelo láudano

rasga a terra debruçada sobre as marés.

 

A baía vinda da infância,

o mar lento e sem ondas, o pórtico

por onde entra o fogo do sonho,

sai o incêndio do desejo.

 

Um caderno cor de cinza marítima,

o nome escrito, página a página,

nome vindo das águas, dedilhado nas ondas,

rasurado pela luz das glicínias,

o voo das gaivotas.

Escrito, o nome é uma bússola,

a salvação dos navegantes perdidos

na vertigem do mar, na fímbria do destino,

a água fremente do mar vinhoso.

 

O cais debrua a baía,

traineiras, alarido de vozes,

a luz na sonolência da tarde.

A rebentação salpica de sal a língua,

o caminho de farol a farol,

a água inquieta na púrpura dos dias:

o silêncio da serpente na sombra do mar,

a pedra na castidade do coração.

 

(1993)

[Conjunto de três poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Os avisos da Suécia, Noruega e Finlândia

Marc Chagall, War, 1964-66

Um dos efeitos da eleição de Donald Trump é o de se ter tornado mais plausível um conflito alargado na Europa. Não por acaso, os governos da Suécia, da Finlândia e da Noruega estão a aconselhar os seus cidadãos para se prepararem para a guerra (aqui). Isto significa que, de um momento para o outro, a NATO deixou de ser uma ameaça dissuasora dos inimigos das democracias europeias, e que estas se encontram numa situação de grande fragilidade defensiva.  Numa coisa os governos dos países citados acima merecem aplauso: não escondem dos seus cidadãos o perigo que ronda as suas vidas.

sábado, 16 de novembro de 2024

Comentários (24)

Darío de Regoyos y Valdés, Nocturno, 1899

 A noite mexe-se, agita-se, demora, e no entanto,
a noite é lenta e arrasta-se
a noite é populosa
Maria Andresen

A noite é uma configuração de estrelas perdidas no céu, arrastando-se no turbilhão das eras, fugindo no espaço, escavando túneis para dormirem, presas em constelações, inertes no descanso eterno que as aguarda. Ou, então, a noite é apenas um manto de nuvens e o lençol das névoas, iluminada pelo radar da luz eléctrica, uma noite escrita nas antigas fábricas de tecelagem, agora abandonadas ao vendaval dos homens, agitados pela insónia, perdidos na palidez sonâmbula com que os seus passos rasgam a escuridão. Não; a noite pode ser ainda um mapa onde se inscreve um caminho que oferece, a quem nele se mantém imóvel, a promessa da luz e o fogo da aurora.

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Mérito e inveja


O milagre – a eventual vitória de Kamala Harris nas eleições norte-americanas – esteve longe, muito longe, de acontecer. Os americanos escolheram em consciência e disseram claramente o que queriam. Não votaram enganados ou iludidos; escolheram o pior porque queriam o pior. Votaram em Trump pelos seus vícios e defeitos, que são os vícios e os defeitos dos eleitores. Rejeitaram Harris devido às suas virtudes. Esta podia ser uma má candidata, mas dificilmente alguém pode ser um presidente mais errático e perigoso do que Donald Trump – e disso há provas. E os eleitores sabem-no. Não o escolheram porque vai engrandecer a América, mas porque é misógino, racista, pouco ou nada respeitador das instituições. Pior: escolheram-no porque ele ameaça as instituições e a liberdade.

Kamala Harris sempre me pareceu uma má candidata. Porque era mulher e porque não era branca? Também por isso, mas essa não é a questão central. De facto, Kamala Harris é tudo aquilo que o eleitor de Trump odeia. Sabemos que ele não odeia a incompetência; odeia a virtude, a vida conseguida, a capacidade de afirmação. Kamala Harris é uma mulher que não veio das elites norte-americanas, mas é refinada e transpira superioridade, apesar da simpatia. Kamala Harris foi um espelho em que milhões de eleitores norte-americanos viram a sua própria derrota existencial. Ela conseguiu aquilo que muitos desejavam e não foram capazes. Não se trata de dinheiro, mas de classe. Os eleitores norte-americanos caíram uma vez com Obama; não caíram segunda com Harris. Uma parte da derrota da candidata democrata deve-se à pura inveja e ao ressentimento que a sua presença gera.

Harris, como Obama, são casos claros de uma cultura meritocrática, fundada em concepções liberais da sociedade. O filósofo norte-americano Michael J. Sandel escreveu, em 2020, um livro com o curioso título A Tirania do Mérito. Ele argumenta que esta tirania está a corroer as nossas sociedades e a empurrá-las para o populismo. As elites meritocráticas estão a afastar-se do homem comum, e esse afastamento, juntamente com a quebra do elevador social, gera um enorme ressentimento que se manifesta nas cabines de voto. Kamala Harris era uma má candidata – isso não significa que seria uma má presidente; são coisas diferentes – porque, quisesse ou não, ela era a face dessa elite que atormenta as entranhas do homem comum. Ela perde porque foi virtuosa na sua vida, perde porque é um caso de mérito. Ora, os democratas deviam ter lido com muita atenção o livro de Sandel. O resultado é o que se viu e o que se verá no futuro.

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Trump e os trabalhadores

Álvaro Lapa, Conversa (quadro geral e exemplo), 1980 (Gulbenkian)

Alexandria Ocasio-Cortez, membro da Câmara dos Representantes dos EUA e um dos elementos mais à esquerda do Partido Democrata, ficou perplexa ao perceber que parte daqueles que a elegeram também escolheram Trump para presidente. Decidiu perguntar, aos seus seguidores numa rede social, a razão de terem votado em perspectivas políticas tão diferentes. Três respostas que podem ser consideradas exemplares: (1) "Sinto que ambos são outsiders em comparação com o resto de D.C., e menos establishment". (2)"É muito simples... Trump e você preocupam-se com a classe trabalhadora."  (3) "Trump vai arranjar-nos o dinheiro e vai permitir que os homens tenham voz. És brilhante e tens uma paixão incrível!"

Estas respostas são interessantes porque são sintomáticas; manifestam uma dor e deixam perceber a existência de uma doença ou, melhor, de várias. É verdade que tanto nos EUA como na União Europeia as instituições políticas foram capturadas pelas grandes multinacionais e as suas políticas económicas são, na verdade, uma defesa dos interesses dos grandes accionistas dessas empresas. As instituições democráticas tornaram-se aquilo que o marxismo disse que eram: formas de impor os interesses de uma classe - neste caso, muito específica e restrita - em detrimento dos interesses das outras, uma ditadura de classe, digamos assim. Isso implicou, devido aos processos de globalização e de imigração (os imigrantes vêm concorrer com os trabalhadores já existentes, o que traz a diminuição dos salários) o empobrecimento das tradicionais classes trabalhadoras, mesmo quando os países se tornam mais ricos.

No entanto, a votação dos trabalhadores norte-americanos em Trump não se deve apenas ao que poderíamos chamar a luta de classes. A terceira resposta, talvez a mais interessante, mostra duas coisas. O facto de alguém ter mais ou menos rendimento não se deve a si mesmo, ao seu esforço ou ao seu mérito. Deve-se aos políticos, isto é, ao Estado. Trump vai arranjar-nos o dinheiro. Há aqui a substituição do pensamento racional pelo pensamento mágico, onde o Estado, nas mãos do ungido, vai salvar quem está em apuros. A segunda parte da resposta mostra um outro problema quando se afirma que Trump (...) vai permitir que os homens tenham voz. É interessante que numa sociedade americana dominada por homens, onde existe uma cultura misógina e patriarcal, os homens sintam não ter voz. 

Ora, muito do sucesso na vida está relacionado com o desempenho escolar e a iniciativa de cuidar do próprio futuro através da procura de formações académicas mais exigentes e mais elevadas. Como em Portugal, também nos EUA uma grande fatia do insucesso escolar e académico é dos homens. Enquanto as mulheres, pelo seu trabalho e exigência consigo mesmas, progridem, parte substancial dos homens fica fora da formação superior, acedendo apenas a empregos mal remunerados. São estes que esperam que Trump lhes traga dinheiro e que lhes dê voz. Há um problema grave nos sistemas educativos ocidentais que está a gerar uma situação explosiva. Tal como estão estruturados estes sistemas, parte substancial dos elementos masculinos da espécie ficará de fora da formação superior, o que trará ressentimento social e fará crescer a misoginia. O problema é de difícil resolução, pois a cultura em que é educada a maioria dos rapazes é adversa à disciplina e perseverança exigidas pelo sucesso académico. Só uma sociedade muito doente elege uma pessoa como Donald Trump.

domingo, 10 de novembro de 2024

Beatitudes (74) A disciplina da dança

George C. Bell, Interpretive dancing study, 1924

São múltiplos os motivos que levam os seres humanos a dançar. A maioria, talvez, será movida pela inquietude do deus Eros. Contudo, sob os motivos manifestos presentes em cada um que dança, existe uma outra razão, mais funda e, por isso, esquecida. Dançar é a expressão de uma guerra contra a condição caída. Em cada gesto esconde-se um combate com a gravidade e um desejo de imponderabilidade, como se o céu fosse para a humanidade a casa a que só as aves, pelo seu corpo, podem habitar. E desse desejo nasce a beatitude que se espelha no corpo de quem se entrega à disciplina da dança.

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Hinos marítimos (ii)

Ana Hatherly, O Mar, 1971 (Gulbenkian)

Balança-se o líquido viscoso

entre as carumas brandas do vento,

um insecto ígneo a cintilar na noite,

preso na areia, uma dor sem nome,

a página pura rasurada pelo tempo.

 

Vieram, na maresia da aurora, marinheiros.

De uma língua rasa fizeram barcos,

enfrentaram o ondular das ondas,

o uivo da memória,

a vida quebrada na gramática do naufrágio.

 

Mareantes perdidos no visco marítimo,

algas fétidas da proa ao convés.

As palavras ecoam na fragilidade do coração,

sombras suspensas na face.

Cansados das águas, plantaram palmeiras,

árvores raquíticas suspensas nas marés.

Mastros altivos chegam na aurora,

o silêncio arcaico coberto pela névoa.

 

Sobre a voz do cais cantam sirenes,

mulheres de preto pingam pelas ruas,

o turbilhão de peixes arfa nas redes,

a noite como um pássaro pelo chão.

 

Choram sobre o mar as mulheres.

Os marinheiros, cantando, zarparam,

espera-os a voz ébria dos portos longínquos,

a seda esquiva de outras mulheres,

escorraçadas na agrura do sul,

tisnadas pelo tumulto do cansaço.

 

(1993)

[Conjunto de três poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]


quarta-feira, 6 de novembro de 2024

O problema

Lisa Santos Silva, sem título, 1972 (Gulbenkian)

Está consumado. Abateu-se uma catástrofe sobre a Europa? Possivelmente. Em primeiro lugar, porque Trump pode desinteressar-se da Europa e da sua defesa, isto é, da NATO. Depois, porque a sua vitória dá combustível aos nossos pequenos trumpinhos. É o fim do mundo? Não, ainda é cedo. Há um problema bem mais grave do que a vitória de Trump e as pretensões dos nossos trumpinhos. É o facto de a Europa ser um puzzle de interesses, de egoísmos nacionais, uma comandita de impotências. Num mundo, de grandes actores, nós europeus entretemo-nos com a gestão dos pequeninos interesses de cada um dos comanditados e dos comanditários. Este é o problema.

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Simulacros e simulações (68)


Júlio Resende, Apanha da Azeitona, 1951 (Gulbenkian)

Simulando uma dança arcaica, homens e mulheres inclinam-se para o chão, onde o fruto derrubado da árvore espera o afago silencioso das mãos. Depois, erguem-se, olham o horizonte e esperam que a luz solar deixe cair os seus raios sobre o dia, como se fosse a música que os ilumina nessa dança dolorosa vinda de mundos que o tempo apagou.

sábado, 2 de novembro de 2024

Interregno


Parece não haver grande diferença entre o actual governo e o de António Costa. Esta semelhança, porém, é meramente táctica. O governo da AD não pôde, até aqui, dizer ao que vem. Esteve a controlar a situação para evitar um chumbo do orçamento de Estado ou, o que poderia ser-lhe mais nefasto, uma aprovação com os votos do Chega. Aprovado o orçamento, o governo ganha um horizonte de vida de dois anos. Isto significa que, nesse tempo, iremos ver em acção o real programa da coligação no poder? Claro que não. O objectivo táctico de Luís Montenegro e daqueles que o rodeiam será chegar a uma maioria absoluta, com ou sem a Iniciativa Liberal, nas próximas eleições. Ora, isso será muito improvável caso o governo execute o programa que lhe anima a alma.

Sendo assim, tomará medidas que não afrontem o eleitorado do centro e o eleitorado que, pela idade, se está a aproximar da reforma. Sabe-se que há, na direita, um grande desejo de tornar as condições de reforma mais penalizadoras dos reformados. Será que isso ocorrerá na presente legislatura? Não. Vale a pena citar o programa do governo sobre as pensões de reforma: “É necessária, porém, a existência de condições de debate e discussão racional, pelo que o Governo assume que a legislatura iniciada em 2024 deve ser dedicada ao estudo (sic), com uma análise e discussão dos desafios e respostas para a Segurança Social.” Isto significa apenas que o governo não tem maioria política que lhe permita realizar aquilo que deseja. Outro caso é o da abertura das escolas não superiores à iniciativa privada (com apoio do Estado). Um desígnio do governo de Passos Coelho e de parte importante da direita ligada à educação. Sobre isso, não há uma palavra nem no programa eleitoral da AD, nem no do actual governo. Porquê? Porque afastaria muitos votos dos professores e respectivas famílias.

Com a aprovação do orçamento, entrámos na segunda fase do interregno. A primeira era fazer aprovar o orçamento e assegurar mais dois anos de governação. A segunda vai estar concentrada em alcançar uma maioria absoluta daqui a dois anos. Os portugueses só perceberão o efectivo programa da Aliança Democrática nessa ocasião. Nenhuma das reformas que os analistas e comentadores de direita exigem – e que agradariam ao actual governo – será levada para a frente antes de novas eleições. Porquê? Porque elas são a continuação das políticas de Passos Coelho e atingirão duramente parte substancial das classes médias. Ora, a Aliança Democrática precisa dos votos dessas classes médias e só as afrontará quando tiver uma maioria absoluta na mão. Até lá vivemos num interregno.

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

A Europa e o 5 de Novembro


Desde 2016, o resultado das eleições norte-americanas passou a ser decisivo para os europeus. Até aí, uma vitória republicana ou uma vitória democrata não alterava substancialmente a política externa e de alianças militares. Com a vinda de Donald Trump e a captura do Partido Republicano por uma coligação de elementos extremistas, adeptos das teorias da conspiração, alucinados anticientíficos, sectores cristãos fundamentalistas, tudo se alterou. Os EUA eram vistos como um dos pilares da democracia liberal no mundo, o lugar onde, juntamente com a Inglaterra, o regime democrático seria o mais sólido e inabalável. Hoje, percebemos que podemos, em breve, ter na Casa Branca alguém mais próximo do conjunto de tiranos que governam parte substancial do mundo do que alguém preocupado com a saúde da democracia.

Isto é dramático para a Europa, em especial para a União Europeia. Podemos ter no comando da maior potência mundial um inimigo da União Europeia e alguém apostado em destruir a Aliança Atlântica. Isto explica o pânico existente em muitas capitais europeias. Revela também outra coisa mais dolorosa para os europeus: a sua continuada irresponsabilidade. Irresponsabilidade perante os deveres de protecção militar das suas populações. Era mais barato e cómodo entregar a defesa da Europa aos americanos, sem considerar a possibilidade de que eles podiam mudar de estratégia e abandonar-nos à nossa sorte. Irresponsabilidade também na leitura política das potências que se movem no xadrez mundial, olhando para elas de um ponto de vista económico e ocultando que se poderiam, como está a acontecer, tornar poderosos inimigos políticos.

Mesmo que no dia 5 de Novembro haja um milagre e Kamala Harris seja eleita, o problema continua a colocar-se. A Europa não pode continuar a depender, para a sua defesa e a sua presença no mundo, dos humores do eleitorado norte-americano ou de um inverosímil retorno da sensatez ao Partido Republicano. Com ou sem milagre no dia 5 de Novembro, os europeus – fundamentalmente, a União Europeia e os países amigos – têm de alterar radicalmente o modo como têm olhado – e continuam a olhar, apesar das alterações impostas pela invasão da Ucrânia – a sua defesa e a forma como pensam a política externa. Se há uma coisa que os últimos tempos abalaram foi a velha crença liberal de que o comércio entre os povos porá fim às guerras. Isso não é verdade. A ordem mundial funda-se no choque entre potências que perseguem os seus interesses e não num jogo de bolsa ou na concorrência nos mercados internacionais. As coisas são o que são.

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Hinos marítimos (i)

Louis Mathieu Verdilhan, Saint-Gilles-du-Gard

Ergue-se a água na sombra da fortaleza,

o trabalho da pedra escrito pela tenaz do tempo.

Ouve-se a revolta das ondas,

enquanto homens presos à lentidão do leme

navegam em barcos de sombra

um mar maldoso,

sobrevoado pela supuração das gaivotas,

os dias gretados de Agosto.

 

Um oceano idiomático cresce no centro da Terra,

expande-se contra o horizonte azul,

as terras dobradas à lavoura do esquecimento,

os dias vergados ao fluir das ondas.

Vozes rompem a barreira do som,

são peixes a vibrar no cordame das redes,

mulheres de pele estriada, cestos de sal à cabeça,

vidas subtraídas ao dedo de Deus,

presas no anzol dançante da morte.

 

Sobre a mancha das marés, ergue-se a memória,

o vento no regaço das velas,

um livro escrito no olhar dos mortos.

Os dias marítimos são noites nos olhos cegos,

nas mãos queimadas pela geometria das redes.

Uma sirene sulca a sangria da tarde,

os barcos chegam carregados de ócio e sombras,

rasgados pelo ritmo arcaico da fome.


Maio de 1993

[Conjunto de três poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]

domingo, 27 de outubro de 2024

Philip K. Dick, Valis


Publicado em 1981, um ano antes da morte do autor, Valis, de Philip K. Dick, é um romance que combina interesses temáticos de múltiplas ordens, desde os que provêm da Filosofia até aos que se inscrevem na área da mística religiosa, passando pela literatura de ficção científica. Uma leitura possível, entre as inumeráveis que podem emergir do romance, pode fundar-se numa espécie de crítica da modernidade. Não na perspectiva de um tradicionalismo desejoso de um retorno aos tempos pré-modernos, mas na manifestação de uma subjectividade fragmentada e alienada. Se há um marco simbólico da emergência da modernidade, esse marco é o sujeito cartesiano que se afirma como fundamento do conhecimento, capaz de conhecer a realidade, desde que não deixe interferir o seu arbítrio no julgamento das crenças. Esse sujeito transparente é, no romance de Philip K. Dick, uma subjectividade tocada pela loucura, fragmentada, uma identidade cindida e perdida na realidade.

O optimismo epistemológico cartesiano dá lugar a uma desconfiança na possibilidade de conhecer a realidade. Esta deixa de ser transparente a uma razão autocontrolada, fundada em evidências garantidas pela veracidade divina, para poder ser o fruto de uma manipulação, talvez de um génio maligno, para retomar a retórica epistémica de Descartes. A razão não é suficiente para compreender um mundo manipulado. Aqui é perceptível a necessidade de o protagonista Horselover Fat, um alter-ego do autor, se aproximar da religião, na esperança de que a experiência a mística abra o caminho que a razão é impotente para abrir. É aqui que se insere o título do romance. VALIS é o acrónimo de Vast Active Living Intelligence Service, uma entidade, tida pelo protagonista como divina, que se manifestaria através de um raio rosa que o atinge e lhe abre o caminho para o questionamento da realidade e a desconstrução das representações correntes que dela fazem os seres humanos.

Contudo, naquilo que se poderia chamar uma visão pós-moderna, a mística do romance não se inscreve já na tradição cristã, mas está mais próxima de uma revivescência da gnose e de perspectivas gnósticas acerca do mundo, o que convoca a discussão sobre a origem do mal. Esta questão, a da origem do mal, liga-se ao problema da realidade. Esta é percebida pelo protagonista, a partir das suas experiências místicas, como informação. O universo seria, na sua essência, informação, uma perspectiva ontológica que combina teologia e ciência. É esta informação que pode ser interpretada ou manipulada por quem tenha o conhecimento adequado, podendo haver intérpretes de natureza benévola, como VALIS, ou outros cujas intenções sejam menos benevolentes. Isto permite integrar uma outra temática de índole filosófica na estrutura narrativa de VALIS. Trata-se do problema do livre-arbítrio. Por um lado, a percepção de que essa informação constitutiva da realidade é manipulada e a crença de que somos livres não passa de uma ilusão. Por outro lado, Horselover Fat empreende uma espécie de viagem em busca de uma realidade não manipulada, da realidade conformada por VALIS, de uma realidade onde seja genuinamente livre.

A natureza fragmentária da mente do protagonista, assim como a da própria narrativa, a pluralidade de referências e o recurso a jogos de linguagem de proveniência tão diversa como a ciência ou a teologia, tudo isto compõe uma estratégia narrativa que pretende reconstruir um mundo romanesco que dê conta da experiência existencial da América dos anos sessenta e setenta, onde uma explosão social e cultural tornou a paisagem humana complexa e de difícil decifração para subjectividades que perderam a capacidade de sustentar a certeza cartesiana. O romance de Philip K. Dick surge assim coma a reconstrução de uma experiência social e existencial de que faziam parte a guerra do Vietname, o desenvolvimento de um capitalismo avassalador, apesar da crise dos anos setenta, a explosão de experiências estéticas e artísticas e a proliferação de culturas alternativas à cultura americana dominante. Em VALIS, essa paisagem disfórica, de alguma forma, procura encontrar um sentido.

Se se percebe na leitura do romance a preocupação do autor com temas que actualmente se tornaram essenciais na vida das sociedades ocidentais, temas como o das teorias da conspiração e o das paranóias sociais, também se encontra, desse o início, uma visão crítica da contracultura que naquelas décadas de sessenta e setenta tomou conta das novas gerações, uma contracultura fundada no uso de alucinogénios como caminho de uma busca espiritual fora das exigências das estruturas do cristianismo ocidental. O suicídio de Gloria, uma amiga do protagonista, é o ponto de partida para essa crítica de uma visão do mundo na qual a juventude norte-americana tinha embarcado e que arrastou atrás dela também partes substanciais da juventude europeia. Entre as muitas coisas paradoxais que se manifestam em VALIS, encontra-se essa crítica da contracultura norte-americana num dos produtos intelectuais mais emblemáticos dessa contracultura, o próprio romance VALIS.

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Descrições fenomenológicas 71. Ruas

Antonio Clavé, A Don Pablo, 1984

Olha-se e pensa-se imediatamente num V, num V de vitória. Só depois se percebe que se há uma letra que descreva o que se observa é um Y. Uma rua única desemboca numa bifurcação. Talvez seja melhor dizer ao contrário. Duas ruas, vindas de sítios distantes, desaguam numa única via. Há nesta imagem alguma incongruência, pois espera-se que uma cidade moderna seja racional e evite a confluência de dois fluxos de trânsito numa única avenida. É isso, porém, o que acontece. Um trânsito infernal vindo de cada uma das ruas encontra-se e forma um engarrafamento que parece não ter fim. Nos passeios, os peões vão solitários, indiferentes à sorte dos automobilistas, indiferentes à sorte de quem por elas passa, também apeado, também ostentando no rosto a máscara sediciosa do alheamento. No vértice da bifurcação, um edifício, mais alto do que os outros, projecta uma longa sombra que cai como um véu sobre a avenida que forma a haste do Y. Ouve-se o buzinar dos carros e sente-se a ânsia dos condutores. Os semáforos parecem inúteis. Mudam de cor, mas tudo continua parado. Peões mais apressados evitam as passadeiras e atravessam por entre os carros, como se temessem que o passeio do outro lado se evaporasse. Há quem entre ou saia dos cafés, dos bares, das lojas ou dos prédios de apartamentos. O fumo saído dos tubos de escape forma uma nuvem e espalha um odor maligno naquele lugar. Dois condutores desentendem-se e trocam palavras iradas. Fazem gestos obscenos e calam-se. Ouve-se um grito e de seguida passa um grupo de adolescentes. Os gritos multiplicam-se. Depois esmorecem sorvidos pela nuvem de fumo, trancados entre as altas paredes dos prédios, calados pelo ruídos dos motores que retomam a marcha, numa lentidão que parece exasperar ainda mais os condutores, em cujos rostos se observam o desgosto do cansaço, sinais de loucura, ânsias homicidas.

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Ensaio sobre a luz (123)

Thomas Joshua Cooper, Cabo Espichel, 1994 (Gulbenkian)

De súbito, a luz dança sobre as águas do mar, impelida pela inquietação do vento, tocada pelas asas de um anjo de seda e âmbar, soprada por um desígnio desconhecido gerado na mente de Deus ou na imperiosa necessidade que conduz os homens na noite transbordante de símbolos e segredos.

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Nocturnos 123

David de Almeida, sem título, 1984 (Gulbenkian)

A noite desce do alto da sua loucura, paira abscôndita num lugar sem nome, treme na perturbação de vir à existência e entra pela porta do mundo, para trazer a fantasia da escuridão a quem definha no cansaço das coisas iluminadas ou entristece na cegueira trazida pelo tumulto de uma luz excessiva.

sábado, 19 de outubro de 2024

Ode ao vento

Paul Signac, Brisk Breeze from the North, 1985

No centro da terra, uma cobra conspira,

um buraco branco, uma respiração

suspensa na seiva das árvores.

Pela caligrafia, reconhecem-se os desígnios,

o vendaval da existência,

a dor surda soprada nos ouvidos,

os passos do homem sob a névoa da natividade.

 

Tinha os braços abertos ao vento.

A corola lavrada pelas mãos,

sacudida pelo ar, pelo rumor das sombras,

acesa na luz verde dos presságios.

Sobre a sua virtude crescia uma mulher,

olhava a brisa da noite, a madeira trespassada

na imobilidade da rocha,

no eco inocente inscrito na terra.

 

Pela doença respiratória vibra o mundo,

a convulsa iluminação das tardes de Outono,

cercadas de castanheiros,

os esparsos cabelos ao vento.

Um temporal tépido, uma tristeza de terra.

As vielas abandonadas, graves,

adormecidas no império do trigo ondulado,

a ceifa por fazer na minúcia aérea

da boca branca e calada.

 

É um cansaço na fronte, o portão

dobrado pelos batentes, um ruído

de plásticos pelos ares. Abandona-se

a chaga ao vento e pelo pólen das tardes

curva-se um rio, um empréstimo de células

abrasadas no vendaval sanguíneo do futuro.

 

1993

[Poema pertencente à série Cânticos da Terra Amarela]

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Imigração e escolaridade


Quando as pessoas, a reboque da demagogia irresponsável da extrema-direita, colocam o problema da imigração como um perigo para Portugal estão a entrar num caminho muito perigoso. Fechar as portas à imigração, para contentar os grupos extremistas, conduzirá a um problema dramático para a economia portuguesa e para a segurança social. As empresas precisam de trabalhadores que não encontram no país. Sem eles, não há geração de riqueza. Por outro lado, a segurança social, com o apoio a desempregados e doentes, também será posta em causa por falta de dinheiro que deveria provir de impostos sobre lucros e rendimentos do trabalho. Por fim, as próprias pensões de reforma estarão em perigo. As pensões futuras dependem em parte, cada vez mais significativa, dos descontos dos imigrantes.

Há, contudo, um problema ligado à integração daqueles que provêem de culturas estranhas ao mundo europeu, mesmo que falem português. Uma integração deficiente, como aconteceu em diversos países europeus, vai originar na segunda geração um problema de difícil resolução. A generalidade dos imigrantes económicos vem à procura de uma vida melhor para si e para os filhos. Não procuram problemas. Os portugueses sabem muito bem o que é isso. Ora, se os filhos não se integrarem, se sentirem diante deles um futuro sem esperança, podemos ter a certeza de que haverá problemas. A questão decisiva joga-se no processo de escolarização das crianças e jovens filhos de imigrantes. Um artigo do Público, noticiava que os filhos de pais estrangeiros reprovam três vezes mais do que os filhos de pais portugueses. E isto é um problema político de primeira grandeza.

Se os filhos dos imigrantes não encontrarem na escola portuguesa um caminho para uma vida realizada, se forem confinados a guetos tanto nas instituições escolares como na sociedade, então teremos no futuro problemas muito desagradáveis. As culturas de origem serão valorizadas e a nossa odiada como opressora, tal como acontece noutros países europeus. As direcções escolares e os professores precisam de ter uma consciência aguda do problema, mas isso não basta. É necessário que o Ministério de Educação aja em conformidade. O actual ministro, cuja acção tenho apreciado pela sua sensatez (até que enfim, alguém sensato), parece ter consciência do problema. Terá, porém, de tomar medidas substantivas de apoio e de avaliação do processo de integração. Sem amadorismo. Mas isso não basta. É necessário que os Municípios sejam também envolvidos no processo. São parte interessada. Na escola joga-se hoje a segurança e a paz públicas da comunidade de amanhã.

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Comentários (23)

Roger Cook, R 15, 1964 (Gulbenkian)

O poema ensina a cair
sobre os vários solos
Luiza Neto Jorge

A poética é uma pedagogia da queda e uma aprendizagem da natureza dos solos. Cair exige uma arte para que o corpo, ao tocar o chão, encontre o caminho para se erguer e reclama uma ciência dos solos para descortinar os propícios e aqueles onde nunca se deverá cair. Todo o poema é, então, o resultado de uma queda, a primeira, a mais funesta e a de consequências infinitamente gravosas. Escreve-se para que qualquer nova queda encontre uma terra macia e um solo fértil.

domingo, 13 de outubro de 2024

Eduardo de Noronha, O Conde de Villamediana


Publicado em dois volumes, no ano de 1938, O Conde de Villamediana é um romance histórico, que combina factos históricos e ficcionais. Representa uma prova de que a sombra do romantismo se prolongou, na literatura portuguesa, bem dentro do século XX. De certo modo, Almeida Garrett, com o Arco de Santana, e Alexandre Herculano, com Eurico, o Presbítero e O Monge de Cister, tiveram uma prolongada descendência, que nem o advento do Realismo e do Naturalismo, nem a chegada dos Modernismos, conseguiram pôr em causa, mesmo que a crítica e a universidade pouca atenção dêem a esse contínuo fluir, desde o século XIX, da narrativa histórica. O romance histórico nunca deixou de atrair escritores e leitores. É o caso de Eduardo de Noronha e das suas obras romanescas.

O Conde de Villamediana é uma figura histórica. Trata-se de Juan de Tassis y Peralta, segundo conde de Villamediana, que nasceu em Lisboa em 1582 (os pais acompanharam Filipe II (primeiro de Portugal) na viagem para Lisboa, quando assume a coroa de Portugal e permanece algum tempo no país.  Morreu, assassinado, em 1622, em Madrid. Foi um poeta do Barroco espanhol, ligado ao culteranismo, uma subcorrente do conceptismo, que interpretou de maneira bastante pessoal. Foi uma personalidade polémica, tanto pela sua inclinação para D. Juan como pela sua ousada sátira das elites castelhanas, as quais eram retratadas impiedosamente nos seus poemas. Isso valeu-lhe três exílios ainda no tempo de Filipe III (segundo de Portugal) e uma situação conflituosa com a nobreza espanhola no tempo de Filipe IV (terceiro de Portugal). As razões do seu assassinato nunca foram clarificadas e vão desde a vingança de nobres poderosos cansados da sua pena ou com as suas conquistas amorosas, do próprio rei, agastado com um eventual caso entre a rainha e o conde, até ao facto de estar implicado num processo de sodomia, no qual vários homens acabaram na fogueira, a que ele escapara. A figura deu origem a várias obras literárias em Espanha, tanto no século XIX como no XX.

Apesar da ligação do conde a Portugal ser fortuita, o nascimento devido a um acaso histórico e uma ou outra amante de origem portuguesa, Eduardo de Noronha utiliza-o para fazer um retrato da corte espanhola no tempo do último dos Filipes que governaram Portugal. A corte era um espaço de grande fausto e um lugar de ostentação, mas também o lugar de intriga política, de corrupção e de fomento da injustiça. Esta caracterização de um poder absoluto é o espaço ideal para fazer emergir um herói, sendo ele próprio um nobre e um dos grandes de Espanha, que desafia os poderes instituídos e as práticas políticas e sociais que giravam em torno desse poder. Um herói que é benevolente com os humilhados e intrépido perante os poderes instituídos. A narrativa é, assim, um exercício de denúncia de um poder político que oprimia a nação portuguesa, explorando eventuais contradições no seio da própria elite castelhana.

Outro elemento estrutural do romance de Eduardo de Noronha é a oposição, de inspiração romântica, entre o indivíduo e a colectividade, neste caso a aristocracia espanhola. Villamediana é uma excepção no meio de um grupo social, ou, para se ser mais preciso, uma casta. Mais do que um nobre, Juan de Tassis y Peralt é um indivíduo. Esta individualidade é sublinhada pela excepcionalidade, seja na poesia, seja no confronto, seja na sedução. A sua excepcionalidade manifesta-se também por não integrar o grupo de bajuladores nem pretender ao estatuto de protegido real. Afronta o poder não por uma causa social, mas por uma estética pessoal. Ora, é essa subjectividade radical que se torna perigosa para o Absolutismo, pois não representa um confronto, mas uma ameaça de dissolução. O absolutismo é possível onde os indivíduos estão subjugados aos imperativos da casta a que pertencem, seja à nobreza, ao clero ou ao terceiro-estado. Villamediana, tal como é concebido por Eduardo de Noronha, é uma anunciação do triunfo da subjectividade sobre a tradição e a cultura comum. É a afirmação do valor central da liberdade individual perante a ordem social marcada pela sujeição e subordinação. As aventuras e peripécias do conde são uma ruptura com a servidão voluntária com que os indivíduos se submetem ao estatuto do corpo social a que pertencem e ao arbítrio absoluto do supremo magistrado. De certo modo, Eduardo de Noronha transforma Villamediana num anunciador dos novos tempos.

Contudo, o autor não resiste em capturar o próprio herói numa das categorias mais tradicionais e conservadoras, a que está ligada à oposição entre o desejo carnal e um amor casto, de natureza platónica. O romance começa com o resgate por Villamediana de Lavínia, uma mulher pertencente às camadas populares, mas de grande beleza, das mãos do marido, que, continuamente, a maltratava. Entre o conde e a mulher resgatada nasce uma relação que se tornará arquetípica no decorrer da narrativa. Villamediana deseja-a, mas ela, amando-o, recusa qualquer tipo de comércio sexual. O seu amor é puro e contemplativo e é este amor idealizado que se torna o critério de avaliação das relações que o herói entretece com outras mulheres e, eventualmente, com a rainha. O desejo do corpo e a entrega erótica surgem como uma sombra perante a luminosidade de um intenso amor espiritualizado e casto, que é ao mesmo tempo uma fonte de frustração do desejo do amante. O romance é assim percorrido por uma dupla tensão. A primeira, a que opõe a indivíduo ao organismo social. A segunda, a que opõe eros e ágape, a paixão erótica e o amor espiritual.

A obra está concebida, apesar de não poucas vezes estar estruturada segundo o cânone de romance de aventuras, como uma tragédia. Juan de Tassis y Peralta é um herói trágico que caminha para a sua perda com a cegueira de todos os heróis das tragédias clássicas. De onde vem essa cegueira? O que lhe oculta o destino que espera por ele? Nos heróis gregos, a perda acontece devido à húbris, à desmedida. Tomado pela húbris, o herói ultrapassa a sua medida, o que se manifesta na presunção e arrogância perante os deuses. Ora, Villamediana desafia os deuses terrestres e eles conluiam-se para a sua perda. Onde se manifestam presunção e arrogância em Juan de Tassis y Peralta? Tanto na afirmação da individualidade contra o senso comum e o conformismo social, como no desregramento erótico. A morte do herói acaba por lançar um véu conservador naquilo que foi mostrado como redentor e socialmente inovador. A afirmação do self e o culto de Eros têm um preço e esse preço é a morte.

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

David Hume, Que a política pode ser transformada em ciência


“Que a política pode ser transformada em ciência” é um pequeno ensaio de apenas doze páginas na tradução portuguesa. Faz parte de uma obra que colige diversos ensaios, publicada em 1758. Em português recebeu o título de Ensaios Morais, Políticos e Literários. A tese de Hume não é que a acção política possa ser transformada numa disciplina científica, onde o agente político tenha uma evidência comparável à do cientista tanto nas suas decisões quanto nas suas acções e respectivas consequências. A cientificidade é entendida no ensaio como uma certa capacidade de deduzir as consequências a partir do se poderia chamar princípios axiomáticos, embora o filósofo escocês não utilize esta linguagem. Ele parece responder a uma pergunta que, na altura, estaria a atormentar diversos pensadores políticos. Perguntavam-se eles se não seria a boa ou má administração (governação) que faria de um regime político bom ou mau e não a própria forma de regime (a sua natureza plasmada numa constituição).

Hume responde peremptoriamente que a questão da boa ou da má governação não é, em última análise, relevante. Contudo, tem necessidade de fazer uma separação entre regimes absolutos e regimes republicanos e livres. Em regimes absolutos, onde há uma concentração do poder, por exemplo na figura de um monarca, a qualidade da governação e os efeitos no bem público derivam da administração, isto é, da qualidade daquele que ocupa o poder. Numa monarquia hereditária absoluta, a boa governação dependeria do acaso. Contudo, para Hume, o mesmo não se deverá passar numa república livre. Se acontece uma má governação neste tipo de regime, isso dever-se-á à própria constituição que não foi concebida de forma competente e honesta. Toda a boa constituição tem o dever de prever os desvios à boa governação e estar de tal modo organizada que leve mesmo aquele que é mau a governar a favor do bem público.

Onde se insere a questão da cientificidade da política? Na capacidade que há de deduzir os efeitos tanto para o presente como para o futuro a partir das normas e instituições que regem uma comunidade política, as quais funcionam como causa. O carácter do governante é irrelevante. Se as normas e as instituições forem boas, ele será coagido a governar para o bem comum. Caso não o sejam, o futuro do regime será a anarquia, a que se seguirá a tirania. É por isso que a herança mais valiosa que se pode deixar para o futuro é uma sábia legislação, aquela que permite a boa governação, independentemente do carácter do governante. Em plena época de afirmação do individualismo, David Hume propõe um caminho alternativo. A questão central está na qualidade das leis e das instituições e não no carácter e educação tanto do governante quanto dos governados. São estas que podem ser a causa ou da felicidade ou da infelicidade de um povo.

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

A planície sinuosa (iii)

Bernardo Marques, Campo - Alentejo (Gulbenkian)

Terra amarela, suja de sangue e poeira,

cariada nos interstícios dos campos.

O verde dos sobreiros,

a cortiça devorada pela água do dia.

Avistam-se rios de alcatrão.

Degolam o silêncio da planície,

o trémulo cantar das aves.

 

Sonhava vestir de cotim cinzento

e cavalgar pelos campos,

cheirar o aroma das horas,

ouvir a dor inscrita na espádua ferida.

Quão perto me aproximei,

com olhos puídos de luz,

da substância da terra,

do segredo na raiz do mundo?

 

A planície era página em branco

aberta à caligrafia do lavrador,

ao ronco hostil da máquina.

Escrita nua, indecifrável,

um código invertido na sombra do céu,

um labor arcaico ferido pela noite,

um rosto aberto ao sopro da morte.

 

Os olhos do viajante são portas

abertas ao amarelo da campina,

às mulheres ensanguentadas pela sombra.

A planície clama pela cinza do Outono,

o chão devora as cearas

e o segredo da mão que escreve

abre-se na terra amarela, suja de saibro,

ao temor da noite na fímbria da aurora.

 

1993

[Conjunto de três poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Simulacros e simulações (67)

Gabriela Albergaria, To turn around 43 (f), 2001 (Gulbenkian)
Talvez se simule uma floresta em fogo ou se interprete a tempestade que emerge da noite escura do espírito. Ou então é um sinal deixado ao viandante para que saiba que ali haverá uma lareira a arder, no cume da montanha, nos dias frios e nas noite invernosas. Ou então não é mais que o simulacro de uma vida consumida pelo incêndio das horas.

sábado, 5 de outubro de 2024

Literatura e política

Recorre-se, não poucas vezes, à ideia de que a educação de um povo será uma garantia contra as tentações totalitárias. Esta ideia parece ser corroborada pelo facto de parte significativa do eleitorado da direita radical e da extrema-direita se encontrar entre pessoas com menor habilitação escolar. No entanto, o nazismo afirmou-se e chegou ao poder num dos países mais cultos da época, aquele que produziu os grandes teóricos do espírito crítico, como Immanuel Kant. Mais do que isso, se observarmos o mundo intelectual do século passado, descobrimos que parte significativa da intelectualidade esteve comprometida com soluções políticas inimigas da liberdade. Os intelectuais que se mantiveram fiéis a um espírito de liberdade foram, não poucas vezes, objecto de desprezo.

A crença salvífica na educação deve assim ser mitigada. Contudo, é plausível pensar que um povo mais instruído terá mais capacidade para descodificar os perigos que se escondem nos discursos radicais. As Humanidades – a Literatura, a História e a Filosofia – poderão ter um importante papel na formação de cidadãos menos permeáveis ao radicalismo político. Veja-se o papel da Literatura, nomeadamente do romance. Muitas vezes, na educação escolar, os textos literários são entendidos pelos alunos como uma matéria entre outras, cuja finalidade é fornecer informação para a sua avaliação. Ora, a Literatura e, em particular, o Romance é muito mais do que isso. Se as novas gerações aprenderem a ler romances, se descobrirem o prazer de seguir uma trama narrativa com as suas peripécias, estão a submeter-se a uma educação que os leva a descobrir e a conviver com mundos diferentes, que as obras trazem em si para o prazer e a descoberta dos leitores.

Ainda mais importante é a possibilidade que o romance fornece ao leitor para se tornar outro, ao seguir as peripécias das personagens romanescas. As personagens de um romance são modelos existenciais que nos fazem pensar e permitem descobrir a pluralidade dos modos de vida, a pluralidade das crenças e a pluralidade de pontos de vista moral. Uma boa educação literária é um caminho para entender os limites dos seres humanos, para compreender a insensatez que é querer submeter todas as pessoas a uma única crença política, para discernir a diferença entre os seres humanos e, assim, valorizar a pluralidade existencial. A educação literária não é uma educação política, mas deve ser um importante, embora não decisivo, modo para educar as novas gerações para a pluralidade, a qual está na base do pluralismo político e de regimes políticos democráticos.

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Beatitudes (73) Memória e imaginação

Júlio Resende, sem título, 1948

A neblina dos dias passado cristaliza-se em imagens difusas, onde o que se viu renasce em memórias carregadas de uma estranha beatitude, aquela que nasce do que se recorda em suave conúbio com o que se inventa e contempla como se tivesse acontecido.

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Defender a democracia


O tempo que se vive tem um enorme poder para lançar um véu sobre a realidade de tal modo que os homens ficam incapazes de a descortinar. Nos finais do século XX, havia uma convicção generalizada, pelo menos no Ocidente, de que a questão do melhor regime político estava resolvida. O melhor regime estaria fundado na soberania popular, estruturado em Estado de Direito, onde todos se submetem de igual modo à mesma lei, e teria a forma de uma democracia liberal. Esta democracia era o futuro de qualquer povo, embora a velocidades diferentes, devido à diversidade dos graus de desenvolvimento económico. Este seria um passaporte para a transição de regimes autoritários para regimes liberais.

Havia sinais de que esta crença poderia ser ilusória. A revolução iraniana de 1979 derrubou uma monarquia autocrática e substituiu-a por um regime teocrático, muito longe daquilo que os ocidentais consideravam o melhor regime. Outro exemplo é o da modernização, por Deng Xiao Ping, da China pós-maoista. Teve um resultado espantoso, mas não aproximou a China um milímetro que fosse de um regime político que os ocidentais considerassem como o bom regime político. Estes dois exemplos, de uma luz cintilante, não foram lidos devidamente neste lado do planeta, onde se vivia ainda a grande bebedeira gerada pela queda do comunismo e a transição da generalidade dos países sob tutela soviética para democracias liberais. Hoje, quando se olha para o que se passa na Ucrânia, pode-se pensar que os ocidentais tinham entrado em coma alcoólico.

As crenças ocidentais sobre o melhor regime estão a ser desafiadas uma a uma. As democracias liberais enfraquecem, tornando-se iliberais ou mesmo estados autoritários. O Estado de Direito está a ser posto em causa mesmo em alguns países da União Europeia (UE). Nessa mesma UE, os eleitorados abraçam cada vez mais soluções antiliberais e actores políticos desdenhosos do Estado de Direito. Por fim, a própria noção de soberania popular, herdada das teorias contratualistas modernas e da vontade geral de Rousseau, fundamento último dos nossos regimes, está a ser desafiada do ponto de vista intelectual por teóricos ligados à direita radical e à extrema-direita. Aquilo que considerámos o bom regime político, cuja fundamentação não precisaria de defesa, deixou de ser claro para muitos eleitores. Vivemos num tempo em que se tornou essencial tornar a mostrar por que razão “a democracia é o pior dos regimes, exceptuando todos os outros”, para citar uma frase atribuída a Churchill e que talvez ele nunca tenha proferido.