quinta-feira, 31 de julho de 2014

A morte colectiva (I)

Eugene Delacroix - La matanza de Quíos (1824)

Fala-se, hoje em dia, muito em morte colectiva, em massacre, em genocídio. Mas não há morte colectiva, apenas mortes singulares: este, aquele, a outra, aqueloutra, num nunca mais acabar. (averomundo: 2007/09/12)

quarta-feira, 30 de julho de 2014

A sombra da minha sombra

Jorge Carreira Maia - Auto-retrato V (2007)

Agora havia apenas mar e areia, o som cavo das águas, o excesso de realidade daquilo que me envolvia. Os barcos tinham partido em busca de um porto que os abrigasse, ou os deixasse ancorar por alguns dias. Mas a mim – logo a mim que tinha nascido sob o signo das águas – o destino marítimo deixara de me interessar. Fechei os olhos e deixei o vento correr sobre o corpo. Perplexo, senti uma súbita explosão na carne. Tudo vacilou sob a luz que se reflectia no oceano. O vento quase me arrancou do chão. Músculos e ossos perderam a solidez, mas ainda persistiam na sua mais firme definição. Apenas a cor se ia diluindo, perdendo a diferenciação, tornando-se um difícil equilíbrio de branco, preto e cinza. Quando a primeira onde me atingiu, eu era apenas uma sombra. A sombra da minha sombra.

terça-feira, 29 de julho de 2014

Um véu de luz

Jackson Pollock - White Light (1954)

Um eléctrico azul passa na correnteza da rua, o ferro guincha nos carris, uma luz branca ilumina o interior vazio. No jardim contíguo, há árvores de tronco castanho e bancos de ferro forjado. Gostaria de saber por que ninguém se senta neles a descansar ou a namorar ao crepúsculo. O chão é imaculado. Das flores que por ali crescem não falo, só de pensar nelas já o pulso treme e a mão desfalece. Quando o eléctrico se some na embocadura da outra rua, a noite torna-se mais densa. Esfrego a cara no momento em que um arrulhar tonitruante me fere os ouvidos. Num banco, dois pombos maiores do que um homem sentam-se calmamente e, enquanto falam como se arrulhassem, poisam os olhos fixos nas flores de um canteiro. Não falarei delas. Escondido, observo-os: espiam assombrados, arrulham, crescem mais e mais, já mal cabem no banco. Na hora em que o som se tornou insuportável, levantaram voo, um atrás do outro. Ao dissipar-se a brisa trazida pelo bater daquelas asas, a manhã tinha depositado sobre um coração tremente, o meu, um véu de luz. (averomundo: a prosa dos dias, 2008/06/04)

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Uma estúpida complacência

Terêncio

Sou humano; nada do que é humano me é estranho. (Terêncio)

Será ainda sinal de humanidade a estranheza por tudo aquilo que é humano? Serei ainda humano quando sinto repugnância por aquilo que é humano, demasiado humano? Como se pode suportar a exibição sem pudor  da sua hipotética felicidade ou a proclamação da grandeza da descendência - isto, quando não se tem ascendência para exibir ou obra para suportar a vaidade? O mais repugnante, porém, é o disfarce em convicção daquilo que se prende apenas com o mero interesse. Olho para os homens, e por cada grama de nobreza vejo toneladas de lixo. Sim, também pertenço aos que fazem lixo. Mas - e disso tenho consciência - o lixo feito por mim não deixa, por isso mesmo, de ser insuportavelmente repulsivo. Medito na frase de Terêncio e vejo nela a mais estúpida complacência com tudo aquilo que nos deveria causar o mais profundo asco. Refaço a frase: Sou humano; tudo o que é humano me é, cada vez mais, estranho.

sábado, 26 de julho de 2014

Da essência da leitura

Rubens - Briselda devuelta a Aquiles por Néstor

Em novo lera muitos livros, mas chegado aos trinta anos descobrira que tanta informação pouco ou nada o fizera aprender. Decidiu, então, ler um só livro o resto da vida, mas lê-lo continuamente até descobrir o segredo que lá se ocultaria. Hesitou. Talvez a Bíblia devesse ser o livro escolhido, ou o  Quixote, porventura a República. Por fim, elegeu a Ilíada. Ao fim de dez anos, sentiu que ainda assim havia excesso de palavras e o progresso na aprendizagem era pouco. Decidiu que apenas leria, mas leria total e completamente, o chamado catálogo das naus. E assim fez durante outros dez anos. No dia do quinquagésimo aniversário a razão segredou-lhe que o melhor seria ler um e só um verso. Aí não teve dúvidas. Escolheu o primeiro verso da epopeia, pois nele está já contido todo o poema. Dia após dia, mês após mês, ano após ano, lia ininterruptamente: «Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida». Quando fez oitenta anos, já há vinte, de manhã à noite, que apenas lia uma palavra: «cólera». A morte surpreendeu-o pela tarde luminosa de um dia de Junho. A face mantinha o sorriso de quem aprendera a suavizar o coração. A boca, porém, diz quem o viu, continuava a dizer pausadamente có-le-ra, có-le-ra, có-le-ra… (averomundo: a prosa dos dias, 2008/09/29)

sexta-feira, 25 de julho de 2014

O problema da banca


Quando em 1975, na sequência dos acontecimentos do 11 de Março, a banca portuguesa foi nacionalizada, não se estava apenas perante uma opção ideológica que pretendia tornar Portugal um país socialista. A motivação principal residiu em razões que hoje em dia não são trazidas à discussão pública. Essas razões, bem vivas na época, prendiam-se com a possibilidade ou não de instaurar e consolidar uma democracia política no país. A banca era de tal modo poderosa, controlava de tal maneira a economia portuguesa, que a questão do regime democrático dependia da cooperação dos sectores financeiros, que eram, na verdade, pouco cooperantes. A nacionalização da banca visou controlar a economia, para que a democracia política se tornasse possível. O devaneio da sociedade socialista veio por acréscimo.

Depois, estando a democracia política consolidada, começou a abertura da banca à iniciativa privada e a privatização dos bancos nacionalizados. Os banqueiros privados emergiram então como uma espécie de novos heróis. O BCP de Jardim Gonçalves era incensado pelos media e, daí para a frente, a banca, sem grandes dispositivos de controlo público, tomou conta do país. E o país em que vivemos hoje em dia, o país da crise profunda e da pobreza em crescimento, é o país que os nossos banqueiros fizeram  e impuseram. As crises, diferentes caso a caso, que têm vindo a afectar a banca – algumas dessas crises são verdadeiros casos de polícia, investigados ou não –, vieram tornar claro que um dos grandes problemas de Portugal reside na avidez desmesurada dos seus banqueiros. A banca nunca se interessou por Portugal, mas apenas e só pelos seus negócios. O pior foi que os políticos do arco da governação ficaram seduzidos pelo charme do dinheiro e esqueceram-se de controlar o monstro.

Com um poder político subjugado, a banca portuguesa tornou o Estado – por exemplo, através das chamadas parcerias público-privadas – seu refém. O resultado tornou-se claro a partir de 2011. Estamos todos a ser obrigados a pagar os desvarios dos governos seduzidos pelo encanto dos banqueiros. Talvez hoje em dia, a banca não se oponha à democracia e não haja necessidade da sua nacionalização, talvez. Mas se queremos construir uma sociedade minimamente decente, então precisamos de alguém que, no poder, em vez de se deixar seduzir pela força do dinheiro, decida controlar rigorosamente a actividade bancária e limitar drasticamente o poder dos banqueiros. Caso contrário, os portugueses serão cada vez mais pobres e impotentes, e o país caminhará para um tipo de vida muito semelhante ao das plutocracias africanas.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Literatura de aeroporto

Edward Hopper - Boceto de Girlie Show (1941)

Longe de mim ser um inimigo jurado e público dos órgãos de comunicação social. No entanto e apesar da importância que lhes atribuo, nunca deixo de ter presente a sua especial perversidade. Não me refiro sequer à adulteração das imagens da realidade social ou à manipulação das consciências. Há um exercício, por muito execráveis que sejam os referidos, que me parece bastante mais tenebroso. Trata-se da transformação dos acontecimentos da vida em espectáculo, o qual visa despertar o entusiasmo dos auditórios e anestesiar as consciências. Mais uma vez isso está a suceder com a detenção de Ricardo Salgado e a tragicomédia do Grupo Espírito Santo. Como noutros casos, assistimos à voracidade dos media e preparamo-nos para uma longa telenovela. 

A combinação de uma justiça lenta e de uma comunicação social ávida e fundada no desejo de espectáculo tem um efeito absolutamente deletério sobre a consciência social das pessoas. Todos os acontecimentos perdem a sua realidade e são compreendidos como uma mera encenação. Aquilo que faz parte do espectáculo que os media oferecem é acolhido como uma mera ficção, sem qualquer compromisso com o real e a verdade. Ninguém acredita já seja no que for, seja na culpabilidade ou na inocência de um banqueiro em apuros (se é que em Portugal há banqueiros em apuros), seja na bondade ou maldade de um político no poder ou em ascensão. Tudo isso faz parte do entretenimento ficcional com que as consciências são brindadas pelos media, tudo isso não passa de literatura de aeroporto.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

O tormento da desigualdade

Jorge Carreira Maia - Luz (2014)

Para que serve a filosofia? Em última análise para trazer um pouco de luz sobre aquilo que nos atormenta. Mais do que aquilo que nos dá prazer, aquilo que nos atormenta dá que pensar. Os gregos colocavam na origem do filosofar o espanto. Numa época como a nossa, provavelmente menos luminosa, talvez aquilo que nos dá que pensar seja o espanto do tormento. Do ponto de vista social, o que é que nos atormenta e nos deve dar que pensar? A desigualdade. A desigualdade é o grande tormento social dos nossos dias. Por isso, vale a pena ler (aqui) as quatro principais razões, segundo o filósofo de Harvard, T. M. Scanlon, por que a desigualdade é má para a sociedade. Vale mesmo a pena ir ler os argumentos de Scanlon, mas o curioso é que nenhum destes argumentos contra a desigualdade põe em causa uma sociedade liberal ou justifica uma utopia igualitária. A luz do pensamento serve para isto mesmo, para encontrar caminhos onde apenas parece haver escarpas e densas trevas.

terça-feira, 22 de julho de 2014

Desagregação mental

Tristan Murail - L'Esprit des Dunes (Ensemble Intercontemporain)

Por estranho que possa parecer, gosto da música do compositor francês Tristan Murail. Isso não é, contudo, sinal de qualquer elevação espiritual, ou de uma extraordinária predisposição intelectual ou, mesmo, de um refinamento do gosto. É antes sintoma da minha desagregação mental, da dilaceração do pensamento, da guerra civil que me percorre o cérebro e lança neurónios contra neurónios, hemisfério contra hemisfério. Começo assim por ouvir a anunciação do anjo da guerra e os exércitos entram em acção. A terra arde e todas as sensações que nascem em mim são estilhaços de vidro e fragmentos de granadas. Ao longe, oiço trovões. Como o mundo, tudo em mim se cinde. Tento sintonizar o ouvido na música e uma volúpia de cinza e fogo arrasta-me para fora do silêncio da noite. A madrugada ainda não é um risco no horizonte, apenas dois sóis se chocam no interior da galáxia, talvez o meu cérebro, dirão. (averomundo: a prosa dos dias, 2008-12-13)

domingo, 20 de julho de 2014

A luz decai

José Manuel Ruiz-Zarco Perez - Atardecer (2002)

A tarde desce e o cansaço toma conta da cidade. Aqui e ali abrem-se frestas de luz, mas tudo está já envolvido numa tonalidade triste e envergonhada, folhas a amarelecer, a tremer ao vento, a preparar a queda que virá. Os homens passam distraídos, presos na vida que lhes calhou, apressados, olhos fixos nas órbitas, fantasmas adiados. Ao longe, ainda há campos, o verde há muito os abandonou. São uma mancha de cinza sombreada pelas nuvens, um traço esquivo na parede da memória. A luz decai e eu decaio com ela, como se cair fosse o único destino que aos mortais estivesse reservado. A noite não tardará. (averomundo: a prosa dos dias, 2007/10/27)

sábado, 19 de julho de 2014

O bombardeamento da ciência

Pablo Picasso - Guernica (1937)

A direita portuguesa, mesmo quando encarna em gente universitária ou vinda das áreas da cultura (há algumas excepções, claro) tem uma relação difícil, muito difícil, com áreas como a cultura ou o conhecimento. Se houve área em que as governações socialistas tiveram êxito, um êxito claro e do qual o país retirou amplos benefícios, foi a da ciência. Deve-se a Mariano Gago ter dotado o país de uma ampla rede de investigação científica, em diversas áreas. Digamos que houve uma democratização do acesso à prática científica e que essa democratização - que é sempre um alargamento social de uma elite cognitiva - trouxe reconhecimento para o país, deu-lhe áreas em que é possível transformar conhecimento em produtos para competir nos mercados globais e, nas áreas das humanidades, permitiu suprir graves carências nas áreas da edição e da tradução para português de autores fundamentais. Tudo isto é insuportável para uma direita que, no fundo e mesmo quando se traveste de liberal, nunca deixou de ser miguelista e ultramontana. Assistimos, com as avaliações dos centros de investigação encomendadas pela FCT, a um verdadeiro bombardeamento do emergente edifício da ciência portuguesa (Público). Parece que o objectivo é não ficar pedra sobre pedra da herança de Mariano Gago.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

O Bloco de Esquerda

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

As eleições europeias, a saída de Ana Drago e as divergências da corrente afecta à antiga UDP vieram tornar claro – ainda mais claro – a profunda crise em que navega o Bloco de Esquerda (BE). Têm sido avançadas duas causas para essa crise. Por um lado, a confusa liderança bicéfala de João Semedo e de Catarina Martins. Por outro, a indefinição estratégica do partido: partido de mera contestação ou partido com vocação para exercer o poder?

De facto, num país como Portugal, não lembra a ninguém propor uma solução de liderança tão confusa como a do BE. Confusa e frágil. Ninguém, fora do BE, compreende qual a virtude política que suporta a posição de Catarina Martins. Quanto a João Semedo, um respeitável deputado, ele é a prova de que não basta ter excelentes qualidades morais e políticas para ser um líder político forte.

A questão estratégica também é importante. Os potenciais eleitores perguntam-se: para que serve o BE? Será um eterno sinal do nosso descontentamento, ou terá, nas circunstâncias que são as nossas, alguma coisa construtiva a fazer a partir do poder? Esta angústia do hipotético eleitorado do BE – muito diferente do do PCP – acaba por repercutir-se dentro do partido e levá-lo à indefinição onde naufraga.

O problema do BE, porém, é outro. Quando emergiu, a partir de uma amálgama de grupos de extrema-esquerda, apresentou-se como um produto inovador no mercado eleitoral. Tinha gente inteligente e, acima de tudo, gente com um certo glamour. Os seus deputados vestiam bem, em estilo negligé cuidadosamente meditado, eram socialmente interessantes e a sua oratória, eventualmente revolucionária, não era, no que diz respeito à natureza revolucionária, levada a sério. O BE atraiu alguns apoios populares – poucos, diga-se. O seu eleitorado vinha, em grande parte, das classes médias - médias altas, inclusive – instruídas, socialmente vividas, diferenciadas, marcadas por um radicalismo existencial próximo dos liberais norte-americanos (não confundir com os liberais europeus).


O problema do BE é que o glamour desapareceu, algumas causa radicais passaram à letra de lei, as pessoas interessantes começaram a afastar-se do partido e os intelectuais estão em deserção. Aquilo que era um belo produto do mercado eleitoral – mesmo um filho família poderia dizer em casa ou em sociedade que era do BE – começou a envelhecer. Ora num mundo como o nosso, não há nada pior do que a velhice. O problema do BE não é tanto a liderança ou a estratégia, mas a perda da sua natureza ontológica, o glamour. Ao perder o glamour, o BE passou de moda. E quem quer vestir um casaco que passou de moda?

quarta-feira, 16 de julho de 2014

O ovo da serpente

Liv Ullmann em O Ovo da Serpente, de Ingmar Bergman (1977)

Lembrei-me do filme de Ingmar Bergman, O Ovo da Serpente, quando li que um eurodeputado neonazi alemão foi eleito, imagine-se, para a Comissão de Liberdades do Parlamento Europeu (ver aqui a folha de serviço do eleito). Ingmar Bergman considerava-o, a O Ovo da Serpente, o seu pior filme. Talvez um exagero, mas mesmo que isso seja verdade, a qualidade da sua cinematografia é tão elevada que o pior ainda é bastante bom. Em O Ovo da Serpente, Bergman filma a Alemanha da República de Weimar, mostra o lento incubar do nazismo no ambiente deteriorado dos anos vinte do século passado.

Hoje, porém, não vivemos numa época de hiper-inflação como aquela que conduziu à ascensão do nazismo na Alemanha. O perigo não nasce tanto das ruas, como das próprias instituições. São as instituições europeias - as da União e as nacionais - que, de forma sistemática, estão a desagregar o clima de paz e consenso que evita as grandes catástrofes sociais e políticas. Que um jurado e contumaz inimigo das liberdades seja, devido à força dos votos, eleito para a Comissão das Liberdades, não é apenas um episódio em que a liberdade política é complacente com os inimigos da liberdade. É um poderoso sinal de que as instituições democráticas se estão a tornar no ovo onde a serpente se forma.

terça-feira, 15 de julho de 2014

A falibilidade humana

Jorge Carreira Maia - Auto-retrato (2014)

Não é o mal que atormenta as nossas consciências modernas. O que as transtorna até à paranóia é a falibilidade humana. Ser falível não se inscreve na retórica com que, desde o século XVII, o homem ocidental se pinta a si mesmo. (averomundo, 2007-09-12)

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Eugène Delacroix - A liberdade guiando o povo

Eugène Delacroix - A liberdade guiando o povo (1830)

Delacroix pinta A liberdade guiando o povo como forma de participação na revolução de 1830. Por vezes, somos levados a pensar que a fonte inspiradora é a Revolução de 1789, iniciada precisamente a 14 de Julho com a tomada da Bastilha. Não é. Passaram mais de 40 anos e poderíamos discutir a relação política entre as revoluções de 1789 e de 1830, ou a questão estética da emergência do romantismo na pintura e o corte com o classicismo. Gostava de me desviar desses caminhos e fixar-me num triângulo que compõe o drama presente neste quadro. Esse triângulo revela, talvez de forma inesperada para os amantes das revoluções, um estranho sentido presente em todas elas. O triângulo é composto por três figuras, o povo, a liberdade e a morte. O povo é representado em armas e em estado de exaltação - de transe revolucionário -, a liberdade - deixemos de lado a vexata quaestio da interpretação simbólica dos seios desnudados - transporta uma bandeira nacional e emerge como a instigadora do povo em exaltação. Os mortos, esses não são outra coisa. No abandono a que a morte os condena, eles surgem aos nosso olhos como o único resultado do casamento entre o povo e a liberdade. Será, na verdade, o quadro de Eugène Delacroix uma apologia da revolução, um encómio do povo em armas? Quem não se deixar arrastar pelo entusiasmo resultante da poderosa combinação da liberdade e do povo, quem se entregar a uma lenta meditação do quadro, acaba por descobrir que a revolução - essa combinação da liberdade e do entusiasmo popular - tem apenas como sentido a morte. Olho para o quadro e o que vejo? Vejo que toda a revolução é um exercício niilista a que os homens, cegos pelo brilho da liberdade, se entregam. Mas o mais estranho, no quadro, não é a sua possível leitura contra-revolucionária, a possibilidade de o ler numa perspectiva conservadora. O mais enigmático do quadro é a equação entre liberdade e morte. Eu sei que esta é uma meditação melancólica para um dia como o de hoje, o dia em que todos os corações deveriam erguer-se para comemorar o reino da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Temo, porém, que essas palavras apenas escondam o trabalhar incansável da velha ceifeira.

domingo, 13 de julho de 2014

Uma noite de Verão

Edvard Munch - Noite de Verão (Inger na praia) (1889)

Cintilam ao longe as lâmpadas da noite, iluminam caminhos que não conheço, deixam traços fugidios nas trevas exteriores. O manto negro que vela a terra reina despótico por onde quer que se estenda o olhar, esconde os segredos que o dia revelará, abriga, no seu seio, o ódio dos amantes desavindos. Um calor estival a tudo aquece, fustiga com o seu chicote de aço os corpos cansados, ávidos do frio que virá. Uma noite de Verão cai assim, louca e destemperada, sobre os dias que o Outono, para graça dos mortais, deveria dizer estes são os meus dias. (averomundo: a prosa do mundo, 2007-10-21)

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Um exercício de cinismo



Se a política não se confunde com a moral, isso não significa que o comentário sobre a realidade social e política não deva ter um conteúdo moral. Umas das coisas que a actual crise revelou foi o profundo cinismo de muitos comentadores, a forma como se eximiram de analisar o carácter moral das decisões, fingindo que essas decisões eram meramente técnicas. Isto nada tem que ver com a tradicional divisão entre esquerda e direita. Houve gente, e não tão pouca quanto isso, que na direita assinalou o carácter imoral das políticas seguidas.

Hoje começamos a perceber melhor a raiz dessa imoralidade. Começa a chegar à opinião pública informação que desmonta a retórica do governo e das instâncias internacionais que nos atiraram para o alçapão onde nos encontramos. O próprio FMI já veio dizer que os programas seguidos na Grécia, na Irlanda e em Portugal foram errados, que teria sido melhor reestruturar as dívidas. Mas não só. Emerge, na opinião pública, a ideia de que a crise das dívidas soberanas não foi outra coisa senão uma manobra para fazer pagar aos contribuintes os investimentos tresloucados da banca europeia. Dito de outra maneira, os investidores europeus andaram a jogar com o dinheiro dos bancos. Perderam, mas os governos e as instituições europeias obrigaram os países do sul – onde parte desses investimentos tresloucados tinha sido feita – a pagar o desvario especulativo da banca europeia.

A imoralidade dos comentadores, assinalada mais acima, reside no simples facto de terem ocultado sistematicamente esta informação, de terem raciocinado a partir do pressuposto de que os verdadeiros culpados da crise das dívidas soberanas são os povos do sul, o Estado social, os funcionários públicos, as pequenas e médias empresas do sul da Europa e os trabalhadores por conta de outrem. Para tornar clara a imoralidade, imaginemos o seguinte cenário. Os juízes julgam um réu que sabem que está inocente. Sabem a sua inocência e conhecem o culpado, mas mesmo assim optam por condenar o inocente e justificar, em nome da verdade e da justiça, essa condenação. Foi que se passou em Portugal. É isto que continua a passar-se, quando se continua a legitimar o conjunto de políticas em vigor. Se a acção política não é o lugar da verdade e da moralidade, o comentário e a intervenção dos cidadãos deve ter por efeito exigir a verdade e fazer com que as elites políticas se comportem dentro dos limites da justiça. O que vimos, porém, foi, muitas vezes, um exercício nada virtuoso de cinismo e falsificação da realidade.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

De caverna em caverna

Joaquín Mir - Crepúsculo

Os dias já declinam, mas a luz ainda é uma mancha que cobre a cidade, ateia incêndios nos telhados, faz resplandecer o verd’oiro das árvores. As gentes regressam a casa, abandonam a fadiga que o dia traz, escondem-se nas cavernas onde só as sombras reinam. De caverna em caverna, eis o destino que nos coube. A luz, se nos ilumina, logo fenece, para se entregar aos deuses da noite. No horizonte, manchas de sangue pontuam algumas nuvens. Caminho pela cidade na esperança do silêncio, mas os gritos invadem a tarde como se, no crepúsculo que se adivinha, chorassem o dia já entregue nos braços da morte. (averomundo: a prosa dos dias, 2007-10-17) 

quarta-feira, 9 de julho de 2014

História, mal e negatividade

Jorge Carreira Maia - Acidentes. Ilha do Baleal (2007)

O hegelianismo e o marxismo, no prolongamento do cristianismo, disseminaram a ilusão de que a história, apesar do mal e da negatividade, conduziria os homens a um fim feliz. Hoje a ilusão de um fim feliz dissipou-se. Resta a história, que apenas leva a mais história e a mais história, isto é, resta apenas o mal e a negatividade sem fim. (averomundo, 2007-08-01)

segunda-feira, 7 de julho de 2014

O direito ao apocalipse

Jorge Carreira Maia - Praia do Medão (Supertubos), Atouguia da Baleia (2014)

A experiência pela qual estamos a passar traz com ela uma percepção muito diferente daquela em que fomos educados. A fragilidade das instituições e de modos de vida era uma coisa que apenas existia nos compêndios de História ou na prédica religiosa. O homem comum, nascido no pós-guerra, tinha a impressão de que tudo tinha um carácter sólido, ao qual o tempo não tinha poder para erodir. A bondade das instituições apenas podia ampliar-se Mesmo quando se assistiu à queda do anterior regime ou à morte da experiência comunista no bloco de Leste, ainda qualquer consideração sobre a fragilidade das instituições e modos de vida humanos surgia, aos olhos do senso comum, como qualquer coisa distante, uma espécie de meditação teórica, ou uma consideração para utilizar em situação fúnebre. Agora, porém, observamos em directo - e sofremos no corpo - o desmoronar das nossas instituições, dos nossos modos de vida e dos nossos valores. Tudo o que parecia sólido se manifesta, nestes tempos, como construído em matéria frágil e com alicerces superficiais e enterrados em areia seca. Descobrimos que entre todos os direitos irrevogáveis apenas há um, do qual ninguém falou, que mantém a sua inalterável solidez, o direito a viver o apocalipse.

domingo, 6 de julho de 2014

O culto das ruínas

Jorge Carreira Maia - Templo de Diana, Évora (2008)

No fim da Idade Média - se é que existiu uma Idade Média -, naquele tempo que é agora conhecido como Renascimento, desenvolveu-se o culto pelos testemunhos da época clássica greco-latina. Foram tempos de busca de um ideal que permitisse confrontar a realidade do presente. Este interesse pelos ideais clássicos foi, posteriormente, suplantado pelo fascínio com os tempos modernos, e os testemunhos do passado tornaram-se lugares para o exercício melancólico da memória, de uma memória vagamente colorida pela etiqueta cultura. As pessoas cultas, suspeita-se ou suspeitava-se, tinham interesse pelo passado e coleccionavam visitas às múltiplas e diversas ruínas que o tempo não conseguira ainda destruir.

Esta estranha melancolia, porém, talvez seja sintoma de uma outra coisa. As ruínas clássicas são metáforas que permitem o ambíguo exercício de ver a ruína que está diante dos olhos e evitar ser confrontado por ela. O que move os homens para este culto da ruína pode ser a experiência insuportável da ruína que o próprio presente traz consigo. Diante dos nossos olhos, as instituições desfazem-se, os modos de vida alteram-se drasticamente e os valores sofrem mutações inopinadas. Aquilo que ainda há uns anos seria impensável tornou-se lugar comum. Não são apenas os centros das cidades que caem. À nossa volta, o efeito do tempo tornou-se avassalador, arrastando na sua voracidade tudo aquilo que parecia ser sólido. O culto das ruínas representa o olhar fascinado e, ao mesmo tempo em pânico, de alguém que pressente a dissolução do seu modo de vida, mas que não tem a força suficiente para o suportar. Olha, como se não olhasse, para o destino do seu próprio mundo.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

O mal-estar na Europa



No primeiro dia de trabalho do novo parlamento europeu, quase 200 deputados eucépticos e de extrema-direita (cerca de um quarto do parlamento), aos primeiros acordes do hino da União Europeia (UE), levantaram-se e voltaram as costas ao centro do hemiciclo. Eis um acto político de enorme valor simbólico e sintoma do mal-estar que fervilha nas entranhas da UE. As causas deste mal-estar são múltiplas e variam conforme os países. Podemos, no entanto, sublinhar três.

Em primeiro lugar, o recuo do Estado social, a desregulação dos mercados, a erosão dos direitos do mundo do trabalho. A UE tem-se mostrado impotente para conciliar a globalização da economia com elevados índices de protecção social, os quais tinham permitido, na Europa, o crescimento da classe média. O empobrecimento das classes médias tem-se mostrado irreversível e gerador de animosidade em relação à UE.

Uma segunda causa prende-se com a divisão entre o norte protestante e o sul católico. Apesar de uma raiz comum, catolicismo e protestantismo geraram culturas éticas, sociais e políticas diferentes. Esta forma distinta de organizar as sociedades acabou por gerar choques e desconfianças entre o norte o sul da Europa. Em período de crise, estas desconfianças tornam-se mais activas e dão lugar a visões isolacionistas e de recuperação de tradições nacionais imaginárias.

A terceira causa está ligada ao problema da imigração e, fundamentalmente, à presença, em certos países da Europa, de comunidades muçulmanas muito activas e afirmativas dos seus valores. Observe-se a polémica em Espanha à volta das pretensões do emirato do Qatar em transformar a Praça de Touros de Barcelona numa Mesquita. Começa a emergir, em vários países europeus, um efectivo receio das pretensões dominadoras de certos grupos ligados ao Islão, conduzindo os eleitores à presunção de que o isolamento fora da UE será mais eficaz na afirmação dos valores culturais nacionais e na defesa perante a crescente presença do islamismo.

Estas são as grandes preocupações dos eleitores europeus, mesmo  de muitos que votam nos partidos ligados ao consenso europeu. Qualquer uma destas temáticas é, todavia, ignorada pelas acção política da União Europeia. O temor da pobreza, a desconfiança relativamente aos outros europeus e o medo do Islão não são assuntos nobres – são incómodos e, por vezes, tocados mesmo pelo racismo – que mobilizem a elite europeia, mais interessada nos negócios e nas desregulações da vida económica e financeira. É natural que os europeus se comecem a voltar para aqueles que voltam as costas a uma UE lunática e servil da plutocracia.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Apologia do silêncio

Odilon Redon - O silêncio

Um texto novo a intercalar nos cadernos do esquecimento provenientes do meu antigo blogue averomundo.


É no Fédon, salvo erro, que Platão nos diz que o exercício da filosofia não é outra coisa senão aprender a morrer e a estar morto. Uma das virtudes de estar morto é o silêncio. De certa maneira, a filosofia será uma aprendizagem do silêncio. É curioso que esta disciplina, ao tomar a configuração que ainda hoje reconhecemos nela, tenha colocado as coisas deste modo. A curiosidade deriva de a tradição  filosófica se ter afirmado pelo exercício abundante do logos, pela loquacidade mais extrema. O silêncio dos mortos e dos que aprendem a morrer foi substituído pelo ruído dos argumentadores. Se isto é assim, nesse local onde o exercício da restrição dos desejos e da palavra eram o ideal regulador, o que dizer do espaço público? Aí a cacofonia é generalizada. O uso abundante da palavra, o prolixo dos discursos, a gritaria desordenada mais do que factores do esclarecimento (enlightenment) são origem da extrema confusão. Todos nós, a começar por mim, deveríamos exercitar a virtude monástica do silêncio. Quando nos ocorresse uma ideia luminosa, o melhor mesmo seria omiti-la, poupar os outros à excelência da nossa imaginação ou do nosso intelecto. O problema, porém, é que fomos educados na tradição platónica. Quando falamos no aprender a morrer e a estar mortos, quando suspeitamos que o silêncio é uma virtude cardinal, aquilo que queremos é falar, falar, falar.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

O amor ao socialismo

Marc Chagall - A Revolução (1937)

Há sempre qualquer coisa de misterioso nesta relação do mundo do dinheiro com os regimes políticos mais estranhos. Toda a gente conhece a retórica anti-comunista da actual governação. Mas também todos sabemos que, na privatização da EDP, parte do património nacional foi vendido a uma empresa estatal da República Popular da China, passando esse património a ser gerido segundo directrizes do Partido Comunista Chinês. Agora  parece que a família Espírito Santo, devido à confusão em que estão os seus negócios, olha esperançosamente para, pasme-se, o fundo soberano da Venezuela. Quem diria que uma instituição estatal de um governo esquerdista sul-americano surge como hipótese salvadora do mais emblemático grupo capitalista português? Isto deve ser posto na conta das vitórias do liberalismo ou do socialismo?

terça-feira, 1 de julho de 2014

Uma questão de elasticidade


Pertenço a uma geração que nasceu numa época quase pré-moderna, foi educada nos valores da modernidade, vive num mundo pós-moderno. Em 50 anos quase viveu mil. Não há elasticidade que chegue para tal estiramento. [averomundo, 25/07/2007]