Alexander Rodchenko, On the Pavement, 1930 |
sábado, 31 de dezembro de 2022
Simulacros e simulações (42)
quinta-feira, 29 de dezembro de 2022
Um executivo à beira da implosão
As novas demissões no governo de António Costa, de onde sobressai a do poderoso ministro Pedro Nuno Santos, mostram um executivo à beira da implosão, que nem um primeiro-ministro hábil na manobra política parece capaz de suster. A maioria absoluta, dispensando os socialistas de negociar continuamente as soluções, está a funcionar como um revelador eficaz da cultura do partido que ocupa o poder. Três notas sobre essa cultura.
1. Do ponto de vista político, os socialistas estão esgotados. Nada têm para oferecer ao país enquanto solução para a situação em que nos encontramos. Este nada tanto pode ser encarado de uma perspectiva de esquerda como de direita. Nem um estado mais eficaz no assegurar dos mecanismos que permitam uma maior igualdade social, nem a capacidade de criação de um ambiente propício ao mercado e capaz de atrair fortes investimentos para o país. Por norma, os socialistas louvam-se na sua aptidão ideológica para compatibilizar ambos os objectivos. O que se passa, porém, mostra-os incapazes seja do que for.
2. A relação dos socialistas com o poder é conflituante com uma sociedade que tem uma capacidade de escrutínio constante. Os socialistas, ao longo de décadas, foram desenvolvendo uma cultura de domínio das instituições, como modo de manter o poder e de controlo das sucessivas situações desagradáveis (um eufemismo para designar os diversos problemas com a justiça ou com a moral pública que diversos actores socialistas enfrentam). Essa capacidade desapareceu no novo mundo das redes sociais. Qualquer político que se aproxime do poder fica na mira e, caso haja a mais leve suspeita, tornar-se-á um alvo contínuo, até que caia. Só uma sobranceria inominável, produtora de uma cegueira persistente, explica que o primeiro-ministro escolha ou aceite escolhas de pessoas que serão alvos fáceis a abater.
terça-feira, 27 de dezembro de 2022
A persistência da memória (19)
Francesca Woodman, Space 2, 1976 |
domingo, 25 de dezembro de 2022
Nocturnos 95
Edward Burne Jones, Night, 1870 |
sexta-feira, 23 de dezembro de 2022
Cadernos do esquecimento 49 Desolação
Johan Hagemeyer, “Corrosion” - Death Valley from Zabriskie Point, 1940 |
quarta-feira, 21 de dezembro de 2022
A constituição e o parlamento
O que significa abolir uma constituição? Significa abolir as regras fundamentais que orientam a vida em sociedade e o documento que estrutura não apenas o poder político, mas também os limites a que esse poder deve obedecer. É esta limitação do poder, é este freio à discricionariedade de quem o ocupa, ou pretende ocupar, que irrita muita gente que pensa ter chegado a altura de se retornar ao absolutismo, agora, porém, sem monarcas por direito divino, mas com um qualquer trampolineiro que consiga cavalgar a onda de irracionalidade que atinge parte dos eleitores. O que disse Trump é uma confissão do que lhe vai na alma. Compreendeu que a existência de uma constituição escrita é um obstáculo não só para o seu desiderato de ocupar o poder de qualquer forma, mas também para a pretensão de nele fazer o que desejar. Sem constituição qualquer cidadão fica nas mãos do déspota do momento.
É também
sintomático o desejo de atacar o parlamento alemão. Todos os que odeiam a
democracia têm por um dos alvos predilectos o parlamento. Por vezes,
ingenuamente, as pessoas reduzem o parlamento à sua função mais notória, a de
produzir a lei. Ora, o parlamento é muito mais do que isso. É o lugar onde os
representantes eleitos dirimem, através das palavras e segundo regras
estipuladas a priori, os conflitos que existem dentro da sociedade. Em
vez de as pessoas se matarem entre si, elegem representantes para que estes discutam
de modo civilizado. O parlamento está no lugar da guerra civil ou da ditadura,
que é uma forma de guerra civil, em que uma parte tem as armas e a outra está
desarmada. São estes dois pilares do Estado de direito e da democracia liberal
que os extremistas pretendem destruir, para poderem submeter as pessoas ao seu
arbítrio.
domingo, 18 de dezembro de 2022
Ensaio sobre a luz (95)
Charles Job, Abend an der Arun, 1907 |
sexta-feira, 16 de dezembro de 2022
O presépio de Belém
O cristianismo talvez seja a mais estranha de todas as religiões. É marcada por um exercício de humilhação, como se esta fosse a condição de possibilidade de uma exaltação numa outra vida. Estamos perante uma religião que nasce da ideia de que Deus encarnou, viveu uma vida humilde e morreu na cruz, a mais humilhante das formas de morte daqueles tempos. A questão começa de imediato no nascimento do Messias. Não nasce num palácio, nem nos círculos do poder religioso judaico. Nasce num estábulo, como se quisesse identificar, na Terra, a humildade como a marca daquilo que é divino.
Se há virtude que, nos dias de hoje, tem má fama, essa é a da humildade. Não há quem não queira afirmar-se, mostrar-se como o melhor, o mais forte, o mais sedutor, o mais poderoso. A vida social e a educação dos neonatos convergem para a afirmação da subjectividade, como se cada uma fosse o centro do universo, o ponto em torno do qual tudo deve girar. O Natal simboliza o contrário. O mais poderoso é o mais frágil e humilde. A encarnação da divindade não vem para mostrar um poder, mas para servir até à ignomínia da cruz. A descristianização da sociedade significa que o modelo crístico deixou de ser há muito o ideal regulador do homem. O Natal, para a nossa cultura, é um anacronismo e, ao mesmo tempo, uma provocação.
Essa provocação
cresce quando se contrapõe a pobreza do presépio de Belém e o ideal social que
nos rege. Ter mais, consumir mais, aceder ao maior número de experiências
possíveis. O próprio festejo natalício já não é o da pobreza do Menino Jesus,
mas da capacidade que se tem de distribuir presentes, uma afirmação de que não
se é pobre. O cristianismo, com o nascimento e morte do Cristo, é um exercício de
desapossamento de si e dos bens materiais. Ora, isso é totalmente estranho aos
valores pelos quais nos regemos. Nada há de mais incompatível com o actual
espírito natalício, como o encaramos, do que a terrível frugalidade do presépio
de Belém.
quarta-feira, 14 de dezembro de 2022
O progresso moral da humanidade (10)
Wilhelm Brasse, 14 year old Polish girl, Auschwitz concentration camp, 1942 |
domingo, 11 de dezembro de 2022
Nocturnos 94
Henri Cartier-Bresson, Paris and the Eiffel tower, 1985 |
sexta-feira, 9 de dezembro de 2022
Meditações melancólicas (90) O coração das trevas
Albert-Edouard Drains, Éclaircie, 1897 |
segunda-feira, 5 de dezembro de 2022
Nocturnos 93
António Carneiro, Nocturno, 1911 |
sábado, 3 de dezembro de 2022
Jogos com a liberdade
2. Perigo presidencialista (1). A abertura de um processo de revisão constitucional traz com ele a manifestação de um desejo, de certos sectores políticos, de pôr em causa o regime político português. Num primeiro momento, visa-se, com o aumento tanto da duração do mandato do Presidente da República como dos seus poderes, virar o regime para o presidencialismo. Uma espécie de nostalgia do sidonismo da primeira República. Num segundo momento, pretende-se a completa subversão da Constituição e a destruição do regime de democracia liberal nascido com o texto constitucional de 1976, para levar o país, de forma paulatina, em direcção a um regime autoritário. Não é plausível que isso aconteça no processo de revisão agora aberto, mas não deixa de ser sintomática a existência de projectos para subverter a Constituição e destruir a liberdade.
3. Perigo
presidencialista (2). Apesar do Vice-Almirante Gouveia e Melo afirmar que
não pretende entrar na vida política, percebe-se a existência, em largas
camadas do eleitorado, de uma disponibilidade para apoiar a sua candidatura à
Presidência da República. Esse eleitorado quer Gouveia e Melo por ele ser um competente
homem de acção. Ora, do ponto de vista constitucional, os Presidentes da
República têm pouco poder de acção. A situação apresenta duas vertentes
desagradáveis. Por um lado, mais uma vez, a nostalgia do sidonismo ou o desejo
de um homem forte. Por outro, caso Gouveia e Melo concorra e seja eleito, a
possibilidade de um conflito persistente entre um Presidente, que será eleito para
agir, e as regras constitucionais que concentram parte substancial da acção
política no governo e no parlamento. Um conflito que poderá dilacerar o regime
democrático e destruir as liberdades.
quinta-feira, 1 de dezembro de 2022
Direitos humanos, é melhor esquecer
O futebol é um desporto que exerce enorme fascínio sobre os cidadãos. Nele existem duas características que marcam as sociedades actuais. Por um lado, representa, ao seu mais alto nível, uma exemplificação das sociedades de mercado alicerçadas no mérito dos concorrentes. O futebol é um exemplo da meritocracia que o pensamento liberal julga dever ser uma característica central das relações humanas. Tudo no futebol é concorrência e ganham os que tiverem mais mérito. Esta faceta liberal do futebol, todavia, combina-se com uma outra muito pouco liberal, o tribalismo. Este tribalismo tem duas facetas. O tribalismo clubista, onde as tribos de diversas cores se defrontam, e tribalismo nacionalista. Em alguns países este tribalismo é o único lugar onde o nacionalismo se manifesta. Noutros, será uma ostentação da patologia nacionalista reinante.
Esta combinação
de meritocracia liberal e de tribalismo nacional não é apolítica. Pelo
contrário. Marcelo Rebelo de Sousa – assim como Augusto Santos Silva e António
Costa – agem por interesse político. O futebol mobiliza demasiadas paixões,
para que os políticos tenham coragem de afirmar aquilo que deveriam afirmar:
que o futebol, na sua organização internacional, deve ser penalizado pela
escolha feita. Os agentes políticos democráticos deveriam não só excluir a sua
presença nos jogos, como terem uma atitude crítica sobre a realização do
Mundial nas circunstâncias que se conhecem. Contudo, o interesse político local,
a necessidade de não perturbar os eleitores com coisas desagradáveis e de
confrontá-los com o irracional da sua paixão, leva a que um Presidente de um
país democrático diga, sem pudor, “enfim esqueçamos isto”. Para que a bola role
sem perturbação, há que limpar a memória. Talvez mesmo formatar o disco onde estão
guardados os direitos humanos.
segunda-feira, 28 de novembro de 2022
Meditações melancólicas (89) A perfeição do passado
William Henry Fox Talbot, Oxford High Street, 1845 |
sábado, 26 de novembro de 2022
Simulacros e simulações (41)
André Kertész, Distortion #51, 1933 |
sábado, 19 de novembro de 2022
A resistência das democracias
A democracia liberal tem vindo a ser submetida a um conjunto de desafios que, não poucas vezes, parecem pôr em causa a sua capacidade de, num futuro próximo, resistir à avalancha de tiranias que existem um pouco por todo o lado. Sempre que há eleições, teme-se que as forças inimigas das liberdades democráticas as ganhem e se dê início a um processo de descaracterização, primeiro, e de destruição, depois, dos regimes democráticos. Dito em linguagem popular, sempre que há eleições os defensores da democracia liberal – tanto na direita como na esquerda – andam com o credo na boca. Há razões para isso. Vejam-se as derivas iliberais na Índia, na Turquia e, dentro da casa comum da União Europeia, da Polónia e da Hungria. Teme-se que o mesmo possa suceder, na sequência das últimas eleições, em Itália.
Contudo, poderá haver lugar para uma visão menos negra do futuro dos regimes democráticos. No Brasil e nos EUA, as instituições políticas deram provas de suportar bem o teste de stress a que democracia foi submetida. A derrota de Bolsonaro, no Brasil, e o resultado decepcionante dos republicanos pró Trump, nas eleições intermédias nos EUA, mostraram que as instituições democráticas talvez tenham mais vigor do que se pensa. O caso do Brasil é interessante. É uma democracia recente, onde um Presidente assumidamente defensor da ditadura foi eleito, mas que, apesar de tudo, não conseguiu subverter o sistema democrático para se perpetuar no poder. Também o facto de nos EUA não ter havido uma maré trumpiana vitoriosa mostra que a funda tradição democrática americana possui alicerces mais sólidos do que se suspeitava.
Numa entrevista ao Público de domingo passado, Kerry Brown, professor de Estudos Chineses no King’s College, de Londres, e autor de um livro sobre Xi Jinping, o líder chinês, sublinhava que as autoridades chinesas crêem que as potências ocidentais estão em decadência. A crença no declínio do Ocidente e a crença no declínio das democracias liberais, não sendo a mesma coisa, irmanaram-se no decorrer da história dos séculos XX e XXI. Também as potências do eixo, aquando da segunda guerra mundial, com Hitler à cabeça, estavam convencidas da decadência das democracias. É assim plausível pensar que a retórica, tanto dos amigos como dos inimigos, acerca da decadência ocidental e das democracias faça parte do metabolismo político e cultural que permite a esse Ocidente e a esses regimes democráticos regenerarem-se, recriando-se e reinventando-se. As democracias, julgo, continuam em acentuado perigo, mas talvez possuam mais poderes para enfrentar as adversidades do que se pensava.
quinta-feira, 17 de novembro de 2022
Nocturnos 92
André Kertész, Paris by night, 1929 |
terça-feira, 15 de novembro de 2022
A persistência da memória (18)
Theodor and Oskar Hofmeister, Gebet, 1910 |
domingo, 13 de novembro de 2022
Um salvador da consciência de classe
A substituição de Jerónimo de Sousa por Paulo Raimundo como secretário-geral do Partido Comunista Português gerou, como seria de esperar, um conjunto significativo de exercícios hermenêuticos e proféticos. Constatou-se que o Partido Comunista era um Partido Comunista, profetizou-se, mais uma vez, o seu desaparecimento, contrapôs-se o modelo de escolha das lideranças do PCP ao dos outros partidos políticos da democracia portuguesa. Houve artigos que desconstruíram a narrativa de que o operário Jerónimo de Sousa seria substituído por outro operário, Paulo Raimundo, manifestando que este é funcionário político desde os 19 anos e que as suas limitadas experiências do mundo do trabalho seriam irrelevantes para demonstrar a condição de classe do novo secretário-geral. Terá a sua origem em famílias pobres, aliás como parte significativa da população, mas isso não faz dele um proletário, como aqueles que nos tempos da transição à democracia existiam nas grandes, médias e pequenas empresas industriais do país.
A construção narrativa, por parte do PCP, de Paulo Raimundo como operário não deixa, todavia, de ser um exercício interessante e revelador. É uma mensagem para dentro do partido, para mostrar a fidelidade à sua tradição – e todas as tradições têm muito de imaginado, como o mostrou Eric Hobsbawm, um historiador marxista – e aos seus princípios. É, também, uma mensagem para fora do partido, uma tentativa desesperada de dar um sentido positivo e de esperança à condição operária ou, como o PCP gosta de dizer, dos trabalhadores. Por que razão se está perante uma tentativa desesperada? Porque a percepção da condição operária – ou de trabalhador – mudou radicalmente, em Portugal, desde os anos setenta do século passado aos nossos dias. Não foi apenas o peso demográfico do operariado que se alterou substancialmente, mas a sua própria consciência de classe.
Em 1974, os operários ainda tinham uma representação positiva da sua função na história do mundo. Apesar dessa representação ser já anacrónica no plano europeu, em Portugal ainda era possível que parte substancial das classes operárias se visse como portadora de um novo mundo, onde a justiça seria alicerçada na igualdade e no fim da chamada exploração capitalista. Ser operário era, naqueles dias, um motivo de orgulho e, ao mesmo tempo, de esperança. Assumir essas crenças significava ter consciência de classe, ter consciência de possuir um papel decisivo na história. O desenvolvimento da história do mundo e de Portugal erodiu completamente estas crenças. A consciência de classe dos operários ainda existentes será hoje em dia algo quase residual. Poucos acreditarão na narrativa marxista sobre o seu papel na transformação do mundo. Perderam as ilusões ideológicas sobre o seu papel histórico. Eles sabem que não são agentes históricos e têm a difusa consciência de serem pacientes, aqueles que sofrem os efeitos dessa história.
Uma das declarações mais estranhas, embora das mais reveladoras, é aquela que afirmava que o PCP escolhia Paulo Raimundo para travar o Chega (ver aqui). Porquê o Chega? Morta a consciência de classe, desaparecida a crença no papel do operariado na história do mundo, resta a situação de se ver como operário, mal pago, num mundo pleno de seduções. Ser operário deixou de ser motivo de orgulho revolucionário, mas, num tempo de escolarização democratizada, sinal de que se falhou na vida, de que as coisas não correram bem nos estudos ou que não se fizeram as escolhas correctas, de que a existência se encontra limitada pela função que se desempenha. Este sentimento de uma falência pessoal não conduz à consciência revolucionária, mas à indiferença resignada e, em muitos casos, a uma consciência ressentida perante as elites. Este não é um fenómeno português. Existe um pouco por todo o mundo ocidental. Veja-se o apoio das classes operárias brancas a Trump ou, em França, a transição directa do voto das classes operárias do Partido Comunista Francês para a extrema-direita.
A escolha do
anónimo Paulo Raimundo, reconstruído biograficamente como operário, é uma
tentativa de dizer que no PCP ainda não são as elites que mandam, que aquele é
o partido dos que perderam na concorrência existencial, dos que são vítimas da
sociedade de mercado. Uma tentativa de salvar a boa consciência operária. Ora,
o problema é que o Chega é mais atractivo para aqueles que sofrem com a
história do mundo, para os que no lugar de uma consciência de classe revolucionária
possuem uma consciência ressentida relativamente ao seu lugar na sociedade. Os
operários de hoje, na sua generalidade, não querem ser agentes da revolução,
querem deixar de ser operários, para poderem fruir mais completamente da sua
existência. Revoltam-se, eventualmente, mas não são revolucionários. Não querem
outro mundo, querem ter um lugar melhor neste ou, em caso de desespero, que
este mundo rebente nas mãos de aventureiros, para punição dos pecados das
elites, vistas como avaras e corruptas. Os actuais operários – os trabalhadores, na linguagem do PCP – não têm consciência
de classe, têm consciência de si, da sua individualidade e da vida estreita em
que essa individualidade está mergulhada. O Comité Central do PCP atribuiu a Paulo
Raimundo, como se de um Atlas se tratasse, o papel soteriológico de salvar a consciência
de classe.
sexta-feira, 11 de novembro de 2022
Simulacros e simulações (40)
Paul Almasy, Nuns, Paris, 1950 |
quarta-feira, 9 de novembro de 2022
O progresso moral da humanidade (9)
Lee Miller, Charred bones, Buchenwald, Germany, april 1945 |
segunda-feira, 7 de novembro de 2022
Declinação da Sombra 7
António Saúde, Dia de trovoada, 1906 |
Universos de barro e pó,
o som
das folhas caídas,
mãos e
musgos,
a
noite estremecida
no negro
trono de rainha.
Desprendia-se
da macieira
um
odor azul,
a
cinza sobre a terra,
a
paisagem de cal.
Na
estrada, passava quem ia,
cobria-se
a casa de pano:
a
seda, o linho,
o
algodão em árido ardil.
Assim
fiavam as fiandeiras,
o
tempo
de
suas mãos desabava,
um brusco
bater de asas,
uma
sombra
ao sol
do meio-dia.
Da
árvore, a folha desce.
Nela, uiva
o cão,
o
grito da tarde
suspende-se,
logo cai.
(1998)
sábado, 5 de novembro de 2022
O principal conflito político
Durante muito tempo, a clivagem direita – esquerda estruturou a vida política. Orientava as opções do Estado e os votos dos eleitores. Essa clivagem que começou, em França, como uma querela entre os defensores do Absolutismo e os dos interesses de uma burguesia ascendente desejosa de os fazer valer politicamente, foi tomando novos sentidos. O mais significativo era o que opunha as classes triunfantes com o liberalismo e as classes trabalhadoras. Jogava-se fundamentalmente no terreno da justiça distributiva, sobre aquilo que nos rendimentos deveria caber ao capital e ao trabalho, havendo todo um espectro de distribuições, que iam de uma quase escravatura até à abolição da propriedade privada dos meios de produção. No meio destes dois marcos havia, e há, gradações distributivas muito diversas.
Hoje em dia, a clivagem direita – esquerda deixou de ser estruturante da vida política. Não é que tenha acabado. Ela persiste. Contudo, uma outra clivagem sobrepôs-se à que era dominante. Está ligada à tensão entre regimes democráticos e regimes autoritários. Não é que esse conflito não existisse há muito. Existia, mas não apresentava os aspectos dramáticos que ostenta nos tempos que correm. A avaliação das situações depende das expectativas. Ora, nas democracias surgiu, a partir da Queda do Muro de Berlim, uma crença de que o mundo caminharia, mais depressa ou mais devagar, para regimes democráticos, tal como são concebidos no Ocidente. A terceira vaga de democratizações, iniciada em Portugal, com o 25 de Abril, iria alastrar-se a todo o planeta, numa espécie de globalização da democracia.
Um conjunto de
acontecimentos traumáticos vieram abalar essa confiança num devir democrático
do mundo. A evolução política da Rússia, o falhanço democrático das Primaveras
Árabes, a rigidez autoritária da China que, em momento algum, deu sinais de se
aproximar de uma democracia, a evolução do nacionalismo indiano, tudo isto é
uma má notícia. Assim como são más notícias a força do bolsonarismo no Brasil,
do trumpismo nos EUA e, também, a evolução da Turquia e de alguns regimes da
União Europeia, como o húngaro ou o polaco, ou o peso da extrema-direita em
muitos países europeus. Isto para não falar do Irão, Venezuela, Coreia do Norte,
Cuba, Afeganistão, a generalidade do mundo árabe. A vaga de democratizações nascida
em 1974 encontra-se em refluxo. A intensa luta entre democracias e regimes
autoritárias tornou-se o principal foco de conflito que atravessa o mundo e que
organiza todos os outros, mesmo os referentes à justiça distributiva.
quinta-feira, 3 de novembro de 2022
Nocturnos 91
Cleora Clark Wheeler, Evening, 1922 |
terça-feira, 1 de novembro de 2022
Não a religião, mas as redes sociais
Não é a religião, mas as redes sociais que estão a destruir a herança do Iluminismo. Este foi um movimento multifacetado cujo momento central é o século XVIII. Trazia uma visão do mundo baseada na razão e na crença de que, sendo o homem um animal racional, todos deveriam orientar a vida pelos ditames da razão. O Iluminismo foi um movimento de libertação dos indivíduos dos preconceitos, da tradição e da tutela de príncipes e pastores. Não sendo um movimento ateísta, as Luzes questionavam a aceitação acrítica de dogmas e, fundamentalmente, o facto de a religião, através dos seus agentes, exercer um poder sobre a consciência dos indivíduos, mantendo-os numa espécie de menoridade. A influência do Iluminismo prolongou-se, com diversas vicissitudes, até aos nossos dias, embora sempre contestado.
A herança das Luzes, no que tem de melhor, sublinha a autonomia dos indivíduos, o poder de dirigirem por si a sua existência. A religião, com a sua estrutura de controlo das consciências individuais, foi vista como a principal ameaça aos valores Iluministas. Hoje, em dia, quando se observa uma forte degradação desse legado do século XVIII, constata-se, não sem perplexidade, que as igrejas cristãs se adaptaram, com mais ou menos entusiasmo, aos valores do Iluminismo, muitos deles originados no próprio cristianismo e secularizados pelas Luzes. É nas redes sociais e nos comportamentos que estas permitem ou suscitam que parece estar um dos principais factores de ameaça aos melhores valores Iluministas. Dois exemplos.
A noção de seguidor, um dos elementos centrais da vivência nas redes, é um exemplo de negação do ideal da autonomia dos indivíduos. A crença Iluminista é que cada um apenas deve seguir, de modo imparcial, a sua razão. Como seres racionais, é uma degradação ser seguidor seja do que for e de quem for, a não ser da razão. As redes desocultaram e passaram a explorar até à saciedade o desejo de ser seguidor, de adoptar alguém como pastor que indica um caminho. Um segundo exemplo é o do debate. Segundo os valores Iluministas, o debate público deve ser ele mesmo orientado não pelos preconceitos, nem pelos afectos ou sentimentos de cada um, mas por valores racionais de compromisso com a verdade. Ora, o debate nas redes sociais é o contrário de tudo isso. Uma gritaria exaltada, irracional, avessa à verdade. Uma afirmação de preconceitos de uns contra os preconceitos de outros. Com tudo isto, não é apenas a herança das Luzes que está a ser destruída, mas as próprias comunidades e as regras de uma convivência sã num mundo plural.
domingo, 30 de outubro de 2022
Ford Madox Ford, Some Do Not
O romance Some Do Not, publicado em 1924, é o primeiro da tetralogia Parade’s End, de Ford Madox Ford, um dos mais importantes escritores modernistas ingleses. Aparentemente, a tetralogia teria como objecto a primeira guerra mundial. É reconhecidamente um dos grandes monumentos literários provenientes da experiência traumática desse acontecimento que levou à morte uma geração de jovens europeus. Contudo, pelo menos no primeiro romance, a guerra é um assunto distante, que por vezes aflora não nela mesma, mas nas consciências das personagens. O que está em jogo, na trama narrativa, será quase um exercício filosófico, não porque o romance tenha um carácter especulativo e aborde problemas teóricos, mas porque é, na verdade, uma experiência de pensamento, como o são a Alegoria da Caverna, de Platão, ou a Hipótese do Génio Maligno, de Descartes. Não tem, todavia, finalidade de construção conceptual, como as referidas experiências, mas existencial. Apesar de marcadamente orientada para a captura da vida no seu fluir, esta experiência de pensamento não deixa de partilhar com as referidas uma preocupação com a distinção entre aparência e realidade, um cuidado com a verdade. Trata-se de transplantar um homem do século XVIII, Christopher Tietjens para as primeiras décadas do século XX. Não que se esteja perante um romance de ficção científica, em que se faz acordar alguém nascido num passado já remoto num tempo presente. O caso é outro. Christopher Tietjens, o último tory, é um homem cujos valores se pautam pela solidez moral dos gentlemen século XVIII. Pertence a uma família de ricos terratenentes, chegada a Inglaterra com Guilherme de Orange, em finais do século XVII, na sequência da Revolução Gloriosa.
O romance divide-se em duas partes. Na primeira, centra-se num fim-de-semana que vai ter importantes consequências tanto para Christopher como para o seu amigo Vincent Macmaster, um escocês, pertencente a famílias pobres. Ambos foram colegas de faculdade e trabalham agora como estatísticos para o governo de Inglaterra, embora o escocês tenha pretensões em transformar-se em crítico de arte, tendo acabado de publicar um pequeno livro sobre o pintor Dante Gabriel Rossetti, um dos fundadores da Irmandade Pré-Rafaelita, um movimento artístico do século XIX. O primeiro parágrafo da obra é um retrato do mundo ordenado anterior à primeira grande guerra: Os dois jovens – ambos pertenciam ao funcionalismo público inglês – iam sentados numa carruagem de comboio perfeitamente equipada. As correias de couro das janelas eram virginalmente novas; os espelhos debaixo dos porta-bagagens estavam tão imaculados como se tivessem reflectido muito poucas coisas, o tapete acolchoado, de formas regulares, mas luxuosas, era escarlate e amarelo, com pequenos e intrincados motivos de dragão, desenhado por um geómetra de Colónia. O compartimento cheirava leve e higienicamente a verniz; o comboio circulava com tanta suavidade – recordou Tietjens ter pensado – quanto a dos títulos do tesouro da coroa britânica. Viajava depressa, mas se tivesse balançado ou saltado ao passar sobre as juntas dos carris, salvo na curva de Tonbridge ou na mudança de agulhas em Ashford, onde eram permitidas essas excentricidades, Tietjens estava seguro de que Macmaster teria escrito à companhia. Talvez mesmo ao Times. É este mundo de uma ordem geométrica e de uma moral rigorosa que se encontra já em diluição.
É no campo da sexualidade que emerge a dissolução dos valores e da velha ordem do império britânico. Tietjens mostra a Macmaster uma carta de Sylvia Tietjens, uma católica, que tinha trocado o marido, o próprio Christopher, por um major, do qual se fartou em pouco tempo. Pedia para regressar a casa. Durante o fim-de-semana, Macmaster conhece Mrs. Duchemin, também ela escocesa, mulher de um clérigo enlouquecido, proprietário de quadros pré-rafaelitas, com a qual inicia um caso que conduzirá ao casamento, no dia a seguir ao óbito do senhor Duchemin. Também Christopher trava conhecimento com a jovem sufragista Valentina Wannop, filha de um casal amigo do pai, e com a qual estabelecerá uma relação amorosa, mas nunca consumada durante o tempo desta primeira narrativa. É neste ambiente, já marcadamente sexualizado, que Christopher vai pôr à prova os seus sólidos princípios de cavalheiro, tanto na aceitação do retorno da mulher, como na preocupação com a reputação dela. Um cavalheiro não se divorcia. Se a mulher quiser o divórcio, concedê-lo-á, mas não dará qualquer passo que possa prejudicar a imagem da mulher, uma rica e, aparentemente, frívola socialite, sexualmente promíscua, que o odeia. Têm um filho, um acaso, embora não seja claro se Christopher é ou não o pai da criança, embora as provas existentes sejam fortes a favor da sua paternidade. Graham Greene considera que Sylvia possui o pior carácter do romance moderno.
À hipersexualização do ambiente, pois a promiscuidade da mulher é apenas um sintoma do espírito do tempo, responde Christopher com o seu desejo de ser um santo anglicano. À libertinagem reinante, responde: Eu defendo a monogamia e a castidade. E que não se fale mais nisso. Não é, todavia, esta defesa da castidade e da monogamia que leva a que a mulher, Sylvia, o odeie. É o facto de ele ser tão sólido e de estar de tal maneira fundado nos seus valores de pertença a uma velha família terratenente que a deixam fora dela. Ainda por cima, ele é servido por uma superior inteligência, com capacidade de não apenas deslindar os enigmas do presente como de prever o futuro, não por possuir qualquer dom profético, mas pela capacidade de cálculos das consequências das coisas que ocorrem. Esta segurança torna-o, num primeiro momento, insuportável para a mulher. Contudo, na segunda parte do romance, passada já bem dentro da grande guerra, quando Tietjens está em casa, depois de uma recuperação de um ferimento de guerra, no qual perdeu parte substancial da memória, de tal como modo que se obriga a ler a enciclopédia britânica, como modo de recuperação da informação perdida, o autor torna manifesto que, apesar de alimentar uma espécie de conspiração contra a honra do marido – e honra aqui tem a ver com as contas em ordem e um comportamento sexual exemplar –, Sylvia está apaixonada por Christopher, na verdade o único homem verdadeiramente substancial que conhece, ela que tem um lato conhecimento dos homens na intimidade.
É a
desadequação entre o sentimento manifesto e o sentimento real de Sylvia ou,
ainda de uma forma mais clara, entre a imagem que foi criada à volta de
Christopher, de um homem devasso, valdevinos, com filhos ilegítimos, à beira da
falência, por ser um gastador inveterado, coisa acreditada pelo próprio pai, e
a sua realidade de homem moralmente imaculado, contido nas despesas, um
cavalheiro em todos os sentidos da palavra. Assim como o ódio de Sylvia esconde
uma intensa paixão pelo marido, também a má reputação mascara a verdade de
alguém que vive segundo exigentes preceitos de rectidão, de tal modo que o amor
que se acendeu entre ele e Valentina permanece por consumar. Entre a aparência
e a realidade vai uma longa distância. A verdade é uma outra coisa que não
aquilo que é manifesto. Ora, é a solidez, deste último tory, ancorada no
passado, num romântico feudalismo, como notou Julian Barnes, que lhe permite,
sem exaltações, viver num mundo marcado pela duplicidade, pela mentira, pela
libertinagem e pela dissolução daqueles valores sólidos que fizeram da
Inglaterra a primeira potência mundial e que se manifestavam inclusive na
suavidade com que os comboios circulavam. É ainda essa solidez moral que leva
Christopher a voltar para a frente de combate, enquanto facilmente poderia
ficar em segurança numa repartição em Londres. Some Do Not significa, na
prática, que nem todos são iguais, nem todos se dobram ao espírito do tempo.
Por isso, o primeiro romance termina com a partida de Tietjens para França,
para a frente de combate.
sexta-feira, 28 de outubro de 2022
Beatitudes (55) Leveza e inconstância
António Carneiro, Praia com barcos, 1911 |
quarta-feira, 26 de outubro de 2022
Declinação da Sombra 6
Claude Monet, Haystack in Winter, Giverny, 1891 |
O súbito desmoronar das
terras,
as águas inquietas
na ilha do Inverno,
a noite bebida
na luz lacustre do
orvalho.
Se ainda florisse uma frase,
a entoação de um nome,
camélias abertas
para a seda dos dedos,
a súbita sombra dos
cedros.
Inverno, os dias suspensos
sobre a casa de colmo.
O adobe do tempo cintila
no grande fogo
desfolhado na seiva da
terra.
Caminhos, veios de
mármore,
a geada suspensa
do calcário dos
cabelos.
Um cântico ergue-se
no murmúrio da chuva.
(1998)
segunda-feira, 24 de outubro de 2022
Cadernos do esquecimento 48 Ir ao cinema
Francesc Català-Roca, Sesión nocturna, 1950 |