sexta-feira, 31 de maio de 2013

Este futebol que nós...


No Domingo passado, foi feito o lançamento do livro Este futebol que nós amamos, uma iniciativa do João Carlos Lopes que reuniu uma dúzia de textos sobre o futebol. A sessão correu entre o divertido e o nostálgico. De certa maneira, todos temos nostalgia de um futebol que já não conhecemos. Sempre me lembro de o futebol ser profissional, de haver grandes questões em torno dos contratos dos atletas, para não falar de cenas rocambolescas à volta de jogadores disputados por vários clubes. Nunca conheci aquele futebol puro do qual sinto saudade. 

Desde que o futebol nasceu e começou a implantar-se, houve uma metamorfose, talvez lenta, mas que o levou a mudar de face. O futebol espalhou-se nas massas populares como resposta à necessidade de representação sentida pelas populações expulsas dos campos devido às revoluções industriais. Esta necessidade de representação inventou memórias, impôs fidelidades e descobriu, na liberdade de mudar de emblema, traições inomináveis. 

A grande capacidade de atracção do fenómeno, porém, fez nascer dentro dele uma outra função que vai muito para além da representação de massas errantes, de gentes que perderam a comunidade de origem, e encontram na fraternidade dos adeptos do mesmo clube uma compensação da pátria perdida. O futebol tinha, como se percebe já há bastante tempo, uma grande capacidade de simbolizar. De simbolizar o quê? A própria sociedade naquilo que ela tem de essencial. O futebol não é uma brincadeira nem uma alienação da realidade. Ele é um processo muito eficaz de educação simbólica das massas para os valores das sociedade contemporâneas. 

As nossas sociedades são altamente competitivas. Nelas, como no futebol, não há lugar nem para velhos nem para fracos. As solidariedades são geridas em conformidade com os interesses. Toda a espécie humana está em guerra nesse grande estádio da vida que é o mercado. Cada produto que a concorrência vende representa para mim uma perda. O lugar melhor que o outro ocupa é um lugar que eu não posso ocupar, a não ser que o derrote. Quando trabalho numa empresa tenho um dever de solidariedade com os meus colegas, embora também concorra com eles por melhores avaliações e prémios, mas quando vou trabalhar para a concorrência os meus ex-colegas passam a inimigos que tenho o dever de derrotar. 

Querem melhor símbolo de tudo isto que o futebol? Por isso se compreende a nostalgia. Imaginámos um futebol que nos representava enquanto seres que perderam as raízes ancestrais e que nos dava imaginárias solidariedades e confrontamo-nos com um futebol que simboliza na perfeição o martírio a que a espécie humana se entrega diariamente.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

O grande triunfo da produtividade

Alexandre Antigna - El día del Corpus Christi (1855)

Comemoramos hoje o grandioso dia do nosso triunfo económico. O ano passado, um povo de indigentes habituado à boa vida e a viver acima das suas possibilidades, entregava-se a essa estranha coisa de deixar de trabalhar por causa do dia do Corpo de Deus, um dia santo de guarda. Naqueles dias, Passos Coelho e Vítor Gaspar, cheios de entusiasmos reformadores e desejosos de pôr a plebe a bulir, olharam para a lista de feriados e pensaram «vamos acabar com esta rambóia». Se bem o pensaram, melhor o fizeram. «Precisamos de produtividade e só há produtividade se acabarmos com os feriados.» 

Sentaram-se no gabinete do ministro das Finanças e, entre a consulta de uma folha de excel, cheia de gráficos, e a lista de feriados, deram com o feriado do dia do Corpo de Deus. Gaspar disse logo «acabamos com este». «Com este?» resmungou o primeiro-ministro. «Esse é da Igreja, não pode ser. Fui educado como católico. Proponho que se acabe com a abrilada, aquela coisa dos cravos faz-me comichão ao nariz e ofende as memórias dos outros tempos.» Gaspar, bocejou, e lentamente ciciou «deixe lá o 25 de Abril, a gente liquida-o em três tempos, mas aqui temos um problema sério.»  Coelho olhou o horizonte, espreguiçou-se e deixou cair «Um problema sério?» O ministro das finanças sorriu, encolheu os ombros, e continuou «Sim, um problema teológico sério, uma heresia e a prova de que se inventa tudo para não trabalhar», fungou um pouco, e, antes que Coelho dissesse alguma coisa, acrescentou, de forma inexpressiva e lenta, «Um problema teológico mesmo muito sério». «E qual o impacto desse problema teológico sério no PIB?», questionou Passos Coelho. «Não me faça perguntas de cálculos e previsões, sabe que isso me dá galo, encanita-me. Pior do que isso só o Benfica no fim da próxima temporada». Passos Coelho transpirava e o olhar turvava-se. Que raio, teologia, Benfica. Esta coisa da crise e da troika deve ter-lhe fundido os fusíveis. «Ó Gaspar, explique-se que eu não estou a perceber essa do Benfica e ainda menos a da teologia.» «Eu sei - disse, prazenteiro, o Gaspar e continuou - o Benfica fica para o ano, a teologia é que tem, agora, impacto económico. Eu explico. Não pode haver um feriado do Corpo de Deus!» Disse com veemência e quase soltou um palavrão. «Não? Que mal tem o Corpo de Deus?», abespinhou-se, muito homem, o primeiro-ministro. Gaspar não se amedrontou e disparou: «Não andou na catequese, não foi às aulas de Religião e Moral? Não lhe explicaram que Deus era invisível e incorpóreo?» O primeiro-ministro coçou a cabeça e o nariz, abriu a boca e tornou a fechá-la. Depois de passar com a língua nos lábios murmurou «Não estou a perceber, não terá estudado isso numa cadeira opcional de Economia que eu não fiz?» Gaspar, senhor já da vitória, sorriu, tamborilou com os dedos na mesa e rematou de trivela «Se Deus é incorpóreo não tem corpo. Se não tem corpo, não pode haver um Corpo de Deus e se não há um Corpo de Deus, não pode haver um feriado do Corpo de Deus. Percebeu?» Entoou, quase exaltado, para depois acrescentar «Ó homem mexa-se, telefone lá para o Cardeal ou para o gajo que manda nos bispos. Diga-lhe que são uns herejes, que Deus não tem corpo. Acabem lá com o feriado e ponham o rebanho a trabalhar, que eu preciso de salvar a produtividade.» Sorria, enquanto o primeiro-ministro procurava, confuso, o telemóvel.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Poema 67 - O arqueólogo senta-se com o passado ao colo

Giorgio de Chirico - Os arqueólogos (1927)

67. O arqueólogo senta-se com o passado ao colo

O arqueólogo senta-se com o passado ao colo,
embala-o docemente no ondear do tempo
e espera que adormeça ao cair da noite,
deixando na casa perfumes de rosa e almíscar,
o hálito transbordante da terra escavada,
pedras e rugas tecidas por hábeis tecedeiras.

Senhor de tanta sabedoria, olha o fundo da terra
e espera na revelação de um fragmento de sílex
o cântico da luz a explodir entre saibros e argilas.
Grande é o profeta que perscruta o que passou,
as entranhas fluidas tragadas pela memória,
os traços de musgo incendiados sobre o mar.

A doce harmonia da terra e do escavador,
o prazer de descer ao fundo do corpo amado,
traçar de cada estrato um mapa de seda e sémen,
e com mãos vazias de amante puro e incansável
recolher lento os vestígios do longo amor,
traços de sangue na fria seta da vida apagada.

terça-feira, 28 de maio de 2013

O custo dos baixos salários

Isidre Nonell Monturiol - Abatimento (1905)

Há dias, motivada por uma troca de palavras, num programa televisivo, entre um jovem empresário de 16 anos e uma conhecida historiadora, a nação inteira foi confrontada com o dilema se valeria mais ganhar o salário mínimo ou estar desempregado. Os blogues incendiaram-se, a direita liberal aproveitou a oportunidade para achincalhar a historiadora (na verdade, ela tinha feito uma coisa imperdoável para os liberais, tinha  mostrado que o Estado Social era pago pela massa salarial dos trabalhadores e não pelos impostos), teceram-se loas aos jovens empresários. Todos ficaram com a consciência tranquila perante a existência de salários miseráveis.

Contudo, estas coisas têm um preço. Na verdade, o preço é pago por todos. O ano passado mais de metade das famílias (56,42%) não tinha rendimentos suficientes para pagar IRS. Temos assim dois problemas. Por um lado, a maioria das famílias está à beira da indigência, devido aos salários baixos. Por outro, o esforço pedido aos outros cidadãos é maior do que deveria. A estratégia dos baixos salários, que tanto entusiasma os nossos liberais empreendedores (muitos deles funcionários do Estado), é, de facto, uma dupla injustiça. Injustiça para quem trabalha e não se vê condignamente compensado e injustiça para aqueles que pagam impostos, que pagam por si e por aqueles que não podem. Há qualquer coisa que não funciona neste país.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Meditações dialécticas (9) - A técnica

Ferdinand Hodler - Triunfo da técnica (1897)

Em muitos de nós existe uma estranha nostalgia, a de um mundo destituído de técnica. Duas ideias concorrem para este sentimento nostálgico. Por um lado, aquela que nos mostra que a técnica implica um ruptura com o mundo natural e uma existência pura e ingénua. Por outro, aquela que vê na técnica não apenas um instrumento de dominação (ao serviço dos dominadores, claro) mas o próprio dominador. Sob estas ideias residem aspirações profundas do ser humano, aspiração a uma existência mais autêntica e o desejo de uma vida completamente emancipada. A técnica seria o grande inimigo destas aspirações profundas da alma humana. 

O que não compreendemos, contudo, é que mesmo essas aspirações nostálgicas são já um produto da própria técnica e o resultado de um longo convívio do homem com os dispositivos técnicos, com os quais foi fabricando a sua vida e os seus sonhos de pureza e de autenticidade. Não se trata apenas de constatar que a vida humana sem os dispositivos técnicos seria um horror, sempre sob ameaça da própria natureza. A técnica, na verdade, protege-nos da natureza tal como ela é e, ao mesmo tempo, permite-nos sonhar com um mundo natural sem mediação da técnica, mundo que nós inventámos a partir do uso dessa mesma técnica.

domingo, 26 de maio de 2013

Um catálogo de perversidades

Paul Klee - Analysis of Various Perversities (1922)

Esta história de uma mulher que trabalha setenta e duas horas por semana e ainda tem de recorrer a ajuda para comer (no Público) ou esta que nos diz que mais de 2000 pessoas dormem nas ruas de Lisboa (no Público) é o retrato da sociedade que criámos. Mas não é apenas a dor de cada uma das pessoas atingidas pela situação (e a grande maioria de nós, de um momento para o outro, pode ser atingido pela miséria, sublinho pela miséria) que é sintoma das múltiplas perversidades sociais que desenharam e implantaram a situação que se vive. Do ponto de vista colectivo, a maior perversidade é a aniquilação da esperança, o roubo de um horizonte, pequeno que seja. A palavra de ordem que anima as elites sociais e políticas parece ser a destruição de qualquer possibilidade de vida digna, a criação de situações onde muita gente se entregará como escrava, a desintegração de qualquer espírito de iniciativa. Os liberais (e os nossos liberais, não o esqueçamos, odeiam a liberdade) que agora pululam por tudo que é televisão e blogue fazem-me rir. Como é possível criar uma sociedade verdadeiramente liberal, fundada na autonomia racional e na livre iniciativa, se a maioria das pessoas está à porta da escravatura? Tudo no Portugal de hoje é feio, é reles, é falso. Portugal é um catálogo infeliz de perversidades monstruosas.

sábado, 25 de maio de 2013

Thomas Mann, Tonio Kröger




Tonio Kröger, de Thomas Mann, é uma novela publicada em 1903, dois anos depois da publicação de Buddenbrooks – Verfall einer Familie (1901). Faz-se notar, muitas vezes, o paralelo com a novela Morte em Veneza (1912), pois em ambas se tem por centro da reflexão narrativa a vida do artista e a questão da arte. No entanto, poder-se-á alargar a rede de inter-referências dentro da obra de Thomas Mann. Como em Buddenbrooks, encontramos uma família, os Kröger, burguesa decaída. Como em Doutor Fausto (1946), encontramos uma reflexão sobre a arte. Também o tema da atracção homossexual durante a puberdade ou a pós-puberdade, presente em Tonio Kröger, será retomado em A Montanha Mágica (1924), na personagem de Hans Castorp. Em Tonio Kröger encontra-se, assim, concentrado um conjunto de temáticas que irradiam por toda a obra de Mann.

A temática da ambiguidade da orientação sexual desempenha, em Tonio Kröger, um papel não apenas introdutório – a novela começa a atracção homoerótica do jovem Kröger, então com catorze anos, pelo seu colega Hans Helsen, um jovem desportista, de famílias burguesas como os Kröger, centro das atenções da escola, segue com a paixão, aos dezasseis anos, pela bela Ingeborg Holm; ambas as paixões estão votadas ao fracasso – mas estrutural. A ambiguidade da orientação sexual constitui-se como símbolo de uma realidade ambivalente e conflitual, como se o sujeito fosse incapaz de a unificar e dar-lhe um sentido enquadrado no modo de vida em que foi educado, pela parte do pai, e no meio social a que pertence. Toda a novela é a busca desta reconciliação consigo ou da reconciliação em si destas ambiguidades.

A ambiguidade está já presente na origem étnica do próprio Tonio Kröger. Se o pai é um comerciante do norte da Alemanha, pertencente a uma tradicional família burguesa, já a mãe é uma meridional de tendências artísticas. Tonio está assim entre duas forças que são sentidas como contraditórias. O mundo severo – dir-se-ia, puritano –, rigoroso e disciplinado do pai e o universo fluido e encantado da mãe. Devido a esta origem, ele apresenta traços físicos diferentes dos seus colegas e daqueles que vivem na cidade. Esta diferença étnica tem um duplo impacto em Tonio Kröger. Por um lado, sente-a como causa da sua diferença e da rejeição, mais ou menos subtil, a que se sente sujeito. Por outro, condu-lo à idealização do aspecto germânico – cabelos louros, olhos azuis, etc. – que Hans Hansen e Ingeborg Holm tão bem representam.

Um dos elementos fundamentais desta novela – e que a liga ao romance Buddenbrooks – é o da queda (Verfall) da família burguesa. A morte inopinado do pai arrastou o fim do estabelecimento comercial e o desaparecimento da estirpe. Não se trata, como nas famílias aristocráticas, da ausência de um herdeiro, mas do surgimento de alguém que já não suporta os estreitos limites que a vida comercial exige para evitar a desagregação. Isto permite-nos pensar em algo que nunca é afirmado. Apesar das aparências (as famílias tradicionais de comerciante, as velhas casas na posse da família durante gerações), o modo de vida trazido pela burguesia exclui, na verdade, a linhagem. Nem os genes nem a lei, agora que uma sociedade dividida em castas desapareceu, são suficientes para manter a casa comercial. Tanto em Buddenbrooks como em Tonio Kröger esta desagregação da linhagem é simbolizada pela venda da casa de família. O que permite a continuidade da estirpe é a aquisição e a educação de uma certa atitude perante a vida e o mundo. É uma certa forma de estar e agir no mundo que estrutura a continuidade de uma família burguesa e a possibilidade de ela permanecer no negócio.

O principal inimigo da atitude burguesa é a atitude estética e a tentação artística. De novo, estamos perante uma duplicidade que dilacera a alma de Tonio Kröger. A novela é uma viagem de reconciliação entre as duas atitudes, entre a arte e a razão, entre a arte e a vida exuberante. Ele, a quem uma amiga pintora, Lisaweta Iwanowna, tinha chamado burguês extraviado, vai reconhecer a sua vocação de artista, de poeta, fundada no seu ser burguês: Pois, se há alguma coisa capaz de fazer de um homem de letras um poeta é este amor burguês que eu sinto por aquilo que é humano, vivo e habitual. Esta amor pela humanidade, todavia, não deixa de ser profundamente ambíguo e relacionar-se com as paixões iniciais: Mas o meu amor mais profundo e o mais secreto pertence aqueles que têm os cabelos loiros e os olhos azuis, aos seres claros e vivos, aos felizes, aos amáveis, aos habituais. Os cabelos loiros e os olhos azuis referem-se, claro, ao mundo simples e ordenado do seu pai, mas, ao mesmo tempo, referem-se a Hans Hansen e a Ingeborg Holm, à ambiguidade que eles introduziram na direcção do seu amor. Parece que a novela acaba no mesmo ponto que começou, mas isso não é verdade. Estamos perante uma narrativa hegeliana, aquilo que era apenas um conceito vazio – a ambiguidade do amor adolescente – torna-se agora, depois do devir narrativo – conceito concreto e pleno de vida, amor pela humanidade, mas por uma humanidade concreta, aquela que é simbolizada pelos seus primeiros objectos eróticos.


Thomas Mann (2003). Tonio Kröger. Lisboa: D. Quixote. Tradução de Cláudia Gonçalves.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

O ajustamento

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

Nos últimos dias assistimos a uma reviravolta no enredo da tragicomédia da crise das dívidas soberanas. Os alemães decidiram apontar o dedo ao FMI, ao BCE e, acima de tudo, à Comissão Europeia, em especial a Durão Barroso. Segundo os responsáveis alemães, não só os programas estão mal desenhados pela troika, como a Comissão Europeia é demasiado rígida no cumprimento de certas regras. Serão então os alemães nossos amigos? Para responder a esta questão, devemos perguntar se a posição crítica alemã se refere a questões de método ou a questões de substância. 

A posição alemã diz respeito ao método das políticas de austeridade e não ao conteúdo. Para os alemães a metodologia está errada pois desincentiva o investimento e o crescimento económico. O conteúdo, todavia, está correcto. Qual é o conteúdo? Trata-se fundamentalmente do ajustamento da economia à situação global em que vivemos. Ajustamento é uma metáfora terrível. Nessa palavra nós pensamos que alguma coisa se adequa a outra (que a economia dos países periféricos se adequa à economia global) e, ao adequar-se, torna-se justa. Por trás de todo este drama, há uma ideia de justiça muito peculiar. É justo aquilo que está de acordo com a verdade do mercado global. 

Qual a verdade do mercado global? Em termos gerais – pois a realidade nunca é a preto e branco – o trabalho industrial (do têxtil à metalurgia, etc., etc.) é produzido em lugares onde a desregulação do mercado de trabalho permite situações de quase escravatura. O trabalho altamente especializado e que necessita de grande incorporação técnico-científico está bem guardado nas grande potências, entre elas na Alemanha. Se há uma coisa que aprendemos em Portugal, neste últimos anos, é que, do ponto de vista económico, não é relevante o investimento feito em educação técnico-científica da população, se não há empresas que absorvam as novas gerações altamente qualificadas. 

O que resta para os países periféricos da Europa (do sul, mas não só)? Resta ajustarem-se e competirem com os paraísos de mão-de-obra quase escrava. Resta desregularem completamente o mercado de trabalho e eliminar os direitos sociais dos seus cidadãos. Nisto, a Alemanha não retrocede. E não retrocede porque não vai, obviamente, ceder as suas empresas altamente especializadas a outros países. Por outro lado, não apenas a Alemanha está a tirar proveito financeiro das crises dos países do sul, como tem nestes um reservatório de mão de obra especializada, formada à custa desses países, para as suas empresas. Este é o verdadeiro sentido do ajustamento e da contestação alemã à troika.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Poema 66 - Pobre e cego vaticinador

Giorgio de Chirico - O vaticinador (1916)

66. Pobre e cego vaticinador

Pobre e cego vaticinador,
onde estão agora os teus vaticínios?
Levaram-te as entranhas dos animais
e, no céu, os pássaros não voam.

Perdeste a arte do augúrio.
O tempo tornou-se pedra espessa e fria,
e os teus olhos cobrem-se de neblina,
seja negra a noite ou claro o dia.

Grande era o teu império.
Um trono fundado no presente
e de lá afrontavas o que haveria de chegar,
as dores temidas, a alegria ansiada.

Adormeces, agora, no terror do passado,
e se ouves palavras nos teus sonhos,
são barcos carregados de cinza
que entram no porto extraviados.

Um rosto  de água vacila no horizonte,
caminha para ti rodeado de escassez,
e estende as mãos metálicas
para os teus olhos cegos, exaustos de futuro.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

O Papa e o capitalismo selvagem

Joaquín Mir - Pobres (1899)

O Papa Bergolio, Francisco, parece não ter vocação para eufemismos. O que tem a dizer não o disfarça e, de uma forma clara e distinta, sabe traçar aquela linha vermelha que separa o bem do mal. Hoje, numa visita a uma instituição de caridade da Igreja Católica, não se coibiu de afirmar que "um capitalismo selvagem ensinou a lógica do benefício a qualquer custo, de dar para receber, o lucro sem olhar para as pessoas... e os resultados vêem-se na crise que estamos a viver". De uma forma clara, a Igreja Católica, talvez pela primeira vez na sua história, toma a questão da pobreza do ponto de vista do sistema que a produz. Os pobres não são apenas aqueles que necessitam do amor caritativo - embora, também precisem -, são agora, na linguagem do Papa, as vítimas de um sistema económico injusto e moralmente ínvio. 

A Igreja Católica não é uma instituição política e, por isso, a sua acção não é, nem deve ser, política. A Igreja, todavia, tem uma dimensão espiritual e moral. É seu dever denunciar e deslegitimar o mal, mesmo quando este se apresenta como uma potência organizada e dominadora do mundo. E o mal está nesse capitalismo selvagem, síntese orgânica do egoísmo e da avidez dos homens. Do ponto de vista social e político, estas intervenções do Papa Bergolio não deixam de ser cruciais, pois contribuem para tornar manifesta a repelência moral do sistema económico mundial e da ideologia que o sustenta, uma teorização justificativa do pior que há em nós. Para que seja possível parar a barbárie crescente, é necessário que as pessoas percebam claramente a maldade moral que se esconde no sistema económico mundial e nas políticas que o sustentam. O contributo do Papa Bergolio não é, por certo, dos menores.

terça-feira, 21 de maio de 2013

Metamorfoses da memória

Fernand Khnopff - Memórias (1889)

No quadro político e social desenhado na sequência da Revolução francesa, a memória sempre foi uma faculdade ligada à direita, aos sectores ditos reaccionários e saudosistas. Por exemplo, um livro - ou filme - como O Leopardo, de Giuseppe Tomasi de Lampedusa, lida com esse momento em que, com o triunfo da burguesia, a vida aristocrática se começa a transformar em pura memória. Don Fabrizio, príncipe de Salina, simboliza, com a dignidade de um velho senhor, já essa memória de uma antiga ordem que desaparece. A memória era o recurso nostálgico que restava a uma aristocracia destroçada pela iniciativa das classes mercantis. Era sempre uma memória reactiva e, segundo o linguajar da vida política do século XX, reaccionária, uma memória de uma ordem do mundo que fora desfeita pelas revoluções do século XVIII e XIX.

A novidade dos tempos que vivemos reside na mudança de coloração política da memória. A memória, na Europa ocidental, tornou-se uma prerrogativa da esquerda. Os tempos das amplas classes médias, das sociedades europeias reguladas pela combinação dos ideais de liberdade e igualdade, da possibilidade da mobilidade social são tempos que andam, nos dias de hoje, à procura do seu Don Fabrizio. O ideal de uma sociedade equilibrada, da harmonia social, da cooperação interclassista - apesar dos conflitos sociais; estes faziam parte dessa cooperação -, tudo isso está-se a transformar em pura memória, tragado pela voracidade das revoluções tecnológica e financeira e pela dominação incontestada das elites económicas. Pela primeira vez na história, a esquerda política tem um passado que lhe pode servir de ideal regulador e de horizonte nostálgico.

Contudo, a experiência histórica não é favorável a essa reminiscência. A derrota da aristocracia em 1789, apesar de uma efémera restauração monárquica no século XIX, representou o ruir de toda a cosmovisão aristocrática. As guerras napoleónicas foram fatais para os regimes aristocráticos europeus. A primeira guerra mundial, no século XX, liquidou o que restava. A rememoração aristocrática nunca teve peso impulsionador para colocar em questão o novo mundo trazido pela economia de mercado e pela ascensão da burguesia liberal. Também nos dias de hoje é previsível que a memória da sociedade europeia da segunda parte do século XX seja impotente para restaurar sociedades politicamente equilibradas e socialmente menos injustas. A memória metamorfoseia-se, mas nunca deixa de ser impotente perante o activismo das elites económicos.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Meditações dialécticas (8) - A igual solicitude de Dworkin

Marlene Dumas - Equality (1993)

Podemos voltar as costas à igualdade? Nenhum governo é legítimo se não mostrar uma igual solicitude (equal concern) pelo destino de todos aqueles cidadãos sobre quem reivindica dominação (dominion) e de quem exige lealdade. Igual solicitude é a virtude soberana da comunidade política - sem a qual o governo é apenas tirania - e quando a riqueza de uma nação é muito desigualmente distribuída, como o é agora a riqueza até de nações muito prósperas, então a sua igual solicitude é suspeita. (Ronald Dworkin, Sovereign Virtue - the theory and practice of equality)

Esta citação de Dworkin, com a qual abre praticamente a obra referida, traz de novo para o primeiro plano da filosofia política a temática da igualdade. A questão que inicia o texto não é uma mera pergunta retórica. Ela dirige-se a um problema central do funcionamento das nossas sociedades - por maioria de razões, diz respeito também a Portugal - e à questão da legitimidade do poder político. A questão insere-se num debate aceso há muito anos no mundo ocidental. Dever-se-á privilegiar a liberdade ou a igualdade? Quatro notas históricas. 

1. Liberdade e Igualdade, juntamente com a Fraternidade, são as consignas da Revolução Francesa. Contra o Ancien Régime, considerando que todos os homens são irmãos, os revolucionários de 1789 reivindicam não apenas a Liberdade mas ainda a Igualdade. 2. O século XIX, por seu lado, vai constatar, depois das Revoluções americana, francesa e industrial, em Inglaterra, que a igualade perante a lei é puramente formal, pois as desigualdades de destino trazidas pela nova liberdade são, no mínimo, tão terríveis quanto as desigualdades no Ancien Régime. 3. Desta constação nasceu o socialismo, o marxismo e a Revolução soviética, com os seus ideias igualitários. 4. O conflito entre as sociedades liberais e as sociedades igualitárias culminou com a vitória do liberalismo, após a Queda do Muro de Berlim, e o actual desprezo pela ideia de Igualdade.

A questão posta por Dworkin diz respeito, então, ao desenvolvimento da nossa história recente e à possibilidade, defendida amplamente pelos governos ocidentais e pelas elites económicas e financeiras, de evacuação do problema da igualdade das preocupações da vida política. A tese de Dworkin liga a igual solicitude com o destino de todos cidadãos com a legitimidade política democrática. Não é legítimo exercer dominação e exigir lealdade a pessoas que não são objecto de igual solicitude por parte da governação. E é esta igual solicitude que, nos países onde a distribuição de riqueza é muito desigual, está posta em causa e se tornou suspeita.

Esta igual solicitude perante o destino de cada cidadão pode, de certa forma, inscrever-se ainda no âmbito do poder pastoral, tal como o compreendeu Michel Foucault, essa preocupação do soberano-pastor que tem de prestar contas por cada ovelha do rebanho. Poder-se-ia argumentar que a igual solicitude do soberano perante os cidadãos seria uma forma de os tratar como menores, como não livres. Dworkin, porém, ao considerar a igual solicitude como a virtude soberana da comunidade política pretende, também, defender a liberdade, pois sem essa virtude o governo, com as suas reivindicações de dominação e de lealdade, não passará de uma tirania. Percebemos assim que a igual solicitude pode ser vista como a condição de possibilidade de uma comunidade livre e de cidadãos livres.

domingo, 19 de maio de 2013

A crise do regime

José Luis Molleda Rodríguez - Caos

O dr. Seguro acha que estamos à beira de uma "crise de regime". Talvez esta asserção represente um progresso do líder do PS na tomada de consciência da situação em que vivemos. Mas, infelizmente para os portugueses, abandonámos há muito esse lugar em que o regime se abeira da crise. Estamos, faz tempo, a viver num regime já em plena crise. Ninguém acredita na democracia, ninguém espera que os políticos, pela sua acção, contribuam para que os portugueses possam ter um módico de esperança. Das classes médias altas às classes mais baixas, os portugueses só encaram dois cenários. Empobrecer mais ou menos rapidamente ou sair daqui para fora e, se possível, não mais voltar. Apesar da aparente tranquilidade em que se vive, a vida nacional é um autêntico caos. O Estado - atacado sistematicamente por uma classe política inimputável - já mal funciona e a sociedade civil está exausta, sem ânimo e sem qualquer perspectiva de futuro. Não é preciso viver num tumulto permanente para que se viva no caos, basta que a esperança seja erradicada da vida das pessoas, como o foi pelas últimas governações, com especial ênfase para a actual. 

O que, todavia, é repelente na retórica de Seguro é o que ele não diz. Renegociar a dívida e colocar a questão do emprego como questão central são banalidades piedosas que até os adeptos do governo defendem. O que Seguro não diz - e não o diz porque ele não é diferente de Sócrates ou de Passos Coelho - é que caminhos propõe para renegociar a dívida e desenvolver a economia, não diz que alianças está disposto a fazer e que rupturas políticas propõe para nos retirar do estado crítico e caótico em que estamos metidos. Seguro não é diferente dos outros líderes da Internacional Socialista que há muito esqueceram os ideais da velha social-democracia e se deixaram contaminar pelas teorias económicas dominantes, aqueles que tornaram o regime português num verdadeiro caos, num inferno sem saída. Seguro apenas está à espera que o governo caia de podre para ver chegar a sua hora de fazer o mesmo, com uma ou outra mudança cosmética, que Coelho e Portas estão a fazer. Apesar do seu ar beato, quem acredita que Seguro seja o homem do milagre, o homem que traga uma novidade e acenda a esperança em Portugal? O que podemos esperar de alguém que tem por política não comprometer-se com nada?

sábado, 18 de maio de 2013

Leituras poéticas - Ivone Costa, Ordem Breve, "locus antiquus"

Manuel Amado - La puerta (1971)

O abraço de penumbra chega
quando a porta se lamenta na ferragem ociosa.
Por todas as salas
correm a esconder-se
risos antigos e secretas traições.
Deixam pegadas ingénuas
no pó do soalho,
encobrem-se no damasco puído
que vela as janelas cegas.

As casas esquecidas
têm uma alma de cinza
volátil
entre os dedos do presente.

(Ivone Costa, Ordem Breve, "locus antiquus")

O poema "locus antiquus" faz parte do livro Ordem Breve (2011), de Ivone Costa (ou Ivone Mendes da Silva, a proprietária do inevitável A Ronda dos Dias). Ordem Breve é um livro a que volto uma e outra vez. Melhor, é um livro a que, vezes sem conta, bato à porta, pois é casa de prazeres elevados, que, apesar da revisitação persistente, surgem à leitura como sempre novos. Bater à porta é expressão indicada quando se tem em conta o livro - há múltiplos poemas onde a metáfora da porta desempenha uma função central - ou se considera, como neste texto, apenas o poema em epígrafe. 

Como entrar neste "locus antiquus"? Pela porta, claro. O verso "quando a porta se lamenta na ferragem ociosa" contém a chave de leitura de todo o poema. Há uma condensação de sentidos na "porta (que) se lamenta" pela combinação da metáfora (a porta que se lamenta) e da metonímia (a porta que se lamenta não é bem uma porta, mas a casa, para a qual, através de uma relação de contiguidade, a porta remete). Na verdade, podemos pensar que é a casa que se lamenta, mas a lamentação das "casas esquecidas", porque estão fora do império da memória, só se pode ocorrer de forma oblíqua. Como criar este efeito de obliquidade? Através do uso da metonímia "porta" e do ranger nos gonzos que, há muito, foram entregues à ociosidade.

O poema, todavia, não é uma meditação sobre a casa, tomada como elemento arquitectónico ou inscrita na dinâmica da ocupação dos espaços natural e social. Sobre isso, nada nos diz. A casa é o locus onde se desenrola o drama em que se cruza a vida e o tempo. "O abraço de penumbra" é já o resultado da tecelagem que cruzou os fios da vida e os do tempo. Nesse "abraço" sinto a vida, mas pela "penumbra" (essa quase ausência da luz do presente) sou de imediato enviado para o domínio do passado. Como constrói o poema essa relação entre vida e temporalidade?

Em primeiro lugar, a vida - sim, os "risos antigos e secretas traições" não são outra coisa senão a vida - esconde-se e encobre-se no "damasco puído". Apesar de deixar, no presente, vestígios - pegadas ingénuas / no pó do soalho -, essa vida é já passado, chegada até à consciência no lusco-fusco da memória. Vestígios são sinais de algo que passou, que se escondeu ou encobriu. Do passado, dessa vida exuberante, plena de alegria e premeditações da razão (as "secretas traições"), resta agora as pegadas ingénuas no pó do soalho. O pathos do passar do tempo ressalta, então, de um hábil e duplo jogo de contrastes.Por um lado, esse jogo põe em tensão aquilo que se esconde e encobre e aquilo que se revela nas pegadas no soalho. Por outro, cria um choque entre a premeditação e a ingenuidade, a premeditação da vida vivida e a ingenuidade dos traços e vestígios que acabou por deixar. Através deste jogo duplo, o leitor sente a passagem do tempo, o seu fluxo eterno, através daquilo sob o qual ele se manifesta.

Mas a construção dessa relação entre vida e temporalidade não está concluída. O que vimos até aqui foi a reconstrução do fluir do tempo através do seu impacto sobre a vida, nesse locus vital por excelência que é a casa. A estrofe final desenha o sentido dessa relação. Esse sentido é o da volatilidade da vida. Nesta estrofe, "as casas" surgem não como o locus onde a vida se desenrola, mas como uma metonímia que remete para a própria vida, pois são dotadas de alma. A vida é uma coisa que, devido à sua relação com o tempo, voa, mas não voa como um pássaro, voa como a cinza. Ela é pegada, vestígio, presença que se torna penumbra, múltiplas metamorfoses trazidas pelo tempo, dentro de um espaço marcado pela oclusão, assinalada por essas "janelas cegas" que o "damasco puído" vela. Chegados aqui, podemos retornar ao verso "quando a porta se lamenta na ferragem ociosa". O deslizar do sentido da porta que se lamenta leva-nos da porta já sem uso, à casa vazia e esquecida, e desta à vida que se tornou cinza volátil, "entre os dedos do presente", como se este fosse apenas a rememoração do que passou.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

A duplicidade como método

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

No drama da dívida soberana, há uma duplicidade em que vale a pena meditar. Refiro-me à das instituições que compõem a troika de credores internacionais. Essa duplicidade resume-se a uma clara dissonância entre as proclamações dos dirigentes máximos desses organismos e aquilo que os técnicos impõem nos países sob auxílio. Enquanto os dirigentes proclamam que a austeridade não funciona, que se atingiu o limite do tolerável, etc., etc., etc., os técnicos no terreno mantêm uma impiedosa agenda de austeridade. 

Certamente que os agentes da troika não são um bando de rapazes mal comportados que desobedecem aos chefes. Apenas cumprem ordens, e ordens que lhes são dadas precisamente por aqueles que proclamam os limites da austeridade como estratégia regeneradora de uma economia. O que se passa, então? Qual a razão de tamanha duplicidade? A duplicidade táctica utilizada deve-se a um facto que não é notado. Devido à massiva propaganda a que as pessoas estão sujeitas, pensa-se, geralmente, que o programa da troika e aquele que o actual governo lhe adicionou servem para regenerar uma economia que estava em frangalhos, devido à maldade intrínseca dos povos atingidos pelos resgates. Na verdade, existe uma agenda oculta, inconfessada e inconfessável, que tem outros motivos para este tipo de intervenção. 

Pretende-se pura e simplesmente destruir as economias existentes, fundamentalmente, evitar que haja uma recomposição social onde o pilar central seja a existência de uma ampla classe média. O que está em jogo, e nunca é confessado, é a destruição das classes médias, a sua proletarização. A intervenção da troika é o momento ideal para que seja redesenhada a sociedade. Este novo design pretende aproximar os países europeus dos asiáticos. Sem que as pessoas compreendam, pois isso é-lhes escondido, ou queiram acreditar, pois isso é doloroso, o que está em jogo é a aproximação da Europa ao modelo regulador fornecido pelo Bangladesh. 

Como se sabe, as democracias representativas só são possíveis se fundadas num amplo consenso social. A erosão das classes médias está a criar um enorme ressentimento social. Não apenas a democracia perdeu o seu conteúdo (a existência de alternativas reais), como está a alienar a sua base de apoio. A duplicidade táctica da troika, e do governo português, não é má apenas porque destrói sem remissão o modo de vida anterior, mas porque cria as condições para aventuras totalitárias fundadas no ressentimento das classes médias destruídas.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Poema 65 - Atravesso contigo a floresta sagrada

Arnold Böcklin - Floresta sagrada (1882)

65. Atravesso contigo a floresta sagrada

Atravesso contigo a floresta sagrada
e deposito no altar as piedosas oferendas,
rosas trazidas nas mãos,
a recordação da última primavera,
o primeiro sonho de uma noite de verão.

Sinto o crepitar das folhas mortas
e oiço, entrecortada, a tua respiração.
Recolho-me em cada sombra
e aspiro o hálito das bagas silvestres
que em sobressalto de ti se desprende.

A luz fugidia ilumina o caminho,
traça mapas de trevas sobre a terra,
enquanto, ao longe, se ouvem os lobos,
e pássaros errantes voam
na densa vertigem do meu coração.

Recolho os vestígios deixados pelos deuses
e entoo um cântico matinal.
Despido, sinto o corpo perdido no teu,
túnica silenciosa entreaberta,
o secreto desejo onde o amor se recolheu.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Cavaco, o treinador

Jacinta Gil Roncalés - Entrenador (1998)

Nada melhor do que um dia, como o de hoje, consagrado à bola, para compreender a nossa vida política. Durante certo tempo, o lamentável Presidente da República que, para abundante infelicidade nossa, os portugueses, por duas vezes, sufragaram apresentava-se como árbitro. Hoje a imagem arbitral já não colhe. Todos percebemos que a metáfora do árbitro - com os seus deveres de neutralidade e de imparcialidade perante as equipas - apenas servia para mascarar a real situação. Cavaco não é nem nunca foi neutro ou imparcial. Foi sempre um árbitro caseiro, apitando a favor dos da sua casa. O problema não está no facto de ele ser parcial, mas na tentativa de esconder essa sua parcialidade.

Caído o véu da ignorância, compreendido que Cavaco é mais um dos que apoia uma parte do país contra outra, qual a metáfora futebolística que melhor cabe a este Presidente da nossa infeliz República? Como se pode ver aqui, Cavaco Silva acha por bem que ele, o Presidente da República, dê conselhos públicos à equipa governamental, que diga como deve jogar, como os jogadores se devem comportar dentro de campo e até nos balneários. À função de árbitro - árbitro caseiro, como se disse - soma as funções de treinador, do homem que comanda a táctica e a estratégia e dá sugestões sobre a comida e a temperatura da água do banho. E quando a sua equipa marca um golo - claro, um golo contra Portugal e os portugueses - o treinador Cavaco não esquece de agradecer à Virgem de Fátima.

Nunca pensei ver um Presidente da República que descesse, em nível político, abaixo do Almirante Tomás. Cavaco Silva, porém, não pára de nos surpreender e já suplantou o velho marinheiro em lugares comuns, frases insensatas e palavras tolas. Como é possível os portugueses gostarem tanto de uma pessoa assim?

terça-feira, 14 de maio de 2013

Mulheres de conforto

Frank Frazetta - Geisha (1983)

Um dos sintomas mais assustadores dos nossos dias é a perda das inibições resultantes das II Guerra Mundial. Não é só a Alemanha que esqueceu o mal que provocou ao mundo e retoma, agora através de diktat económico, a velha arrogância. Também no Japão se sentem os odores do velho nacionalismo imperial. Toru Hashimoto, presidente da Câmara de Osaka e um dos líderes do emergente Partido Nacionalista da Restauração, veio justificar o uso, no conflito de 1939-45 e em territórios ocupados pelos japoneses, de mulheres chinesas, coreanas, filipinas, indonésias e de Taiwan como escravas sexuais. Segundo Hashimoto "Para soldados que arriscaram a vida quando as balas caíam como chuva, de modo a terem algum descanso era necessário arranjar uma 'mulher de conforto'. Isto está claro para todo mundo." Para além do desprezo pelos direitos dessas mulheres e pela sua memória, há no discurso de Hashimoto uma clara provocação à China e à Coreia do Sul. Não é só na velha Europa que a globalização está a fazer crescer a hidra do nacionalismo. Veremos se as mulheres de conforto não serão um peça importante numa futura situação de profundo desconforto. A memória dos homens é curta e a estupidez parece estar democraticamente distribuída por todo o mundo.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Trabalho, verdade e moralidade

Munir uz Zamna-AFP (Público)

Os protestos dos trabalhadores têxteis do Bangladesh e o encerramento por tempo indeterminado de 300 fábricas, bem como o nível salarial absolutamente miserável fazem-nos recuar para os primeiros tempos da Revolução Industrial e do nascimento de uma economia predominantemente capitalista. Eric Hobsbawm, no seu livro a Era das Revoluções, refere que a natureza do espírito capitalista reside em comprar nos mercados mais baratos para vender nos mais caros. O problema está na mercadorização do trabalho humano. A consideração deste como mera mercadoria implica que seja procurado onde for mais barato, com os resultados habituais, de exploração, miséria e morte. 

Michel Foucault, por seu lado, salienta que o mercado, com o seu jogo da oferta e da procura, é o lugar de veridicção onde se estabelece a verdade do preço de uma mercadoria. Dito de outra forma, não há preços justos mas preços verdadeiros, aqueles que o livre jogo do mercado estabelece. O grande problema surge aqui. Se o trabalho humano é uma mera mercadoria sujeita à verdade do mercado, então as relações laborais não se inscrevem no âmbito do que é justo e do que é bom, moralmente falando. 

O grande ardil da economia de mercado reside em ter encontrado um lugar onde as relações humanos se furtam à apreciação e à avaliação morais. O custo do trabalho humano é verdadeiro ou falso (conforme esteja de acordo ou não com o mercado), não é justo ou injusto. Este estratagema abre o caminho para justificar - sem um arrepio na consciência, pois é um problema de verdade, como os economistas não cessam de fazer notar - todos os Bangladeshs existentes ou a existir.

domingo, 12 de maio de 2013

A nossa tragédia

Jaime Colson - Modelo de catarsis (1932)

Há uma diferença essencial entre as tragédias clássicas gregas e a situação trágica em que vivemos. As primeiras, segundo Aristóteles, tinham como função purificar, nos espectadores, os sentimentos de terror e de piedade, um contributo para a vida cívica. No caso português, ou europeu, a tragédia não é qualquer coisa que o espectador observe sentado num anfiteatro, onde assiste à inevitável e pré-anunciada perda do herói trágico. O espectador ocupa agora o centro da acção trágica e vê-se a si-mesmo a perder-se nos meandros escabrosos que a hybris de politicos, banqueiros e economistas lançaram o país. Nesta tragédia, não há espectadores que possam purificar os sentimentos de terror e piedade. O que temos é uma multidão que se dirige para um destino fatal, uma multidão cada vez mais aterrorizada que, em murmúrios ou em altos brados, não tardará a clamar por piedade.

sábado, 11 de maio de 2013

Poema 64 - Corpo perdido na sombra do deserto

Brull Carreras - Desierto de Atacama (Chile)

64. Corpo perdido na sombra do deserto

Corpo perdido na sombra do deserto,
um traço de angústia sob o sol,
o coração desfigurado no tumulto da manhã,
esperança de uma caravana que passa
e deixa no ar o húmus da vida.

Abriste o corpo ao látego do desejo
e tudo estremeceu sobre a terra,
a memória das coisas passadas,
poeira que cobria os últimos cactos,
o amor despedaçado nas dunas imóveis.

Houvesse ainda uma fonte em teu corpo
e os meus lábios abrir-se-iam para ti.
Sedentos, deixariam correr a água,
enquanto a areia branca e silenciosa
se cobria de erva sob o novelo da tarde.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Paulo Portas


O chefe do CDS-PP é uma lição viva daquilo que constitui a verdadeira natureza da política. Ele não é estruturalmente diferente dos outros políticos, mas é muito mais inteligente e eficaz na prossecução dos seus objectivos. O Dr. Portas consegue a coisa extraordinária de estar comprometido com a política deste governo até à ponta dos cabelos, e passar para a opinião pública a ideia de que é uma espécie de oposição no interior do governo às maldades deste. Ele faz parte do grupo de pessoas que toma as decisões que estão a destruir Portugal, mas dá o ar que não é responsável por tamanhas malfeitorias. 

O 25 de Abril intensificou nos portugueses uma terrível ilusão que já vinha do salazarismo. Pensam que o fundamental da acção de um político é servir o país e os cidadãos. Esta é a pior das ilusões. Um político só ambiciona uma coisa, o poder. Toda a sua acção visa conquistar e manter o poder, custe o que custar. Salazar sabia-o muito bem, assim como os políticos da democracia, de Soares a Cavaco, de Cunhal a Sá Carneiro, de Durão Barroso a Sócrates e por aí fora. Se por acaso fazem obra que sirva as pessoas, isso deve-se apenas à necessidade de manter o poder e não por amor às pessoas. Na política não há amor ao próximo, nem devoção ao bem público, nem serviço à comunidade. Há o poder. Todo o resto é acessório e instrumental. 

O comportamento aparentemente bipolar de Paulo Portas é, deste modo, explicado facilmente. O que está em causa, na sua acção de distanciamento do governo relativamente ao agravamento das contribuições sobre os reformados, não é o amor por estes ou preocupação com o seu sofrimento, mas pura e simplesmente o poder. Os reformados constituem um nicho do mercado eleitoral muito grande, talvez o maior grupo social do universo eleitoral. É desse grupo que Paulo Portas espera o apoio para que, no futuro, se possa manter no poder, coligado com o PSD ou com o PS. 

Tenho visto muita indignação mal disfarçada por parte dos apoiantes de Passos Coelho. Queixam-se da desonestidade de Portas, da sua deslealdade, do oportunismo do chefe dos centristas. Esqueceram já a campanha absolutamente mentirosa levada a cabo por Passos Coelho para chegar ao poder, esqueceram a desonestidade e o oportunismo das sua promessas eleitorais. Mas a única coisa de que se devem queixar é da natureza. Esta foi benévola com o Dr. Portas, pois deu-lhe uma inteligência que falta, e muito, noutros lados. Quanto ao resto, nada de novo sob o sol. É apenas a luta pelo poder e Paulo Portas não se esquece do que é essencial.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Ferdinand Ossendowski, Bestas, Homens e Deuses


Um acaso fez-me chegar a este livro. Li as primeiras linhas e decidi continuar. O texto original, publicado em inglês, data de 1924. Descobri que o livro nos anos trinta do século XX tinha tido uma certa repercussão. Isso deveu-se ao clima ideológico da época. Ferdinand Ossendowski, um geólogo e engenheiro de minas, fugira da Rússia, através da Sibéria e da Mongólia, na sequência da Revolução de Outubro de 1917. É essa fuga que é narrada. A este sucesso literário inicial, motivado pelo conflito ideológico,  segue-se o esquecimento. Apenas gente interessada em teorias esotéricas lhe prestaram atenção devido à questão do Rei do Mundo, uma lenda que faz lembrar, de certa meneira, a lenda do Prestes João, que animou as imaginações, ao que consta, na época dos Descobrimentos.

Quem estiver, contudo, pouco interessado em conflitos ideológicos e políticos do início século XX (para estes há uma imensa literatura histórica) e em especulações esotéricas (para estas há o livro de René Guénon, O Rei do Mundo) tem, ainda assim, bons motivos para ler a obra. Ela cruza a literatura de viagens, o romance de aventuras e, ainda que de forma muito limitada, a auto-biografia. Lê-se pelo prazer de acompanhar a personagem, que é também o narrador e o autor, na sua fuga ao Exército Vermelho, nas suas deambulações que o hão-de conduzir a território neutro e seguro.

O que está em jogo neste tipo de narrativa não é a identidade da personagem, a forma como ela se vai metamorfoseando ao longo da narrativa, num processo em que o tempo tem um papel central no reconhecimento de si. Poder-se-á dizer que a estrutura central deste tipo de narrativa não é o tempo mas o espaço. O espaço que vai da Sibéria, Krasnojarsk, até Urga, capital da Mongólia, hoje designada Ulan Bator. É a narrativa que estrutura o espaço e o abre para o leitor. Este descobre não as metamorfoses do herói mas os seus encontros com outros homens e com realidades muito diferentes daquelas que os ocidentais poderiam esperar.

Haverá um modelo sobre o qual se estrutura a viagem de Ossendowski? Esta viagem é a de retorno à pátria, uma viagem cheia de peripécias e ciladas, uma viagem que tem por arquétipo a de Ulisses para Ítaca. Como Ulisses também ele tem de defrontar perigos e armadilhas, como Ulisses - embora sem a cena dos pretendentes - ele escapa a um destino infeliz. O que a afasta do arquétipo, porém, tem a ver com a identidade das personagens. Ulisses é um guerreiro que vive num tempo dominado pelo mito. Ele encontra-se no seu próprio ambiente. Com Ossendowski passa-se uma outra coisa e bem diferente.

O protagonista e autor é um homem da razão, formado no ambiente da ciência e da técnica, tem uma visão racional do mundo. A viagem não é apenas o percurso pelos obstáculos e ciladas que surgem, mas também uma visita a um mundo mítico ainda vivo, um mundo encantado sobre o qual a racionalidade do Estado moderno ainda não tinha feito cair a burocracia e o desencantamento. O leitor descobre o fascínio que esse mundo encantado - fundamentalmente o da Mongólia budista e teocrática - exerce sobre um racionalista à procura de salvar a pele. As múltiplas histórias de encontros e desencontros são, por outro lado, belíssimas descrições etnográficas de um mundo que ainda estava vivo e que, por certo, é incompreensível para os homens do século XXI.

Entre lendas e mitos, compreendemos a natureza de uma sociedade teocrática, rodeada de mistérios e enigmas, mas onde os homens apresentam as mesmas paixões de outros lados. Confirmamos que a vida política, onde quer que seja, não deixa de apresentar aquelas características que fizeram a fortuna teórica de Maquiavel. Entre a sedução do mistério e o interesse racional, entre a descrição psicológica de personagens reais, como o Buda Vivo ou o herói anti-bolchevique barão Von Ungern Sternberg, e a presença da história figurada na memória de Gengis Khan, a narrativa de Ossendowski é sempre um prazer, aquele prazer que sentíamos, na infância e na adolescência, na leitura de histórias e romances de aventuras. Que o livro termine com o chamado enigma do Rei do Mundo é mais do que um tributo prestado pela razão ao mito. É um tributo ao segredo misterioso que é a essência de toda a literatura de aventuras.

Ferdinand Ossendowski. Bestas, Homens e Deuses. Hemus. Tradução de Agata M. Auersperg.