domingo, 30 de junho de 2013

Os semeadores de ventos

Filippo Tommaso Marinetti - Prampolini

O extremismo político não se combate pelo exorcismo. Quando se chega ao tempo do exorcismo (aqui e aqui), como acontece agora em França, é porque aquilo que deveria há muito ter sido feito não o foi. O apelo dos grupos radicais, as tomadas de posição racistas, a intolerância crescem porque as condições sociais e económicas adoptadas pela União Europeia permitiram que o ovo rebentasse e a serpente eclodisse. Quando um ministro socialista francês acusa o comissário Barroso de ser o alimentador da extrema-direita tem alguma razão. Esquece, porém, como os socialistas europeus - nas suas diversas denominações, trabalhistas, sociais-democratas e socialistas - cooperaram activamente com a direita liberal para fazer estilhaçar o equilíbrio social existente. Que diferença haverá entre os socialistas franceses, agora tão indignados e com um problema sério entre mãos, e os comissários europeus? Não foram todos cúmplices na destruição do Estado providência, nos ataques às soberanias nacionais, na política de acumulação de capital, na destruição da indústria europeia? Agora começa a liturgia do exorcismo, mas a continuar assim ela servirá apenas para aplacar algumas consciências mais sensíveis. Quem não gosta de tempestades, não semeie ventos. Ora os governantes europeus há muito que se tornaram semeadores de ventos.

sábado, 29 de junho de 2013

Descrença, crença e acusação

Pérez Villalta - El discurso de la verdad (1978)


O leitor de blogues deve suspender a crença. A analogia com a suspensão da descrença de Coleridge remete-nos para a seguinte ideia: o leitor deve tomar como ficção aquilo que lê num blogue, mas, acrescento eu para tornar a analogia completa, aquilo que lê não é fictício. Não é tanto a dificuldade que o leitor possa sentir em suspender a crença que me importa, embora, devido à nossa inultrapassável tendência para a crendice, seja mais fácil suspender uma descrença do que uma crença.

A questão, porém, é outra. Que relação tem o autor de certas palavras com o que nelas está dito?Espera-se, se não estamos no reino da ficção, uma certa autenticidade de quem escreve, mas isto deve-se à nossa necessidade de crer e não a qualquer elo que ligue as palavras a quem as escreveu. O problema não é apenas o da máscara social, o da personae com que me revisto e me apresento no espaço público. O que todo o leitor deveria saber e talvez não saiba é que as palavras não expressam quem as escreve, mas são-lhe estranhas. Ao serem escritas, estranharam-se ao seu autor, e surgem perante ele como um libelo acusatório.

Escrever é diferente de falar. A fala desvanece-se no acto que a produz, a escrita, porém, permanece. E nesta permanência ela torna-se absolutamente ameaçadora para quem a escreveu. Quando escrevo eu não fabrico uma máscara social. Quando escrevo entrego as provas contra mim e colaboro com os meu inimigos, mesmo que os não tenha, para que me destruam a máscara social e, como eu também sou essa máscara, me destruam. Alguém escreve a outra pessoa uma carta de amor. Aquilo é a expressão de uma autenticidade? Nunca se saberá, o próprio autor nunca terá a certeza absoluta da autenticidade do seu impulso. Mas é uma prova perante a qual o seu autor terá de responder. Escrever é sempre produzir matéria para a nossa acusação.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Horas de trabalho

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

Segundo Nadim Habib, director da Nova Executive Education, citado pelo Expresso, os portugueses trabalham em média 1700 horas/ano, mais quatrocentas (400) que os alemães. Os portugueses ”produzem pouco com esse trabalho. Geralmente isso significa falta de uma estratégia clara que nos ajude a definir o que vamos fazer e, ainda mais importante, o que não vamos fazer”, considera Habib. Eis o retrato da baixa produtividade portuguesa. Percebe-se, de imediato, que as medidas do governo – aumento do horário de trabalho e o fim de quatro feriados – são inúteis e derivam apenas de preconceitos ideológicos contra aqueles que trabalham por conta de outrem.

Se as instituições privadas ou públicas têm baixo rendimento, o problema encontra-se na forma como as suas direcções e administrações organizam e gerem o trabalho. São incapazes de instituir métodos de trabalho eficazes e motivadores, e não têm capacidade de discernir o que deve ser feito e aquilo que representa um desperdício de tempo e de empenho por parte de quem trabalha. O grande défice não é das horas de trabalho, como pretenderam Passos Coelho e Vítor Gaspar, mas do uso de técnicas de gestão e direcção adequadas. Seria sensato, por exemplo, que um governo preocupado com a produtividade nacional fizesse um esforço, em colaboração com as empresas, no sentido de tornar a gestão e direcção do trabalho mais eficiente.

O que aconteceu, porém, é que o governo decidiu reforçar as más práticas dos directores, gestores e administradores, ao alargar o tempo de trabalho que as pessoas são obrigadas a realizar. Foi um prémio à incompetência, à negligência, à falta de estudo e de organização. Em vez de criar condições para que a gestão da produtividade do trabalho aumentasse, criou as condições contrárias, tornando ainda mais fácil as práticas desleixadas e desorganizadas dos responsáveis por empresas e instituições públicas.


Por que razão acontece isto? Pelo simples facto de sermos governados por pessoas extremistas, insensatas e cheias de preconceitos ideológicos. O programa do governo assentou, desde o início, na decisão de castigar as pessoas que trabalham por conta de outrem. No fundo, o governo está convencido de que o atraso da economia portuguesa se deve à protecção dos trabalhadores. Em vez de tentar perceber os casos de sucesso – onde a produtividade está ligada à excelência da gestão e à motivação dos trabalhadores – o ódio ideológico ao mundo do trabalho não permite aos governantes melhor do que tornar a vida de quem trabalha ainda mais infernal. Deste devaneio ideológico, só podemos esperar o pior.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Leituras poéticas - Jorge de Sena, Amátia

Zena Robinson - O som das folhas que caem (1997)

Timbórica, morfia, ó persefessa,
meláina, andrófona, repitimbídia,
ó basilissa, ó scótia, masturlídia,
amata cíprea, calipígea, tressa

de jardinatas nigras, pasifessa,
luni-rosácea lambidando erídia,
erínea, erítia, erótia, erânia, egídia,
eurínoma, ambológera, donlessa.

Áres, Hefáistos, Adonísio, tutos
alipigmaios, atilícios, futos
da lívia damitada, organissanta,

agonimais se esforem morituros,
necrotentavos de escancárias duros,
tantisqua abradimembra a teia canta.
                                                                (Jorge de Sena, Amátia)


Antes de se entrar na questão da destruição do sentido, é necessário atentar nos quatro sonetos - em especial em "Amátia" - e, independentemente das intenções do autor, perceber o que se passa. Mesmo  se "Amátia" é composto pelos epítetos gregos de Afrodite, como sublinha Sena, não deixa, para o leitor comum, de fazer parte de um conjunto de sonetos onde as palavras, se é que estamos perante palavras, são invenções do poeta, são significantes sem significados. Sena conduz-nos à essência da poesia, à pura música. Os sonetos são compostos por versos decassilábicos - ora heróicos, ora sáficos - e usam a rima. É este jogo rítmico que faz o encantamento destes poemas. No seu sentido mais fundamental, a poesia é apenas música, a música produzida pela voz humana. Antes de ser sentido, a voz humana é som, ritmo, harmonia, desarmonia, consonância, dissonância.

Se a poesia é som, música, então ela é mais que uma representação de um complexo de imagens, como pretende Jorge de Sena. A música não é a representação de nada, mas a pura presença do ritmo e da harmonia. O que torna estes poemas de Sena extraordinários é que eles são música em estado puro, a emanação da voz do próprio ser, como haveria de dizer o Nietzsche da Origem da Tragédia. É essa musicalidade da voz humana que poderá gerar nos auditores diferentes e vários complexos de imagens, mas aqui já estamos no momento em que o som se desvanece no sentido, através da mediação das imagens. Contudo, esse som presente na voz humana que diz aqueles ou outros poemas é independente das imagens que se geram em quem escuta. Esse som é a presença do Verbo, entendido este como pura vida.

Destruir a natureza semântica da linguagem como tarefa da poesia faz todo o sentido. Mas Jorge de Sena não radicaliza o suficiente a sua posição, pois admite ainda a composição de "um sentido global, em que o gesto imaginado valha mais que a sua mesma designação". Não se trata, quando encaramos a poesia enquanto pura música, de substituir um discurso que nos dá sentidos particulares por outro que transportaria um sentido global. Trata-se de abandonar o território do sentido, tanto do logos apofântico como do logos total, para penetrar no território do Verbo, nesse lugar sem sentido, nesse espaço onde não penetra a luz de qualquer semântica nem de qualquer lógica, mesmo dialéctica, mas que é a condição de todas elas. Estes sonetos a Afrodite Anadiómena (a deusa do amor que vem das águas) transportam-nos, decididamente, para lá. Mas que fazer com o sentido que tantos poemas - a generalidade daqueles que Jorge de Sena escreveu - transportam através da musicalidade dos versos? Isso fica para outra hora.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Meditações dialécticas (13) A crise da representação política

August Macke - Despedida (1914)

Com efeito, onde o si-mesmo está apenas representado e apresentado idealmente ele não está efectivamente; onde ele está por procuração ele não está. (Hegel, Fenomenologia do Espírito)

Esta estranha e quase incompreensível frase de Hegel pode ser transferida do seu contexto filosófico para o grande drama da história contemporânea do mundo. Num post anterior, observou-se que o conjunto de protestos, sublevações, manifestações que parecem eclodir um pouco por todo o lado são sinais de uma luta dos seres humanos contra a fatalidade, uma fatalidade que é fruto da liberdade dos outros. Uma segunda característica que marca a experiência da humanidade nos dias de hoje está ligada à representação. As democracias modernas, a forma de organização política que o Ocidente inventou, são denominadas democracias representativas. Nelas, os cargos políticos estão formalmente abertos a todos. O sistema político, todavia, representa ao mesmo tempo uma forma de inclusão e de exclusão. Na forma e em abstracto, todos podem participar na decisão política, elegendo os seus representantes ou candidatando-se a representante. A contrapartida deste processo de inclusão é a exclusão efectiva dos não eleitos, que são mais de 99% da população de uma comunidade política.

O que Hegel chama a atenção, num outro contexto, é que quem está representado, quem passou procuração a terceiros, quem está presente apenas na forma de uma idealidade, não está, de facto, presente. A representação política significa, na verdade, uma forma dos cidadãos individuais se ausentarem das decisões da comunidade. A crise das democracias representativas que se vive na Europa, as explosões sociais como as do Brasil, os níveis de abstenção elevadíssimos que se encontram  em muitas eleições (a começar pela do Presidente dos EUA) são tudo sinais de que os indivíduos, na sua singularidade, sentem-se ausentes do espaço político onde são tomadas as decisões que os afectam. A novidade, se é que há uma novidade, é que a crença que liga os eleitos e os indivíduos que os elegem se esboroa muito rapidamente, deixando os sujeitos eleitores numa situação de orfandade. O que se está a passar não é apenas um conflito contra os maus representantes políticos, mas um conflito que põe a nu os limites da representação enquanto ideia de organização da comunidade política, um conflito em que, ainda de forma inconsciente e confusa, os indivíduos querem recuperar para si o poder de iniciativa  de que são privados pela inibição que a representação política impõe. As pessoas não se sentem representadas e sentem mesmo que os representantes lhes roubam a capacidade de tomar parte, de participar. Este, a debilidade da representação, é outro dos problemas dos dias de hoje e está intimamente ligado ao da fatalidade referido mais acima. Estará a representação morta, assistimos à despedida dela?

terça-feira, 25 de junho de 2013

Cansado de realidade

Liubov Popova - Komposition (1918)

Sim, o calor é mau, é mesmo uma coisa péssima, mas a realidade ainda consegue ser pior que o calor. A realidade é uma coisa abominável, com péssimo feitio, sempre a resmungar, sempre descontente. Odeio a realidade. Nunca se satisfaz com a atenção que lhe damos por causa da nossa vidinha, de termos de comer, de andar vestidos, de ir aqui e ali, de comprar um livro ou de levar o carro à oficina. Quer mais, despudoradamente mais atenção. Entra-nos pela casa dentro, instiga-nos a olhar para ela, ronrona que nem gata no cio, cabriola diante dos nossos olhos. Uma serigaita. Mal desviamos os olhos, logo a realidade chama por nós, cai-nos em cima, ameaça esmagar-nos. 

Nestes últimos tempos, tenho tido uma dose excessiva de realidade, uma dose de tal maneira grande que estou a ficar enfartado. Tudo o que é interessante cai fora da realidade. Ao ver algo fora da realidade, o meu coração, como se estivesse vivo, começa logo a inclinar-se para aí. A cabra da realidade, porém, implacável e fria, rasga-me a ficção, destrói-me o enredo e, já meia despida, exige que olhe para ela. Ainda tento falar de impotência, mas ela vara-me com os olhos... Ao menos a realidade podia ir de férias para outro lado, para um exoplaneta habitável nos confins da galáxia. Um homem não foi feito para tanta realidade. Estou cansado.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

O último refúgio

Giacomo Balla - Manifestação patriótica (1915)

Dizer que Durão Barroso é o carburante da extrema-direita peca por defeito. Para além de Durão Barroso - em última análise, personagem secundária em todo este enredo -, há muita gente, por essa Europa fora, que está a alimentar o crescimento da extrema-direita. O crescimento da extrema-direita está assente em dois pilares centrais. No primeiro, encontra-se a conversão da direita e da esquerda social-democrata ao liberalismo e o apoio que têm dado à radicalização dos processos de liberalização da economia e à consequente destruição do Estado Providência. No segundo pilar, está a esquerda não social-democrata e a sua impotência em encontrar políticas credíveis que permitam manter uma certa harmonia nacional. Quem olhar com a atenção o desenvolvimento da sociedade francesa percebe que o crescimento do partido de Marine Le Pen se deve à traição de uns e à impotência de outros. Quando tudo falha, o patriotismo é último refúgio dos desesperados e não apenas dos canalhas, como pensava Samuel Johnson. 

domingo, 23 de junho de 2013

Poema 71 - São tempos difíceis, disseste

Alfons Mucha - O abismo (1897-99)

71. São tempos difíceis, disseste

São tempos difíceis, disseste.
A cólera poisou mansa no fundo do coração,
as mãos apertam-se desesperadas e secas,
a cabeça inclinada para a terra,
o sabor a fel a cantar no centro da boca.

Sonhas ainda com dias resplandecentes,
mas o silêncio cobriu o sonho,
e ninguém se recorda do que desejou,
das coisas que um dia foram amadas
ou das promessas com que a vida se enganou.

São tempos difíceis, digo-te eu.
O meu coração já não tem força para odiar,
o corpo mal se equilibra sobre a terra
e tudo aquilo que um dia pensei
foi levado pelo desejo que logo se apagou.

sábado, 22 de junho de 2013

Meditações dialécticas (12) A luta contra a fatalidade

Jan Toorop - Fatality (1893)

Há um fundo obscuro na liberdade que a razão humana, limitada e finita, não consegue apreender. Esse fundo obscuro diz respeito às consequências da liberdade numa comunidade de seres racionais e, ao mesmo tempo, animais. As decisões livres de uma parte desses animais racionais tendem a surgir aos olhos e à experiência dos outros como uma fatalidade, como a mais pura ausência de liberdade. As consequências do livre-arbítrio de alguns são, tendencialmente, a aniquilação do livre-arbítrio e da liberdade dos outros, a transformação da vida em pura fatalidade e a representação do futuro como um destino determinado e inexorável. 

Se tentarmos compreender o que se passa no mundo, da Europa do sul ao Brasil, descortinamos sempre exemplos deste enigma da liberdade. Alguns tentam, insidiosamente, transformar a vida da maioria das pessoas numa fatalidade a que ficarão condenadas sem remissão. Os conflitos sociais que estamos a assistir parecem ter como razão de ser questões de natureza económica e social. Mas isso é apenas a aparência do que está em questão. As pessoas lutam contra o destino, a fatalidade, a eliminação da sua capacidade de poder fazer escolhas livres. Em tudo isto revela-se uma das fragilidade essenciais das sociedades liberais, a sua tendência, em nome da liberdade, de transformar a vida de um número significativo de seres racionais em pura fatalidade. O que está em jogo, nestes tempos conturbados, é a luta contra a fatalidade.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Governação de agitadores



Durante a Segunda Guerra Mundial e nas décadas seguintes, até à Queda do Muro de Berlim, vigorou um pacto interclassista por toda a Europa democrática. Esse pacto pretendia cada comunidade nacional, irmanando-a em objectivos comuns. Esse pacto não punha fim à luta de classes e aos conflitos de interesses, mas mitigava-os de tal forma que se poderia falar, com propriedade, de um interesse nacional que todos sentiam ser o seu.

A governação visava esse interesse nacional partilhado, e as políticas eram desenhadas para encontrar lugares de diálogo que evitassem rupturas. Nem sempre se conseguiu impedir situações de conflito extremado, como aconteceu, por exemplo, em França no Maio de 68, mas o objectivo era esse. A Queda do Muro de Berlim abriu caminho para uma outra forma de fazer política. Os objectivos de alguns actores sociais mudaram. Se as classes médias e populares europeias continuaram fiéis ao velho pacto, as elites económicas mudaram de estratégia. O pacto era um empecilho para os seus interesses. Abria-se-lhes a possibilidade de uma nova era de grande acumulação de capital. Nem hesitaram.

Os governos que tinham uma perspectiva nacional e conciliadora passaram a governar para uma parte da sociedade contra outra. O interesse nacional foi substituído pelo interesse das pequenas elites económicas, e governar tornou-se sinónimo de destruir tudo aquilo que no anterior pacto defendia as classes médias e populares. É aí, por exemplo, que se insere a retórica contra o Estado Providência. Uma das tácticas das novas forma de governar consiste em eleger uma parte da sociedade, que é transformado em inimigo público, que deve ser sacrificada para conjurar o mal. A fama da senhora Thatcher vem daí.

Em Portugal, essa prática foi introduzida por Sócrates e tem sido reforçada por Passos Coelho. A ideia é dividir o todo nacional em partes e lançar umas contra outras, criando bodes expiatórios onde se concentra a raiva social. Pretende-se evitar que as pessoas percebam que estão a ser vítimas daqueles que mandam no governo, ocupá-las com guerrilhas sociais em que as vítimas se digladiam entre si. Estes governos já não são governos nacionais, mas estruturas políticas de carácter marxista: representam os interesses das elites económicas dominantes e agem como seus funcionários. Sempre que necessário, não hesitam em lançar uma guerrilha que estilhaça ainda mais o sentimento de pertença a uma comunidade. Mesmo quando põem a bandeira na lapela, odeiam a pátria e o bem comum. Somos governados por agitadores.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Proprietários da vida

Reuters - Público

O cruzamento de duas notícias sobre o mundo da ciência e dos direitos de propriedade mostram o terreno nebuloso que, devido aos avanços da investigação científica, pisamos, sem um guia moral e jurídico seguro. Há dias, o Supremo Tribunal dos EUA, perante um conflito em torno da patente sobre os genes humanos BRCA1 e BRCA2, veio reconhecer, por unanimidade, que a separação destes genes do material genético que está à sua volta não é um acto de invenção. Sendo assim, os genes não podem ser patenteados. No entanto, os juízes consideraram que há uma diferença entre o ADN natural e o ADN sintético, criado em laboratório. Este pode ser alvo de patentes. 

Passemos para um extraordinário acontecimento científico ocorrido na Universidade de Aveiro. Uma equipa de investigadores conseguiu alterar o código genético de um ser vivo. O Público afirma mesmo que se quebrou uma das regras sagradas da biologia. "Até agora, acreditava-se que o código genético era imutável, ou seja, uma vez fixado, nos primórdios da evolução das espécies, já não poderia ser alterado sem consequências funestas para o organismo afectado". Tanto quanto um leigo pode perceber, e eu percebo pouco, o que se passou foi a criação de um novo ser - neste caso de um fungo - com um outro código genético. Um ser sintético, digamos assim.

Quebrada a tal regra sagrada da biologia, abre-se um novo caminho de criação de seres sintéticos, com os seus criadores, segundo o Supremo dos EUA, a poderem patentear estas suas invenções. Por longe que esteja a passagem, deste tipo de operações, dos fungos para seres mais complexos, o caminho está aberto, como está aberto o caminho para patentear o mecanismo central da vida de espécies sintéticas. 

Duas notas finais. Em primeiro lugar, não sei se a diferenciação jurídica entre ADN natural e ADN sintético é moralmente aceitável. Julgo, na minha ignorância, que ela contém em si potenciais problemas. Em segundo lugar e tendo em conta a dificuldade sentida em decifrar tudo isto, parece-me que a educação sobre questões científicas, nomeadamente ao nível da Biologia, precisa de um grande incremento. Não me refiro, claro, a uma educação que transforme todos em biólogos, mas que forneça os rudimentos para compreender estes fenómenos e ajude os cidadãos a tomar parte na discussão pública que este tipo de coisas, mais tarde ou mais cedo, vai levantar.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Meditações dialécticas (11) O tempo da revolta

Käthe Kollwitz - Aufruhr (Revolt)

A importância das chamadas primaveras árabes, fundamentalmente as da Tunísia e do Egipto, não estará tanto naquilo que elas originaram, mas no facto de elas terem dado início a um novo tempo. Este tempo não é um tempo de revoluções, um tempo onde exista um programa político que dirija os revoltados (melhor do que revoltosos), mas um tempo em que o desespero leva as pessoas para a rua e para o protesto, leva-os sem traço de ideologia. Este tempo da revolta espalhou-se pela Europa (Grécia, Turquia, Europa do sul), esteve presente nos EUA e deflagrou há dias nas grandes cidades do Brasil. Que as revoltas árabes tenham substituído regimes ditatoriais por outros regimes pouco democráticos diz-nos muito da fragilidade destas revoltas. 

No entanto, elas são o sintoma de duas coisas. Por um lado, a pressão das elites sobre as massas está a tornar-se insuportável. Por outro, começa a desenhar-se uma nova experiência de revolta que se alimenta pela visibilidade que os acontecimentos têm hoje em dia. O tempo da revolta ainda é um tempo de happenings, um tempo de coreografias desenhadas nas redes sociais e gravadas nas televisões, um tempo em que a revolta toma uma dimensão estética. Seria, porém, um equívoco pensar que estes happenings, pela sua dimensão estética, são destituídos de qualquer poder transformador. Pelo contrário, eles contêm um potencial que ao mesmo tempo provoca admiração e causa pavor. Trazem em si o sublime. Ora o sublime não é uma categoria social nem política, mas uma categoria de apreciação estética da arte e da natureza. Quem se revolta nas revoltas que assistimos? Podemos dizer que é a própria natureza que se ergue revoltada, que começa a quebrar os diques que têm sido impostos e parece querer anunciar um maremoto. O tempo da revolta é um tempo que anuncia a substituição da política pela física.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Uma humilhação do governo

Henri Rousseau - Paisaje exótico. Lucha entre un gorila y un indio (1910)

Voltemos, ainda uma vez, à questão da greve dos professores. Ao governo, o tiro saiu pela culatra. Isto não significa que os professores alcançaram ou venham a alcançar o que pretendem (o futuro o dirá). Na estratégia montada para transformar os professores em inimigo público, o que daria ao governo a legitimidade de um justiceiro do farwest, nessa estratégia, digo, alguma coisa correu mal. O governo poderia ter adiado os exames para dia 20, tirando todo o peso da greve e deixando os professores numa situação muito desconfortável. O governo, porém, queria mais, queria imitar Sócrates e Lurdes Rodrigues, queria ter um inimigo que fosse mal visto pela população, e cuja humilhação fizesse a glória dos governantes e servisse de exemplo para a plebe que não se conforma com a miséria. 

O governo saiu humilhado da experiência a que se entregou. Há vários sintomas. O primeiro é o desespero delirante dos comentadores amigos do governo. Armam um espantalho, os sindicatos, e zurzem os sindicalistas como se eles tivessem culpa do profundo descontentamento dos professores. A violência dos ataques, o despropósito e o alarido montado mostram que o governo se saiu mal da sua brincadeira. Em segundo lugar, em momento nenhum o governo conseguiu isolar os professores na opinião pública. Apesar de haver pessoas contra os professores, muito mais gente do que seria de esperar está a perceber as razões que os levaram para a greve. Por fim, os potenciais aliados de Crato - directores, pais e alunos - culpam o ministro pelo caos.

Passos Coelho julgou que tinha uma oportunidade para se tornar a senhora Thatcher lusa e de calças. Enganou-se. Isto não significa, repito, que os professores tenham alcançado o que quer que seja. Significa que a estratégica maquiavélica a que o governo se entregou foi humilhada. Esta experiência e a que ocorreu nos tempos de Sócrates mostram que, hoje em dia, somos governados por gente que perdeu o sentido de comunidade. Não querem resolver problemas, querem, através de estratégias sórdidas, encontrar bodes expiatórios que lhes garantam espaço político para as malfeitorias políticas e sociais com que deliram. Um governo humilhado, nos dias que correm, é sempre uma coisa boa para os cidadãos. E o prof. Crato, o glorificado cronista do Expresso, o salvador da educação pátria, entrega-se a tudo isto sem estados de alma?

segunda-feira, 17 de junho de 2013

A greve e o grito

Edvard Munch - O grito (1893)

Não queria escrever aqui sobre a greve. Mas tenho de fazê-lo. Fiz greve? Fiz. Gosto de fazer greve? Não. Por que razão fiz uma coisa que não gosto de fazer? Porque a realidade criada pelos actores governativos a isso me obrigou. Quando um grupo social faz greve reconhece a sua fraqueza. Esse reconhecimento é um momento fundamental para se tornar também actor e entrar no jogo. Os fortes não fazem greves, nem gritam nas ruas. Falam baixo para os ouvidos certos, os quais, por inaudíveis que sejam as palavras dos fortes, as ouvem sempre muito bem. 

Quando cerca de 90% de professores fazem greve, este acto conjunto é um grito. Por que motivo gritam os professores? Se os professores fossem banqueiros não gritavam. Mas como são professores, por explícitas que sejam as suas palavras, os ouvidos tão atentos aos fortes têm uma tendência congénita para a surdez quando se trata de outros sectores. Eu gostava muito de não ter feito greve. Palavra de honra. Gostava muito mais de ter ido jantar com alguma potestade e, em clima ameno e cúmplice, ter-lhe sussurrado meias palavras ao ouvido, enquanto bebia um bom tinto, sabendo que ela se curvava perante a minha sugestão sobre o modo como tratar os professors. Era tudo mais fácil, mais civilizado, e um bom tinto sempre é um bom tinto. Não havendo potestade disponível para jantar comigo, restou-me o grito, a greve. A vida é o que é.

domingo, 16 de junho de 2013

Poema 70 - Eis os dias de azedume, o sombrio tempo

Edward Burne Jones - Noite (1870)

70. Eis os dias de azedume, o sombrio tempo

Eis os dias de azedume, o sombrio tempo
em que se desmorona a vida plácida,
a hora em que o sossego se desfaz,
e tudo se incendeia na praça pública.

Vejo jardins ardidos, devastados
pelos negros corcéis da desrazão.
Vejo ruínas onde antes se erguia,
transfigurada, a casa da manhã.

Noite, noite, terrível e funesta
deusa, deixa dormir o teu império.
Devolve aos mortais a pouca luz

que sustenta o sombrio e duro inverno.
Vai-te, leva contigo os dias azedos.
Que volte pura a luz da madrugada.

sábado, 15 de junho de 2013

A missão da trupe

Jacopo Robusti - La violencia de Tarquinio

Foram para a política quando deviam ter ido para patrões no Bangladesh. Ali não precisariam de saber fazer política - isto é, prevenir, ceder aqui e influenciar ali, ser maquiavéis e discutir... -, só precisavam de distribuir umas lamparinas em caso de reticências. Mas não, foram para a política, a arte do compromisso. (Ferreira Fernandes, Diário de Notícias)

Apesar da crónica de Ferreira Fernandes ser interessante, falha num aspecto essencial. Pensa a política, na tradição democrática e republicana, como arte da prevenção, da cedência, do diálogo. O problema é que isso acabou. Há diálogo quando as partes reconhecem que há interesses diferentes em confronto e que é legítimo dirimir esses interesses segundo regras previamente acordadas. Hoje em dia só há direitos para os mais fortes, só há direitos para os que podem. Os outros, os mais frágeis, quase todos nós, deixaram de ter direitos e deixaram de ter direito a que respeitem os próprios compromissos que com eles foram estabelecidos. Por isso, Passos Coelho e a trupe, como lhe chama Ferreira Fernandes, que nos governa não está enganada no governo. Ela está lá mesmo para transformar Portugal num qualquer Bangladesh. Fazê-lo não a faz sentir mal com a sua consciência, pelo contrário. É a sua missão.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

A greve dos professores

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

A decisão dos professores pela greve nesta altura é uma decisão difícil, mas representa um grito de desespero de um grupo profissional que, desde 2005, tem sido sistematicamente perseguido e aviltado. Os professores, mas também a escola pública e os seus alunos, foram transformados em inimigo, ao qual os governantes (sejam quais forem) patenteiam um ódio especial e uma vontade, nunca saciada, de perseguição. O que está em jogo, neste caso, diz respeito aos professores (horário de trabalho e mobilidade), mas também, e muito, aos interesses dos alunos e da comunidade em geral. 

Desde 2005, a degradação – e não estou a falar dos salários – das condições de exercício da profissão nunca parou. O aumento da actividade burocrática, o aumento do número de alunos por turma, a diminuição de horas atribuídas a certas disciplinas e o aumento dos horários lectivos estão a destruir as condições para que o trabalho de um professor dê frutos. As condições mínimas de uma escola de qualidade razoável já foram destruídas, mas este governo pretende ir muito mais longe. 

O trabalho feito, nos últimos 35 anos, pelos professores portugueses e pela escola pública, tem sido notável. Os níveis de escolarização subiram drasticamente e o desempenho dos alunos portugueses nos estudos comparativos internacionais tem mostrado que o esforço realizado tem tido resultados, tirando Portugal dos últimos lugares. Outro dado importante é o número de alunos que as escolas públicas colocam no ensino superior e que este forma. Têm sido tantos que a economia, com um desempenho muito inferior ao sector da educação, não os consegue absorver. Importante também é o que foi revelado por um estudo da Universidade do Porto: os alunos da escola pública mostram-se mais preparados para o ensino superior que os colegas vindos dos colégios particulares. Deste modo, a escola pública e os professores que nela trabalham têm contribuído decisivamente para a igualdade de oportunidades e para uma sociedade mais justa e equilibrada. Por isso, pelo seu êxito, são odiados e perseguidos. 

Tanta perseguição cansa. Os professores estão exaustos de tanta instabilidade, de tanta mudança sem sentido, de ser maltratados pelos governos. Durante estes dias de greve, muitos professores que participam nela, por esse país fora, estarão na escola a trabalhar gratuitamente com os seus alunos para os exames. Sempre foi assim e, certamente, será assim no futuro. Os professores fazem greve por si, claro, mas também pelos seus alunos e por uma escola pública que continue a servir a comunidade. E é a destruição da escola pública que a actual governação visa.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

O tempo da acrobacia

George Grosz - Acrobatas (1916)

Não é apenas a greve dos professores que gera tanta acrobacia. Trata-se também, e fundamentalmente, de toda a grande manobra, mascarada sob um resgate financeiro, de transferência de muitos milhares de milhões de euros dos bolsos das classes médias e populares para as contas bancárias de algumas famílias, umas mais conhecidas outras mais discretas. A dívida soberana não é a razão dessa transferência. É a ocasião criada - meticulosamente criada - para que essa transferência se dê. Talvez todas as épocas da vida dos homens se assemelhem a esta. Talvez a nossa espécie seja mesmo assim. A verdade, porém, é que vivo nesta época e não noutra. E aquilo que eu vejo nestes dias indigna-me. 

O que me indigna, porém, não é a rapacidade dos poderosos (está-lhe na massa do sangue), mas as acrobacias daqueles que se alugam para, de forma mais ou menos subreptícia, defender essa rapacidade, seja na vida política, seja na comunicação social. Se há alguma coisa que mostra o lado negro da espécie humana são as acrobacias dos jograis de serviço, dessa gente que mente deliberadamente para servir os seus senhores, que não hesita nunca em estar do lado dos fortes contra os fracos. Talvez este tipo de gente sempre tenha existido. Hoje em dia, contudo, não há hora em que os pusilânimes defensores dos fortes não façam acrobacias, seja na política ou na opinião pública, para justificar e legitimar o roubo e a humilhação das classes médias e populares - é disso que se trata - que, com a ajuda da lei, estão a ocorrer. Este é o tempo da acrobacia.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Uma rua de Paris

Maximilien Luce - Una calle de París en Mayo de 1871 (1903-5)

Provavelmente, este quadro de Maximilien Luce é uma memória. Os acontecimentos retratados, a chamada Comuna de Paris, ocorrerem entre 28 de Março e 28 de Maio de 1871, tinha o pintor treze anos. Uma memória forte. Dois acontecimentos conduziram à Comuna de Paris, a derrota francesa na Guerra Franco-Prussiana e o descontentamento dos trabalhadores com a sua situação. Mas deixemos as causas do acontecimento e fixemo-nos nas imagens. São as imagens que melhor nos falam e nos explicam a razão para construir sociedades equilibradas e com amplas classes médias. Querem os dirigentes europeus voltar aos tempos em que as revoltas populares terminavam com mortos espalhados pelas ruas? Dir-se-á que estamos muito longe disso. Será que a Grécia estará assim tão longe? Há 20 anos, quem diria, no meio da esperança de então, que uma onda de profundo descontentamento popular varreria toda a Europa do sul? Se a Europa não mudar de rumo, se não for restabelecido o pacto social-democrata que vigorou até há pouco, preparemo-nos então para os dias de revolta e de terror, que se manifestam já aqui e ali. São imagens destas que os dirigentes europeus querem ver de novo nas ruas das nossas cidades?

terça-feira, 11 de junho de 2013

O tédio da história

Honoré Daumier - A revolta (1860)

Greve dos professores em Portugal, revoltas na Turquia, a história, apesar da eterna mudança a que está sujeita, é um lugar de tédio nunca desmentido. O tédio nasce pela contínua repetição do mesmo esquema, apesar dos figurantes mudarem continuamente. Os poderosos e os destituídos de poder, os que exercem a dominação e aqueles que a sofrem. Quando o laço entre ambos se rompe, nasce a revolta. As revoltas não significam que os destituídos de poder e os que sofrem a dominação queiram tomar o poder. As revoltas nascem sempre de uma sensação de traição. Os professores portugueses sente-se, há muito, traídos pelos ministros da educação. Os turcos que protestam sentem-se traídos pelo governo que elegeram.

As revoltas, as greves, os protestos são sempre o sinal de que o poder não honrou um compromisso, um compromisso inexplícito mas conhecido pelas partes. Quando esse compromisso não escrito é honrado, as greves desaparecem, as revoltas não acontecem, o tumulto não desce às ruas. O poder, porém, nunca aprende. Cegos, os governantes julgam que vão poder submeter pela força aqueles a quem estão a trair. A verdade, porém, como a história não se cansa de mostrar, acabarão por cair, olhados com desprezo pela multidão. Passos Coelho e Nuno Crato já se esqueceram de Sócrates e de Lurdes Rodrigues? Erdogan já terá esquecido o que se passou na Líbia, na Tunísia ou no Egipto? A história é um imenso tédio: a arrogância do poder, a traição dos governantes e a revolta dos governados, dos que sofrem o arbítrio dos poderosos.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Um país moribundo

Jesús de Perceval - Moribundo (1943)

Quando um Presidente da República aponta como apostas para o país, depois do massacre da troika, o património e a agricultura, a única coisa que podemos constatar é que o país está moribundo. O interesse pelo património é uma coisa louvável, certamente. O desenvolvimento da agricultura é importante. Um país não é viável, todavia, a não ser que se aposte numa população miserável, se o seu futuro estiver dependente do património e da agricultura.

O grave não está em Cavaco Silva dizer banalidades com pouco nexo. Estamos habituados. O grave é que esta declaração do Presidente da República é a confissão de uma impotência. Já não há apostas no conhecimento, no valor acrescentado pelo design, na criatividade. A indústria foi entregue ao leste da Europa e aos tigres (ou mesmo gatos) asiáticos, se ela possui pouco valor acrescentado. Se ela exige alta tecnologia, as grandes potências, como a Alemanha, preferem levar os engenheiros portugueses do que abrir mão do seu domínio tecnológico. Resta-nos, o património e o retorno, como o impôs Salazar, aos campos. Um país moribundo.

domingo, 9 de junho de 2013

Uma casa em ruínas

Karl Schmidt-Rottluff - Casa derruida (1930)

Hollande proclamou hoje, no Japão, que a crise na Europa acabou. A princípio julguei que o Presidente francês delirava, que as suas palavras não eram mais do que um exemplo de wishful thinking, sintoma de um desejo que se sente impotente perante a realidade. Depois, tudo se tornou evidente. A crise terminou, de facto, pois o estado de ruína e de empobrecimento tornou-se a norma europeia. Ainda haverá uns ajustamentos a fazer, mas a normalidade foi encontrada em Portugal, em Espanha, na Grécia, por essa Europa do sul fora. Mais um esforço, e toda a Europa estará irmanada em sociedades drasticamente desiguais e miseráveis. A Europa é uma casa em ruínas.

sábado, 8 de junho de 2013

Poema 69 - Em silêncio, o metafísico poisa sobre a terra

Giorgio de Chirico - O grande metafísico (1971)

69. Em silêncio, o metafísico poisa sobre a terra

Em silêncio, o metafísico poisa sobre a terra,
traça uma cruz de sombra no chão
e já saudoso olha o largo horizonte,
a fronteira memoriosa que separa 
céu e mar, o voo dos pássaros ao anoitecer.

Não pertence à grande pátria dos homens.
O tempo não é a casa onde habita,
nem os anos são feitos de dias ou estações.
O longo meditar sobre o mistério
abriu-lhe a grande porta do vazio eterno.

As pálpebras fecham-se pesadas e graves
e o ar da noite fende-lhe as narinas
como uma lepra mecânica inscrita na pele.
Tudo é imóvel e definitivo,
a violeta cansada, a estrela da noite,

a luz do violino num acorde de eternidade.
O grande amante do tempo suspenso,
sonâmbulo desprovido de sonhos e de sono,
poisa os pés sobre a areia da praia
e um clarão de pedra nasce no fundo do mar.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

O mar ou a Europa?


O lançamento do livro Segurança e Defesa Nacional - Um Conceito Estratégico foi ocasião para que ressurgisse uma velha polaridade da nossa política externa. Deveremos dar mais atenção ao europeísmo ou ao atlantismo? A questão não se liga apenas à política externa ou à segurança militar. Durante séculos, provavelmente desde Afonso V, o horizonte político português foi pouco voltado para a Europa. A situação geográfica faz de nós periféricos relativamente à Europa, cujo centro, apesar das conquistas tecnológicas e do progresso dos transportes, está, espacial e culturalmente, distante de Portugal. Mais do que os Pirenéus, a árida planície manchega constituiu e constitui um obstáculo psicológico à nossa plena integração na Europa. 

Ramalho Eanes afirmou que foi um erro apostar tudo na Europa, fazer dela o nosso projecto nacional. Luís Fontoura e o almirante Vieira de Matias apontaram para o mar como o grande desígnio nacional. Independentemente dos argumentos que europeístas e atlantistas possam apresentar, a discussão pode ter um efeito absolutamente negativo, se funcionar como factor de ocultação daquilo que é verdadeiramente problemático. Independentemente da orientação para o mar ou para a Europa, o essencial passa-se dentro de portas. 

Portugal enfrenta quatro problemas gravíssimos. Em primeiro lugar, como tornar a nossa sociedade mais dinâmica, com mais iniciativa e mais competitiva? Em segundo lugar, como reconstruir o consenso nacional que o actual governo está a destruir, para que todos se sintam parte integrante de Portugal e queiram participar de boa-fé na vida social e comunitária? Em terceiro lugar, como reformar o sistema político para evitar o caudal de abusos, delírios e megalomanias que ajudaram a colocar Portugal na triste situação em que está? Por fim, mas talvez o mais importante, como enfrentar a dramática crise demográfica? Estes quatro problemas deveriam ocupar o lugar cimeiro nos debates da esfera pública. Nenhum deles, salvo numa ou noutra intervenção, parece preocupar os comentadores e os agentes políticos. Mesmo a questão da competitividade só é encarada como motivo para destruir os consensos sociais e fragilizar, ainda mais, a parte fragilizada, cada vez mais volumosa, da sociedade portuguesa. 

Julgar que o desatino em que vivemos se deve a uma opção estratégica errada é tapar o Sol com uma peneira. Se não pensarmos e agirmos com determinação naquelas quatro áreas, bem nos podemos voltar para o mar, ou para a Europa, ou para o Céu, ou para o Inferno. O resultado será sempre um inominável infortúnio e uma crescente miséria.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Culpas e punições

André Masson - Alce devorado por cães (1945)

Não faço ideia o que terá motivado o FMI a admitir que errou no caso da Grécia. Mas compreendo perfeitamente que a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu não acompanhem o FMI no mea culpa. Se não acompanham o FMI não é por não quererem assumir os seus erros. Não acompanham o FMI porque, na verdade e na sua óptica, não erraram, antes pelo contrário. Acertaram, pois o objectivo seria mesmo dar uma lição aos gregos, destruir um país em dificuldades e pôr de joelhos uma população. 

Sejamos claros. Quando se querer limpar uma zona para que o jogo dos mercados se dê sem excesso de regras há várias maneiras de actuar. Se o lugar é pouco civilizado, fomenta-se uma primavera qualquer, manda-se o exército. Isso nas zonas mais inóspitas e menos dadas à civilidade. Em lugares mais civilizados, destrói-se o país através das finanças, desfazem-se as estruturas sociais, submete-se a população sob o comando das troikas. Que o FMI tenha agora vacilado é um mistério, mas que as gentes comandadas por Draghi e Barroso se mostrem avessas a assumir culpas mostra bem a natureza punitiva do ataque à Grécia, bem como a origem europeia da punição.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Responsabilização, a palavra desconhecida

William Turner - Sunrise With Sea Monsters (1845)

Há um momento em que percebemos que um povo perdeu por completo a dignidade e o respeito por si mesmo. A desfaçatez com que certos grupos e indivíduos, para justificar os seus fins, agem e promovem ruído é o sintoma de uma doença que nos atinge e debilita ainda mais. Estava a ver as notícias da noite, julgo que na SIC, quando deparo com uma entrevista, ou parte de uma entrevista, a alguém que não consegui reter o nome. A personagem é americana e foi responsável pela reforma do Estado durante a primeira presidência de Bill Clinton.

Não sei quem chamou o indivíduo em causa, mas ele parece trazer uma encomenda clara. Falou, a propósito da reforma do Estado, da necessidade de despedir professores (por certo, os grandes responsáveis pelo mau desempenho da economia, pela incompetência dos empresários, pela corrupção dos políticos, pelo compadrio reinante, por mandarem construir três auto-estradas para ligar Lisboa ao Porto, pela megalomania dos estádio de futebol, etc., etc.). Daqui derivou para impossibilidade que o Estado português tem de despedir os maus professores. 

Embalado e entusiasmado só parou quando disse - juro que ouvi - que nós - não ficou claro se eram os professores ou os portugueses em geral, mas aposto que eram os professores - nem conhecemos a palavra responsabilização (sic). Quem encomendou tal discurso? Como é possível que venha um tipo qualquer, mandado vir dos EUA, à televisão portuguesa dizer uma coisa destas? Já percebemos que vale tudo, mas tudo mesmo. Os professores que se preparem, o mar onde navegam está cheio de monstros.

terça-feira, 4 de junho de 2013

Meditações dialécticas (10) - A suspensão do movimento

Rudolf Schlichter - O mundo inanimado (1926)

Um dos traços da denominada pintura metafísica é a suspensão do movimento. Os próprios objectos físicos surgem idealizados como se fossem, na verdade, a perfeita imagem das ideias platónicas (eternamente idênticas a si mesmas, sem movimento nem transformação). Não se trata apenas de um efeito pictórico, uma estratégia de diferenciação de um grupo de pintores em competição com os outros grupos da pintura vanguardista ocidental. Trata-se da expressão de um anseio profundo da alma humana. Suspender o movimento como símbolo da suspensão do tempo e da sua passagem. 

As sociedades modernas são marcadas pela mobilização, pela ânsia de futuro, pela velocidade galopante do movimento. É esta aceleração, à qual é concomitante uma aceleração do tempo, que é problemática para o homem tradicional, pré-moderno, onde uma concepção cíclica de tempo - marcado pelo devir idêntico das estações ao longo dos anos - tinha a função de criar um obstáculo à sua passagem. Se a arte futurista representa a experiência da velocidade e exprime o ideal do móbil, a pintura metafísica é uma reacção moderna a essa mesma mobilidade, ao representar, como no caso do quadro de Rudolf Schlichter, diversos móbeis (cavalo, pessoas, camioneta) absolutamente estáticos, como se tivessem sido congelados no tempo e no espaço. 

Este exemplo permite estabelecer uma analogia com a vida social contemporânea. O ardor da mobilidade, a injunção contínua a uma maior velocidade, a necessidade de um progresso ininterrupto no desenvolvimento dos artefactos e dispositivos técnicos acorda em cada um de nós a nostalgia da imobilidade, a necessidade de fazer parar o tempo, o sonho de suspender o movimento e, desse ponto, antecipar - ou sonhar - a eternidade. A cinemática que anima os corpos acaba sempre por despertar na alma o desejo de uma estática, onde o equilíbrio das partes gera uma aceleração nula.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

A Turquia e a primavera

Karel Masek - A primavera (1903)

De certa maneira, o primeiro-ministo turco, Recep Erdogan, tem razão ao afirmar que não há primavera turca. O que se passa é que os manifestantes não querem que a Turquia se torne numa espécie de Irão e entre num tenebroso inverno. A primavera turca foi há muito. O problema está no governo pró-islamização e nas recentes medidas políticas que visam pôr em causa a natureza laica da sociedade. Que haja esta força cívica para defender uma sociedade laica - e uma sociedade laica não é irreligiosa mas separa a política da religião - é um bom sintoma neste pesado inverno do nosso descontentamento. Nas ruas, ao defender aquilo que foi o motor da Europa moderna, os cidadão turcos estão a mostrar que são mais europeus do que muitos europeus.

domingo, 2 de junho de 2013

Poema 68 - Traz o trovador a trova no silêncio do olhar

Giorgio de Chirico - O trovador (1950)

68. Traz o trovador a trova no silêncio do olhar

Traz o trovador a trova no silêncio do olhar,
a fina linha de seda sob a escuridão,
o esmalte onde passado e futuro sucumbem,
a linha mercurial do presente.

Canta, velho aedo, a palavra feita presença
e dissolve com as tuas rimas a música
que ao passar as horas compõem
na fronteira imponderável de uma canção.

Grande coleccionador de silêncios azuis,
deixa que as tuas narinas respirem
todo o verde que floresce na voz marítima
de um barco azedo sobre o alto mar.

Velho usurpador coberto de poeira,
difíceis são os teus dias sobre a terra.
A servidão de atar os nós do tempo
em palavras ociosas presas na esquina

onde, em sobressalto, passado e futuro
se abraçam, campânulas de fogo,
lábios de carne em ebulição,
a dança do escorpião cansado de rosas.

Esta desordem sem ordem que te habita,
o não que cresce em cada palavra,
o sangue vermelho tão tinto de sangue -
como podes trazer o mundo aos ombros?

sábado, 1 de junho de 2013

Nostalgia de uma pátria destruída

René Magritte - Nostalgia da pátria (1940)

Fui a uma grande superfície e encontro uma antiga vizinha, de um prédio de onde me mudei há relativamente pouco tempo, cumprimentos habituais, conversa de ocasião, incluindo a malfada crise. De repente, diz que o marido teve de emigrar, mas também o vizinho de baixo. De um momento para outro, fico a saber que pelo menos três pessoas daquele prédio tiveram de ir para a América Latina. Para não falar em quem faliu e viu o esforço de uma vida ser levado com a crise do subprime americano e a da dívida soberana na Europa. Gente sem formação? Gente nova? Não. Formação superior, mais de 50 anos, classe média, gente trabalhadora e com iniciativa, com uma vida boa e equilibrada. De um momento para o outro, tudo destruído.

Hoje houve manifestações contra a troika. Pelo que vi na televisão, houve pouca adesão. Talvez o governo veja nisto um sinal positivo. Mas é o pior dos sintomas. Significa apenas que as pessoas desistiram de Portugal, desistiram das suas vidas. Algumas, as mais decididas ou mais desesperadas, esperam apenas a hora para se irem embora. As outras, nem isso. As outras esperam que isto acabe, que acabe depressa. E, quando pensam e imploram para que tudo isto acabe depressa, não presumem que se volte a um ponto do passado mais feliz e que se restaure o dispositivo social a partir desse ponto, recuperando o sistema tal como ele se encontrava. Significa uma outra coisa muito mais terrível. Pensam: a morte que venha depressa. 

Aquilo que esta gente que nos governa - que, apesar de ter sido eleita na base da mentira, acha que possui a legitimidade intocada, mesmo que o seu desempenho seja completamente medíocre - está a fazer é destruir não apenas as estruturas da sociedade civil e do Estado mas a esperança, a vontade de viver aqui, o espírito de iniciativa. Quando se forem embora, Portugal será um país muito mais pobre, muito mais impotente, muito menos livre e, muito curiosamente, muito menos liberal. Olhamos para quem nos governa, e uma imensa nostalgia abate-se sobre nós, a nostalgia de uma pátria destruída pela malevolência ideológica e pela ignorância atrevida.