Zena Robinson - O som das folhas que caem (1997)
Timbórica,
morfia, ó persefessa,
meláina, andrófona, repitimbídia,
ó basilissa, ó scótia, masturlídia,
amata cíprea, calipígea, tressa
de jardinatas nigras, pasifessa,
luni-rosácea lambidando erídia,
erínea, erítia, erótia, erânia, egídia,
eurínoma, ambológera, donlessa.
Áres, Hefáistos, Adonísio, tutos
alipigmaios, atilícios, futos
da lívia damitada, organissanta,
agonimais se esforem morituros,
necrotentavos de escancárias duros,
tantisqua abradimembra a teia canta.
(Jorge de Sena, Amátia)
Antes de se entrar na questão da destruição do sentido, é necessário atentar nos quatro sonetos - em especial em "Amátia" - e, independentemente das intenções do autor, perceber o que se passa. Mesmo se "Amátia" é composto pelos epítetos gregos de Afrodite, como sublinha
Sena, não deixa, para o leitor comum, de fazer parte de um conjunto de sonetos onde as palavras, se é que estamos perante palavras, são invenções do poeta, são significantes sem significados. Sena conduz-nos à essência da poesia, à pura música. Os sonetos são compostos por versos decassilábicos - ora heróicos, ora sáficos - e usam a rima. É este jogo rítmico que faz o
encantamento destes poemas. No seu sentido mais fundamental, a poesia é apenas música, a música produzida pela voz humana. Antes de ser sentido, a voz humana é som, ritmo, harmonia, desarmonia, consonância, dissonância.
Se a poesia é som, música, então ela é mais que uma representação de um complexo de imagens, como pretende Jorge de Sena. A música não é a representação de nada, mas a pura presença do ritmo e da harmonia. O que torna estes poemas de Sena extraordinários é que eles são música em estado puro, a emanação da voz do próprio ser, como haveria de dizer o Nietzsche da Origem da Tragédia. É essa musicalidade da voz humana que poderá gerar nos auditores diferentes e vários complexos de imagens, mas aqui já estamos no momento em que o som se desvanece no sentido, através da mediação das imagens. Contudo, esse som presente na voz humana que diz aqueles ou outros poemas é independente das imagens que se geram em quem escuta. Esse som é a presença do Verbo, entendido este como pura vida.
Destruir a natureza semântica da linguagem como tarefa da poesia faz todo o sentido. Mas Jorge de Sena não radicaliza o suficiente a sua posição, pois admite ainda a composição de "um sentido global, em que o gesto imaginado valha mais que a sua mesma designação". Não se trata, quando encaramos a poesia enquanto pura música, de substituir um discurso que nos dá sentidos particulares por outro que transportaria um sentido global. Trata-se de abandonar o território do sentido, tanto do logos apofântico como do logos total, para penetrar no território do Verbo, nesse lugar sem sentido, nesse espaço onde não penetra a luz de qualquer semântica nem de qualquer lógica, mesmo dialéctica, mas que é a condição de todas elas. Estes sonetos a Afrodite Anadiómena (a deusa do amor que vem das águas) transportam-nos, decididamente, para lá. Mas que fazer com o sentido que tantos poemas - a generalidade daqueles que Jorge de Sena escreveu - transportam através da musicalidade dos versos? Isso fica para outra hora.