sábado, 31 de março de 2012

A síndrome do final d'Os Maias


A propósito deste post da Ivone e deste da minha autoria, retomo a questão da vida falhada. No final d'Os Maias, João da Ega diz para Carlos da Maia:

- Falhámos a vida, menino!

Aquilo que no post anterior discuti foi se, na vida efectiva, faz sentido dizer que alguém falhou na vida. Não é isso que me interessa aqui. Queria examinar a ideia de uma vida falhada de uma outra perspectiva. Como é que é possível elaborar tal proposição?

Uma vida só pode ser sentida como falhada se ela for uma vida avaliada ou, melhor, auto-avaliada. É no quadro geral da avaliação que pode emergir a ideia de uma vida consumada ou falhada. Na cultura ocidental, isso tem um topos preciso: Sócrates. Duas ideias que parecem ser centrais no seu pensamento fazem luz sobre esta questão. A primeira foi-lhe dada pelo oráculo de Delfos, o "conhece-te a ti mesmo". A segunda é o dito "uma vida que não é examinada não merece ser vivida". Estas duas ideias remetem para uma des-coincidência consigo mesmo. Por um lado, eu posso tomar-me como sujeito que deve conhecer e objecto que, sendo desconhecido, deve ser conhecido pelo sujeito. Esta ideia introduz uma fractura entre si e si. É no espaço fracturado que eu vou poder erguer um padrão que me permite a auto-avaliação. A segunda frase é mais terrível. Uma vida que não seja avaliada (examinada), isto é, uma vida que não tenha sido fracturada e que, por isso mesmo, coincida espontaneamente consigo mesmo, não merece ser vivida. O que Sócrates faz é fracturar o ser do homem, encontrar um espaço para construir um padrão (uma medida) de avaliação, e remata negando o valor de toda a vida que não se avalie a si mesma, segundo esse padrão. A monomania da avaliação começou aqui (coisas como a avaliação de desempenho nos locais de trabalho são fruto desta decisão de Sócrates). 

Muito diferente é a posição de um homem como Protágoras, o sofista de Abdera. Ao proclamar que o homem é a medida de todas as coisas, ele mantém a unidade originária e natural de cada homem, mantém cada um como a sua própria medida. Neste sentido, não pode haver des-coincidência de si consigo mesmo. Como tal, aquilo que cada um realiza na vida é a expressão de si, a autêntica expressão de si. Não há lugar para a dicotomia vida sucedida/vida falhada. Esta dicotomia deve-se à fractura introduzida por Sócrates. É ela que permite pensar um padrão ou uma medida estranha ao nosso próprio ser e que será a bitola pela qual avaliaremos a nossa existência. 

Não é a questão filosófica, porém, que quero pensar, mas a  romanesca. O "Falhámos a vida, menino!" é a constatação, por parte de Eça de Queirós, da efectiva natureza de uma actividade artística a que damos o nome de romance moderno. Não é que todos os romances sejam histórias protagonizadas por aqueles que falham a vida. Não é obrigatório, mas uma quantidade incalculável de romances tratam desse assunto. O que a frase de João da Ega sublinha é que sem uma vida examinada o romance não é possível. Quando Nietzsche chama a atenção para o facto do romance moderno ser um prolongamento dos diálogos platónicos, é sobre isto que ele pensa. O que distingue a vida examinada presente na filosofia e a presente no romance é apenas a faculdade que constrói o padrão de medida. Na filosofia, e por maioria de razões na filosofia socrático-platónica, é a razão que produz o padrão que servirá para examinar a vida. No romance, os padrões são construídos pela imaginação. O padrão construído pela imaginação, devido à plasticidade e maleabilidade desta, pode parecer menos universal e abstracto. No entanto, isso é um equívoco. O padrão é sempre uma abstracção, mesmo que ele seja composto pelos nossos sonhos de juventude. Eça de Queirós tem a plena consciência disso e como isso se liga à natureza da arte romanesca. Que resposta dá Carlos da Maia às palavras de João da Ega?

- Creio que sim... Mas todo o mundo mais ou menos falha. Isto é, falha-se sempre na realidade aquela vida que se planeou com a imaginação.

O romance é possível porque existe um hiato entre o padrão imaginário erguido ou transportado pelas personagens e a concretização que lhe dão durante o decurso da intriga romanesca. Esse hiato é o prolongamento da fractura do si (self) introduzida por Sócrates. A ideia de uma vida falhada é uma construção filosófico-artística, fundada no artifício socrático da fractura do si (self) e da des-coincidência de si consigo mesmo. Se olharmos para outras tradições, como por exemplo o Budismo, seja na variante do Tantra como na do Zen, seja o Taoísmo, a grande questão é de abandonar essa des-coincidência. A fractura de si consigo é uma ilusão. Tudo o que decorre dessa fractura, como a nossa monomania da avaliação, tem o carácter ilusório. A fractura, a des-coincidência de si consigo mesmo, a avaliação são formas defensivas perante o puro acontecer da vida. De uma forma paradoxal, poder-se-ia afirmar que erguer um padrão para avaliar a vida é falhar a própria vida, ausentar-se dela, des-coincidir com ela. Talvez não exista outra solução, pelo menos para os ocidentais, do que esse falhanço universal, sendo a filosofia e a arte do romance cartografias das nossas falhas tectónicas. O que permitiria escrever o seguinte: toda a filosofia, mesmo aquela eivada de optimismo, e toda a narrativa romanesca são um exercício do mais fundo cepticismo.

sexta-feira, 30 de março de 2012

O cavalo do espanhol


A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

As notícias que correm sobre os possíveis aumentos trimestrais de electricidade em Portugal explicam amplamente a razão por que os portugueses são avessos ao liberalismo. Aquilo que diz a doutrina liberal – a liberalização e a concorrência conduzem à diminuição dos preços – sofre, no nosso país, de uma excepção irremediável. Sempre que um determinado serviço, ainda nas mãos do Estado, vai ser privatizado e o mercado liberalizado, a primeira coisa que pensamos é que vamos pagar mais por piores serviços.

Na prática, em muitos dos sectores liberalizados não há efectiva concorrência. Por vezes, apesar de existir mercado livre e um conjunto suficiente de operadores, o que acontece é que os preços são tão semelhantes que a atitude mais racional para escolher o prestador de serviços não é estudar a relação serviços prestados/preço praticado, mas fazer rifas com o nome das empresas e escolher aquela que nos sair em sorte.

No centro da Europa, a liberalização de certos sectores faz sentido, pois existe verdadeira concorrência num mercado com dimensão suficiente para essa concorrência. Em Portugal, a privatização e a liberalização serve apenas para criar uma espécie de monopólio, mais ou menos disfarçado, que suga os indígenas e distribui, a esses verdadeiros empresários sem risco, uma renda escandalosa. A única coisa que parece estar sujeita às leis do mercado, no nosso país, é a mão-de-obra. A concorrência é tanta, o desemprego é tal, que o trabalho está em contínua desvalorização.

A lógica da economia portuguesa é deveras interessante. Tudo está organizado de forma a que as pessoas ganhem cada vez menos e paguem cada vez mais pelos serviços essenciais à sua existência. Neste momento, as elites económicas e políticas da pátria estão empenhadíssimas a tratar a população como o espanhol tratou o cavalo. Há que emagrecer. Emagrecer significa ganhar cada vez menos e pagar cada vez mais.

Segundo consta, as coisas correm bem. Os portugueses não protestam pelo emagrecimento a que estão a ser submetidos. Colaboram e, vaidosos, desejam ardentemente fazer dieta. Sacrificam-se para estar na linha e permitir aos nossos pobres empresários, aqueles que são avessos e inimigos do risco, lucros fabulosos para poderem ir, os pobres, ao ginásio e também eles manterem a linha. Quando os portugueses tiverem aprendido a não comer, as nossas elites rejubilarão. Não sei se alguém já pensou no resultado da aplicação da história do cavalo do espanhol à economia portuguesa.

Do falhar da vida


Este melancólico post da Ivone, ela que me perdoe, estriba num equívoco. Não há qualquer evidência axiomática que a vida seja uma coisa onde se possa falhar ou ter sucesso, para falar ao gosto do espírito do tempo. Não sendo um axioma, poder-se-ia estar perante uma tese. Mas não se vê como justificar a tese, tal como ela decorre da citação d'Os Maias ou na extensão que a Ivone faz a si mesma. A coisa é muito pior do que se possa imaginar. A vida é algo que não se pode falhar nem deixar de falhar. Ela apenas acontece. Olhamos para nós e dizemos: Falhaste a vida, menino. Mas a vida ri-se e continua a acontecer imperturbável e indiferente à nossa monomania avaliativa. Se a melancolia tem um lugar na vida, esse não se deve ao facto de a falharmos, mas à pura impossibilidade de a falharmos ou de nela ter sucesso. Ela acontece, simplesmente. Pior, ela acontece-nos e é sempre mais forte do que aquilo que somos, todos e cada um, capazes de suportar. 

quinta-feira, 29 de março de 2012

Poema 33 - O sol, negro símbolo do castigo


O sol, negro símbolo do castigo,
Sintoma e prova da expulsão do paraíso.
As casas arfam na madrugada,
E as ruas exalam alcatrão derretido.

Sonho com montanhas e água, neve fria.
Sonho com um tempo transfigurado.
Vejo andores e santos pela praça,
Uma dança tribal na paisagem cansada.

Ó deuses solitários tende piedade.
Uma canção, no horizonte longínquo,
Um sonho, prece na forja do tempo.

A primavera regressou. E vós deuses
Dizei-me: onde está o vosso poder,
Onde a água que o inverno roubou?

quarta-feira, 28 de março de 2012

Herta Müller, Hoje preferia não me ter encontrado


Se se disser que o romance Hoje preferia não me ter encontrado, de Herta Müller, é um retrato da Roménia comunista sob a dominação de Ceuasescu, diz-se a verdade e, no entanto, falha-se o essencial. Não é um romance de denúncia política mas a revelação de um modus vivendi, como acontece nos regimes totalitários, em que a política se imiscui em todos os aspectos da vida privada. Publicado pela primeira vez em 1997, numa época onde, no Ocidente, o domínio público estava já sob a ameaça dos interesses e pontos de vista meramente privados (a célebre dissolução, que ainda não parou, da esfera pública), a obra de Herta Müller reenvia para uma experiência totalmente diferente, de natureza orwelliana: o Estado interfere nos mais ínfimos pormenores da intimidade.

Não há obra romanesca que não seja um diálogo com o cânone literário. Este romance não foge à regra. A anónima protagonista e narradora é intimada, mais uma vez, para se apresentar na sede da polícia política do regime. O romance é composto por duas narrativas paralelas que se encontram não no infinito, mas no próprio acto de narrar (talvez a narrativa seja o infinito mais próprio do homem). Narra-se a viagem de eléctrico de casa à sede da Securitate e, ao mesmo tempo, é narrado o fluxo de consciência da própria narradora, onde flui a sua vida passada e presente, a vida dos que lhe estiveram próximos, o retrato do país. Se a intimação e as contínuas apresentações na polícia política (o motivo liga-se ao envio ao acaso de bilhetes, onde se oferecia em casamento, nos bolsos de calças exportadas para Itália) remetem para o arquétipo do Processo de Franz Kafka, já a viagem - ou a dupla viagem, a de eléctrico e a memorial - tem o seu paradigma na Odisseia, de Homero, a viagem de retorno de Ulisses à pátria.

A viagem de eléctrico é, já por si, uma alegoria da vida na Roménia, alegoria fundada no arbítrio do guarda-freio, na forma despótica como gere o eléctrico, como dispõe da viagem dos passageiros. Mas essa viagem, com o seu equívoco final que conduz a uma subtil revelação que ameaça enlouquecer a protagonista, é o suporte para uma outra no próprio fluxo da consciência. Vale a pena convocar para a leitura a relação do tempo com a consciência, segundo Santo Agostinho. Para este existe um triplo presente. O presente do passado, a memória, o presente do presente, a visão, e o presente do futuro, a expectativa. A viagem de eléctrico entre casa e o edifício da polícia política é o presente do presente, a visão in loco do que ocorre, a presença imediata à consciência de um conjunto de pequenas peripécias que atestam a natureza distópica da própria realidade social. A substância da narrativa, contudo, está ligada ao presente do passado. Ela é uma presentificação desse passado pelo exercício da memória. Através de um sem número de analepses, recordações e de histórias laterais, a memória convoca a vida da protagonista e da própria sociedade romena. Ao torná-la presente, a memória, através da narrativa, oferece uma intuição quase visual da natureza sórdida da vida na Roménia comunista. Sordidez proveniente do imiscuir do Estado na vida privada, mas também sordidez resultante da corrupção do carácter das pessoas trazida pela a acção deletéria do Estado totalitário.

A identidade é uma construção que vamos aprendendo a estabilizar. A estabilidade provém da confiança com que nos relacionamos com a envolvente social. Se ela permanece continuamente equívoca e ameaçadora, não há quem seja capaz de construir uma persona sólida. O facto da protagonista/narradora não apresentar nome é já um indício de uma perturbação da identidade. O título do romance introduz uma maior equivocidade: Hoje preferia não me ter encontrado (Heuter wär ich mir lieber nicht begegnet). O título resume as duas viagens, a do eléctrico e a memorial, como um encontro consigo mesma. Parece estarmos perante a solidificação de uma identidade, a afirmação de uma subjectividade, a da narradora/protagonista, plenamente definida e assumida. No entanto, a referência negativa (preferia não...) ao encontro consigo mesma desfaz essa conquista de uma identidade.

Se Ulisses no fim da viagem encontra os braços de Penélope, se Joseph K, apesar de não saber de que era acusado, foi executado, o que deu uma razão teleológica ao seu processo (os processos não são instaurados porque se fez qualquer coisa que mereça uma pena, mas porque uma pena no fim do processo o justifica a posteriori), a protagonista/narradora anónima não ganha um nome no fim da sua viagem. Pelo contrário, o que o acaso da viagem lhe traz é uma desconcertante revelação, tão subtilmente exposta no texto que muitos leitores não dão por ela, sobre a pessoa em quem ela mais confia (revelação que surge como suspeita da mais crua intervenção do Estado na intimidade). O livro acaba com a frase: "Ah, ah, enlouquecer, não." A sentença final remete-nos para o terceiro presente de Santo Agostinho, o presente do futuro. A única expectativa que se abre a alguém, num regime totalitário onde a acção do Estado tudo controla e tudo corrói, é a de não perder a razão.  Não se trata já de solidificar uma subjectividade, de moldar uma identidade. Trata-se apenas de não enlouquecer. Imaginar, porém, que os regimes totalitários são os únicos que conduzem os homens a tal situação é enganarmo-nos sobre a natureza da literatura. Um regime totalitário num romance ainda é uma metáfora (ou uma alegoria, que não passa de um conjunto de metáforas) que deve ser lida enquanto metáfora, no desconcerto lógico que toda a verdadeira metáfora introduz.

Divida-se o processo metafórico em dois momentos. No primeiro, temos a metáfora expressa, neste caso "regime totalitário". Dar-lhe-emos o nome de metaforizante. No segundo, aquilo que foi substituído pelo metaforizante, o metaforizado. O metaforizado não é nada de definido, não é um termo próprio e adequado, mas um espaço vazio que o metaforizante veio impropriamente ocupar, estabelecendo-se como metáfora, conferindo uma significação inesperada e estranha ao discurso. Se o "regime totalitário" do texto é também uma metáfora, cabe ao leitor preencher o lugar vazio, o metaforizado, onde o metaforizante "regime totalitário" se veio instalar enquanto metáfora. Dito de outro modo: o que é que esta metáfora do "regime totalitário" dá a ver das nossas vidas que não decorrem, segundo a classificação habitual dos regimes políticos, em nenhum regime totalitário? Será isto pertinente? Se o livro foi publicado em 1997 na Alemanha, numa editora alemã, escrito em alemão, podemos suspeitar que a obra, ao tratar da vida na Roménia, esteja a meditar sobre a vida dos homens em geral, nomeadamente nos países ocidentais, talvez mesmo em qualquer lugar.

Herta Müller (2011). Hoje preferia não me ter encontrado. Alfragide: D. Quixote. Tradução do original alemão de Aires Graça.

terça-feira, 27 de março de 2012

A privatização do Big Brother

Penitenciária americana construída segundo o modelo do panóptico de Bentham

Zygmunt Bauman, no seu Liquid Modernity, lança uma censura feroz à Teoria Crítica da segunda escola de Frankfurt. A perspectiva de Bauman assenta em dois postulados. O primeiro diz-nos que o mundo ao qual se referia a Teoria Crítica acabou. A ameaça do Estado interferir de uma forma que vai do paternalismo até ao Big Brother pertence a um passado que foi descrito, ao nível romanesco, por Orwell, Huxley ou Koestler, mas que perdeu efectividade e actualidade. O segundo postulado de Bauman, complementar do primeiro, refere que na modernidade líquida o que está em jogo é a dissolução dos laços entre a elite e o homem comum. Essa dissolução acarretaria para cada um a responsabilidade por si mesmo como contraponto de uma liberdade a que, utilizando a expressão de Sartre, se está condenado. O problema não seria o ataque à liberdade dos indivíduos, questão que preocupava a Teoria Crítica, mas a dificuldade que, numa sociedade de consumo, a grande maioria dos indivíduos sente, pois os laços sociais foram desfeitos, para dar um conteúdo significante à sua liberdade.

Notícias como esta mostram uma terceira possibilidade entre o tradicional Big Brother, de natureza política, e o insustentável peso de uma liberdade individual desligada das teias tradicionais, agora liquefeitas, do relacionamento social. Se há empresas de recrutamento de pessoas que pedem o acesso ao perfil do Facebook dos candidatos, então estamos perante um outro fenómeno. A análise de Bauman tem sentido, mas é limitada. Essa liberdade insustentável que coage, hoje em dia, os indivíduos tem uma contrapartida: a privatização do Big Brother. Os mecanismo de vigilância e controlo políticos não foram substituídos apenas pela condenação dos indivíduos à vagabundagem e, em certos casos, à circunscrição a um gueto. A vigilância tornou-se privada e a intromissão na vida dos indivíduos não é agora um assunto de interesse público, mas de múltiplos interesses privados.

As empresas sempre gostaram de olhar para a vida de quem recrutam. A entrevista é um mecanismo de intromissão na esfera privada, um jogo hermenêutico onde se tenta decifrar se o candidato é próprio ou impróprio para o que se pretende. Mas como em todos os jogos o resultado nunca está seguro. O entrevistador pode perder. O acesso das empresas às redes sociais (por que não exigir acesso ao email ou às cartas que se escreveram a terceiros?) seria uma forma de surpreender a natureza do candidato, olhar para ele sem a máscara que apresenta na entrevista. Vê-lo na sua nudez e na sua intimidade. A pós-modernidade não será tanto uma época em que a modernidade se liquefaz, mas o lugar onde começa a consumar o seu destino originário: a captura do indivíduo pelo indivíduo, da intimidade pessoal pelo interesse privado. Isso exige a privatização da vigilância e dos mecanismos de observação, a privatização do Big Brother

Não se trata, nesta perspectiva, de salvar a Teoria Crítica e a Escola de Frankfurt, mas de voltar a crítica contra ela mesmo. No caso em apreço, o entrevistador ou o recrutador de mão-de-obra (intelectual que ela seja, não deixa de ser mão-de-obra) é uma figura que emana da própria crítica moderna. O que deve ser questionado é a própria essência da modernidade. E não como estratégia para retorno à Idade Média, obviamente.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Os portugueses e o Estado


Um dos enigmas que perturba aquelas que pensam sobre Portugal é o da persistência da questão identitária. Como é possível que um país com nove séculos de existência histórica continue a interrogar-se sobre a sua identidade? Se deslocarmos o olhar da questão da identidade para questões que muito nos preocupam, a da corrupção e do nepotismo, talvez encontremos uma solução para o enigma. O sociólogo alemão Norbert Elias chamou a atenção, em La société des individus, para o facto  da corrupção não ser uma questão racial, como muitas vezes surge no imaginário popular ou mesmo em certos discursos eruditos, mas a tradução do afastamento entre a organização do Estado e o nível onde se estabelece a identidade do nós.

O problema da identidade que assombra os portugueses - e os pensadores da identidade nacional - é o sintoma de uma outra coisa, o sintoma da ausência de um efectivo nós estadual. Para os portugueses o Estado é sempre o eles, ocupado por eles, algo que nos é estranho e, por isso, exterior. Mesmo que não se coíbam a ocupá-lo e de trabalhar nele, o Estado é sentido não como a emanação da comunidade portuguesa mas como um corpo estranho que temos de suportar e, se for possível, sugar até onde for permitido. O nosso nós é o das famílias, daí o problema da corrupção e do nepotismo. 

Isto revela uma outra coisa: a ambivalência da natureza do Estado em Portugal. Por um lado, ele é sentido na força da sua estranheza. Um Estado forte, quase sempre autoritário, uma excrescência tenebrosa no corpo da comunidade. Por outro lado, um Estado frágil sempre vítima da esperteza daqueles que lhe estão submetidos. Os portugueses temem e/ou exploram o Estado, mas nunca o levam a sério. Enganar ou explorar o Estado não são crimes ou sequer pecados veniais. Os deveres de lealdade são para com a família e os amigos. Mesmo quando se sente lealdade a Portugal, este é entendido como uma grande família e não como uma organização política estruturada em Estado. 

Os portugueses possuem uma forte identidade, mas essa identidade não é política mas familiar. Daí o contínuo questionamento sobre questões da identidade nacional. O que vale a pena pensar e explorar é o sentimento de estranheza que existe entre os portugueses e o Estado. A ideia de que o Estado sempre foi autoritário e por isso as pessoas protegeram-se não lhe reconhecendo de facto legitimidade é uma explicação. Mas não explica o efectivo não casamento (um divórcio implicaria a ideia de ter havido um casamento) entre os portugueses e a sua estrutura política. 

Existe a ideia de que somos descendentes daquele povo que habitava o Ocidente da Ibéria e que, segundo o General Galba, governador romano, não se governava nem deixava governar. Esse  suposto anarquismo explicará muito pouco. No entanto, o facto da frase ter sido, presuntivamente, pronunciada por um general ocupante talvez abra uma pista para explicar o afastamento entre os portugueses e o seu próprio Estado. Não terá sido o Estado português obra de uma elite política sempre sentida como estranha à comunidade? Não haverá, desde Afonso Henriques aos nossos dias, um conflito, quase de natureza étnica, entre as elites políticas e o povo? A que se deverá o contínuo não reconhecimento da legitimidade do Estado português pelos próprios portugueses?

domingo, 25 de março de 2012

Marquês de Sade, Justine ou os Infortúnios da Virtude


[Recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Este retoma, com ligeiras alterações, os três textos sobre Justine os os Infortúnios da Virtude, de Marquês de Sade]

1. Universos totalitários – sexo, dor, dominação e totalidade

Justine ou les Malheurs de la Vertu era uma das obras do Marquês de Sade que, devido à incultura geral que por vezes me acomete, nunca tinha lido. O texto merece meditação, tanto por aquilo que ele reflecte como por aquilo que anuncia. Este texto é escrito como se nada se soubesse do seu autor nem das outras obras que escreveu, incluindo a terceira versão de Justine denominada La Nouvelle Justine, ou les Malheurs de la Vertu. Considera-se apenas esta obra em si mesma e os mundos que ela propõe ou revela.

Genericamente, as pretensas experiências sexuais a que, contra-vontade, a virtuosa Justine é exposta são, na sua essência, experiências de universos totalitários. Nos vários episódios que lhe acontecem, o que se depara ao leitor são mundos fechados onde um exercício despótico de poder se manifesta em toda a sua amplitude, a qual vai até ao poder sobre a vida das vítimas. O horizonte das experiências sexuais narradas, em que se inclui o prazer sexual proveniente da violência sobre o outro, é um universo ocluso onde a única liberdade pertence aos libertinos que o comandam.

Justine começou por ser um conto denominado Os Infortúnios da Virtude, escrito por Sade em 1778, na prisão da Bastilha, cerca de dois anos antes do início da Revolução Francesa. O conto evoluiu para o romance que comentamos, publicado em 1791, cerca de dois anos depois do início da Revolução. Poder-se-ia, não sem propriedade, ver nesta obra de Sade o anúncio profético do período do Terror (entre finais de Maio de 1793 e finais de Julho de 1794). Nele, os jacobinos, sob égide de Robespierre e da facção da Montanha, suspenderam todas as liberdades e garantias dos cidadãos, perseguiram e assassinaram a seu bel-prazer os adversários bem como os próprios jacobinos sobre os quais recaísse suspeita de falta de zelo revolucionário.

Os universos descritos por Sade, que aparentemente são apenas universos sexuais e não políticos, anunciam já uma realidade bem mais tenebrosa do que o tenebroso período do Terror da Revolução Francesa. Anunciam os universos totalitários que tomaram conta da Europa na primeira metade do século XX, universos que se prolongaram pelo mundo fora, como o mostra a terrível experiência do Cambodja. Não se está apenas perante tiranias. As relações que algozes e vítimas estabelecem na narrativa de Sade prefiguram os regimes políticos totalitários, onde todas as esferas da vida social estão submetidos ao Estado, e àqueles que exercem o poder dentro desse Estado. A dominação paranóica que as grandes figuras dos regimes totalitários, de esquerda e de direita, exercitaram não é diferente daquela que encontramos exercidas pelos libertinos nos diversos mundos pelos quais passa a infeliz Justine. O próprio prazer que esses libertinos extraíam da dominação e da submissão absoluta das vítimas, bem como da violência que sobre elas exerciam, pode estender-se ao prazer que os mais destacados elementos dos regimes totalitários do século XX encontraram no exercício do poder. A própria organização burocrática de certos “mundos” descritos por Sade (por exemplo, o do mosteiro ou o da casa do médico/mestre-escola) prenuncia já o princípio organizacional que presidiu à Shoah nos campos de concentração nazis ou aos gulags soviéticos.

Não devemos, porém, ficar siderados pela terrível experiência dos regimes totalitários. Se olharmos para os universos de muitas empresas na era da globalização, a sua semelhança com o narrado por Sade é completa. Que o resultado de muitas das hipermodernas técnicas de gestão seja a doença psiquiátrica e o suicídio dos funcionários deve permitir compreender a conexão entre esses mundo e aqueles que Sade descreve. De Sade a certas empresas globais, com as suas impiedosas técnicas de gestão de recursos humanos, passando pelos regimes totalitários, há um fio condutor, o do desejo que pode. E por poder, esse desejo aniquila os outros desejos, aqueles que habitam os outros, os que não podem, começando por exigir submissão, passando pela subversão do desejo desse outro, acabando na sua morte

Sade não é importante apenas pela revelação literária do sadismo. É importante também porque é uma das figuras centrais da modernidade ao desenhar os universos oclusos e totalitários onde a praxis sádica pode ocorrer. Não há sadismo consentido. Toda a dor para causar prazer, neste universo sádico, tem de provir daqueles que a sofrem contra-vontade. Daí a necessidade do espaço concentracionário de natureza totalitária, daí a inquietante actualidade do divino Marquês.

2. A lei da natureza e a virtude infeliz

Sublinhou-se a natureza totalitária dos universos descritos por Sade e referiu-se a sua função arquetípica na história da Europa contemporânea. Esses universos são, por seu turno modelados, na caverna platónica. Em cada uma das situações onde Justine se vê envolvida, tanto as vítimas como os algozes libertinos estão, como os prisioneiros da caverna de Platão, presos, submetidos à força. As vítimas submetidas à violência da coacção física, os libertinos, à violência do desejo.

Que lei rege estas cavernas platónicas? O próprio texto a explicita claramente. Desde ladrões e valetes de quarto a aristocratas, passando por burgueses, religiosos e homens de ciência, como o médico incestuoso, pedófilo e assassino, todas enunciam a mesma legalidade, a de um universo social regulado pela lei da natureza. Esta ao fazer uns fracos e outros fortes estabelece o padrão do que cabe a cada um na vida social. A uns fez fracos e vítimas e a outros, fortes e carrascos. O desejo ou a luta entre desejos, num prolongamento da filosofia de Hobbes e antecipando Hegel e Freud, é crucial na visão de Sade. O desejo liga os homens à natureza e entre si, tornando uns senhores e outros escravos. O desejo é, contudo, a manifestação da razão. A razão natural que se inscreve na capacidade e poder, físicos e intelectuais, com que cada um se apresenta ao mundo. Um prolongamento de certas concepções sofísticas contra as quais pensaram Sócrates, Platão ou Aristóteles.

Esta concepção da lei da natureza permite perceber como os universos totalitários se instituem e como se regula a ordem que os estrutura. Concomitante a isto é, por seu lado, a demonstração de que qualquer comportamento virtuoso é fonte de logros e um caminho para a sujeição. O subtítulo da obra – os infortúnios da virtude – mostra a conexão entre a aspiração à virtude e a infelicidade que ela produz. Numa leitura aparentemente crítica das concepções de virtude que provêm do platonismo e do cristianismo, as personagens libertinas tentam, a cada momento, mostrar que o mundo está feito de tal forma que só o vício é recompensado. Um tema que terá impressionado a imaginação do final do século XVIII. Deus ausenta-se do mundo, e a virtuosa Justine passa uma vida de sujeição até que a própria natureza, através de um raio, a aniquila. Na caverna onde os homens habitam, uma caverna constituída por mil outras cavernas, só a astúcia, o ardil, o embuste, a violência são verdadeiramente virtuosos, isto é, nos tornam excelentes na sobrevivência e permitem a satisfação dos desejos com que a natureza nos dotou.

3. Libertinagem e conversão

Para concluir a leitura retomo, aplicando-a a um discurso complexo como um romance, a teoria dos speech acts de J. L. Austin, depois prolongada por John Searle. Esta teoria distingue entre actos locucionários, actos ilocucionários e actos perlocucionários. Muito resumidamente, actos locucionários são os actos de enunciação. Neste caso, por analogia, corresponde ao texto produzido por Sade. Os ilocucionários referem-se ao que fazemos quando dizemos alguma coisa. Posso prometer, avisar, constatar uma certa realidade ou facto, narrar um conjunto de peripécias. Do ponto de vista ilocucionário, a Justine é a narrativa de um conjunto de peripécias em torno da personagem. De certa forma, a dimensão ilocucionária foi já analisada.

Falta a dimensão perlocucionária. Esta refere-se àquilo que o auditório de uma comunicação é levado a fazer pela conjugação das acções locucionária e ilocucionária. Dito de outra maneira, o que pode ser levado a fazer aquele que lê este texto? Aqui retomo uma ideia inicial. Ler o texto como se não soubéssemos mais nada dele a não ser aquilo que ele diz, como se não soubéssemos nem quem foi o seu autor nem qual o desenvolvimento das suas ideias. O texto supostamente libertino que temos à frente pode gerar dois tipos de reacções. Aqueles que se identificam com a lei do mais forte e podem considerá-lo como um manual escolar de instrução para a via libertina. Estes serão uma minoria, pois o ser humano, na sua globalidade, é uma mistura de animal e de ser racional e moral. A consciência moral, aquele que Kant supunha presente em todos os homens, sente, porém, perante a narrativa de Sade um asco crescente pelas praxis libertinas.

O carácter totalitário, o despotismo, o homicídio, o estrupo, o aviltamento do mais fraco, tudo isso presente nos quadros que Justine narra, acabam por constituir um choque para a consciência moral e ter um efeito contrário à ideologia libertina, uma espécie de vacina. Ler a Justine pode ter mesmo um efeito religioso. O universo irreligioso narrado é tão repugnante que conduz espontaneamente à atitude contrária, como efeito perlocucionário. Se não se soubesse quem era o autor e o desenvolvimentos posterior da sua obra, desconfiaríamos que se estava perante um livro apolegético do cristianismo. O próprio Sade, no texto, prevê isso, pois a irmã de Justine, uma libertina soft, ao ouvir a narrativa das peripécias pelas quais passa a irmã, e após a morte desta fulminada por um raio, converte-se e entra para um mosteiro. Mesmo que este final possa ter sido estratégico, no sentido de fazer passar um mundo libertino sob a capa de um caminho de conversão, a verdade é que o texto de Sade, mesmo sem esse fim, tem um potencial de conversão religiosa e moral que não é aquele a que habitualmente ligamos as obras do aristocrata francês.

Com a experiência de S. Paulo na estrada de Damasco apreendemos a conversão como uma súbita e radical mudança de ponto de vista induzida por uma revelação. É este modelo que é explorado por Sade na conversão da irmã de Justine. Em Paulo de Tarso é a revelação divina que o conduz à conversão. No texto de Sade, é a revelação da negatividade libertina que produz idêntico efeito.

sábado, 24 de março de 2012

Poema 32 - O céu de azeviche e esquecimento


O céu de azeviche e esquecimento,
Pobre animal degolado na noite,
Cresce, polvilha o horizonte de estrelas,
Ateia-se no rumor da lua.

Os deuses abandonaram-me,
Proibiram-me os jardins e as fontes,
Cerziram-me as pálpebras: Que da vida
Perdesse sentido e do caminho, oriente.

O velho frecheiro desviou o arco.
Seco coração, deserto e cinza, cala-te,
Sombra rasgada na brancura da parede.

Cansei-me dos salmos da melancolia,
Cansei-me dos frutos do pensamento,
Cansei-me das noites ardidas de azul.

sexta-feira, 23 de março de 2012

A maioria silenciosa


A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.


Contrariamente a gregos e a espanhóis, mesmo a italianos, os portugueses têm aceitado em silêncio as medidas de austeridade impostas pela troika ou inventados com zelo e sofreguidão pelo governo. Lê-se muitas vezes que esse silêncio, apesar de conter alguma indignação, é fruto do medo. Será verdade. Verdade parcial. No silêncio dos portugueses há também a sabedoria de um povo com nove séculos de história, de uma gente que já viu e viveu muito, de uma comunidade que se dispersou pela diáspora e de lá recolheu um saber do mundo e das coisas.

Quando Vítor Gaspar diz que o ajustamento da economia nacional será mais rápido e mais bem sucedido do que se pensava, as pessoas percebem bem o que isso significa. Sabem, por experiência secular, que a maioria vai empobrecer ainda mais, que muitos morrerão mais rapidamente, que os bens sociais – saúde, educação, protecção no desemprego e na velhice – serão cada vez piores. Sabem ainda que haverá alguns que irão ganhar muito com o ajustamento da economia e que o governo – este ou outro – não deixará de zelar pelos interesses desse pequeno grupo beneficiário da pobreza generalizada.

Se a canção nacional é o fado, isso deriva da mesma fonte de sabedoria, provém da percepção de um destino sentido como inelutável. Por muito que liberais e revolucionários falem de iniciativa – privada para os primeiros, colectiva para os segundos –, os portugueses são velhos demais para se deixarem iludir. A iniciativa é um luxo que, neste território, sempre se pagou demasiado caro, por vezes com a vida. Preferem o silêncio.

Fazem-no não por cobardia mas por manha. Durante os nove séculos da nossa história, aprenderam a competência fundamental que permite sobreviver: ser manhoso. Isto significa passar despercebido, fingir que não se existe. A finalidade é simples: esperar que o destino não dê por nós, que a morte ou o desemprego passe ao lado, que a vida não nos pregue uma partida. Mas tudo isto não é deplorável e um sintoma de falta de energia e de dignidade? Talvez. Mas essas acusações só podem vir daqueles que, de alguma forma, se encontram em alguma área de conforto (e há áreas de conforto insuspeitadas). Quem tem de chegar ao dia seguinte e não sabe se isso acontecerá está concentrado apenas em tentar enganar o destino.

Não nos iludamos: o silêncio e o exercício da manha não significam adesão aos propósitos do governo e das classes sociais que este defende. Na primeira oportunidade, a maioria silenciosa tirará desforra e vingança. Lembram-se do PREC em 1975?

Patologias sociais


Tornou-se uma doença. Governar parece ser, nos dias de hoje, um exercício contínuo de uma patologia. O governo acha por bem perder tempo com ideias luminosas como a de dar o nome de empresas privadas às lojas do cidadão. Isto não é um exercício inocente, o que mostra que a patologia é um caso de saúde pública. Nas lojas do cidadão tratam-se de assuntos que estão relacionados com o nosso estatuto cívico. Elas são uma emanação da comunidade feita por intermédio do aparelho de decisão dessa comunidade, o Estado. O Estado não deve, em qualquer circunstância, ser confundido com os indivíduos e os interesses privados. Esta peregrina ideia - que visaria, segundo a notícia, arrebanhar 400 mil euros anuais, uma insignificância - é sintomática do que esta gente entende pela separação do Estado e dos interesses privados. A colonização da esfera pública pelo mundo dos interesses privados, a transformação da presença do Estado e do serviço público em suporte publicitário, representam mais uma tentativa para privatizar o próprio Estado. O que está em jogo não é uma mera loja do cidadão. O que está em jogo é, por razões económicas - e estas nunca faltarão - mas essencialmente ideológicas, começar por uma loja do cidadão e, fruto de tanta imaginação, amanhã passarmos a patrocinar os tribunais, as forças armadas ou os quartéis de polícia, para não falar das escolas públicas ou dos hospitais, se ainda os houver. O fim lógico desta patologia - fim que já está inscrito nesta pequena semente, uma verdadeira ideia seminal, dirão os adeptos da seita - é a privatização completa de tudo o que diz respeito ao bem comum, onde se incluirão, por certo e num futuro que a seita desejará cada vez mais próximo, as funções de soberania: defesa, segurança e exercício do poder, seja o jurídico, seja o legislativo ou o executivo. 

quinta-feira, 22 de março de 2012

A ficção liberal


Por que razão não sou liberal? Será por desamor pela liberdade? Será por desconfiança nos mecanismos de mercado para fornecer os bens necessários à vida humana? Não. A liberdade tem para mim um valor essencial e o mercado foi o dispositivo mais inteligente que o homem inventou para trocar bens e, desse modo, suprir as carências e os desejos que animam a vida dos homens. As sociedades do plano (as socialistas) falharam em absoluto.  Não sou liberal porque o liberalismo funda-se numa série de pressuposições erradas sobre a natureza do homem. É uma questão antropológica que está na base desse meu afastamento da ideologia hoje dominante no mundo ocidental.

A principal suposição que me afasta do liberalismo é aquela que vê o homem como um ser plenamente racional, auto-dominado e completamente transparente a si-mesmo. Só um ser com estas características teria a capacidade de, a cada momento, fazer as opções mais racionais de acordo com os seus interesses. Ora todos nós já fizemos a experiência pessoal de fazer escolhas que se vieram a revelar, perante os nossos interesses, como absolutamente irracionais. A transparência da nossa racionalidade a nós mesmos é muito menor do que se pensa e muito diferenciada de indivíduo para indivíduo. 

Por outro lado, as circunstâncias históricas solidificaram desigualdades entre os homens. A ideia de que somos todos iguais perante a lei é uma ficção que não é corroborada pela análise de qualquer sociedade historicamente existente. Com isto pretendo pôr em causa a pretensa igualdade existente na base do contratualismo. As teorias contratualistas pressupõem a ideia de que os contratantes são todos seres plenamente racionais e iguais no momento do contrato. Na verdade, tanto os supostos contratos políticos (seja o contrato original fundador de uma comunidade, seja o contrato constitucional) como os meros contratos comerciais dependem de uma história na qual se deu uma diferenciação, tanto da racionalidade dos indivíduos como das forças em presença. Essa diferenciação implica uma relação de forças, onde, de forma mais ou menos subliminar, se exerce a violência de uma parte sobre a outra.

Os contratos são processos pelos quais a desigualdade histórica (pessoal ou colectiva) e a violência subliminar surgem santificadas, pois são transmutadas numa ficção de igualdade das partes contratantes perante a lei. Quando a República Francesa aboliu a diferenciação dos estamentos (clero, nobreza e povo) e proclamou a igualdade, ela não aboliu apenas uma ordem social com as suas diferenciações historicamente solidificadas. Ela negou e ocultou as diferenças já emergentes e, dessa forma, cobriu com um manto ideológico aquelas que se viriam acentuar pela desenrolar da própria história. Passou-se da desigualdade estrutural do Antigo Regime para uma desigualdade sempre negada, sempre ocultada, mas cada vez mais acentuada pela negação e pela ocultação. A figura do contrato, ao supor a igualdade e a liberdade das partes contratantes, torna-se o processo central de santificação da desigualdade que as circunstâncias consagraram.

O problema não se encontra no facto de haver desigualdades, mas no facto das ficções liberais e contratualistas serem uma arma utilizada pelos mais fortes para enfraqueceram ainda mais os mais fracos, para os despojar daquilo que lhes pertenceria, para acentuar a desigualdade. O liberalismo ficcionaliza o homem, a sociedade e nega a história. Dever-se-á, então, descartar o ideário liberal, pôr de lado os regimes constitucionais e a ideia de contrato? Não. A ideia de um homem plenamente racional e transparente a si mesmo deve servir como ideal regulador na educação. Também a ideia de contrato entre iguais deve ser o ideal regulador das nossas sociedades. No entanto, a vida política deve considerar não só estes ideais mas também a vida histórica concreta das comunidades, o conjunto de injustiças que se acumularam na história, para encontrar um ponto de equilíbrio entre a liberdade e as desigualdade que podemos moralmente aceitar. A ideia não é compreender a política como um acto moral, mas fazer das concepções morais uma arma política. O objectivo é o equilíbrio das forças em presença, o evitar do esgarçar dos laços sociais e a cisão rígida dentro das comunidades humanas. O objectivo é a preservação das comunidades humanas pelo reforço dos laços entre os seus diferentes membros.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Poema 31 - Não fora a floresta onde te perdi


Não fora a floresta onde te perdi,
A luz transviada pelo medo,
E a solidão cantaria na orla da estrada;
Sombria sombra haveria de ti.

Procuro-te em lugar nenhum,
Nas águas translúcidas presas no sol,
Na boca inocente de um animal
Da vida libertado pela madrugada.

Não pertenço a estirpe alguma,
A genealogia não me recomenda.
Sou um lobo que aguarda a hora

E dorme sobre cama de pedras.
Espero que venhas de mãos vermelhas
E me leves para o silêncio da toca.

terça-feira, 20 de março de 2012

Abandono e vagabundagem


O tema da derrelicção entrou na nossa cultura para expressar o abandono de Cristo na cruz. Ganhou uma tonalidade filosófica quando Emmanuel Lévinas traduz por déreliction o termo alemão Geworfenheit utilizado, em Ser e Tempo, por Martin Heidegger. O filósofo alemão usou o termo para designar a situação existencial do homem, o facto de ele ser atirado ao mundo, de se debater no meio das suas possibilidades e de aí ser abandonado.

Este abandono metafísico que constitui a nossa própria e mais íntima natureza teve, na história da nossa espécie, uma resposta geral dada pela vida social. O facto de sermos atirados para o mundo, de sermos abandonados nele, foi sempre dado dentro de uma comunidade, a família, o grupo social, a tribo, a nação. Quando Heidegger publica Ser e Tempo, em 1927, os sentimentos comunitários estavam ao rubro. Entre a primeira e a segunda guerras mundiais, os nacionalismo fervilhavam e o espírito de comunidade era, muitas vezes para o pior, vivo e actuante. Heidegger não descreve uma realidade social, embora ela já pudesse ser entrevista, mas uma experiência ontológica e existencial.

Zygmunt Bauman, um sociólogo polaco, tem vindo, na sua vasta obra, a chamar a atenção para um outro fenómeno de abandono, este agora de carácter social. Ao analisar os laços sociais da vida contemporânea, o que ele encontra é a fusão ou a liquefacção das ligações que nos prendiam uns aos outros, que estabeleciam relações de mútua dependência entre as classes sociais e que, dessa maneira, solidificavam o espaço público e a vida das comunidades. A dissolução das famílias, relações meramente pontuais e utilitárias entre elites e gente comum, estão a criar um outro tipo de actor, o vagabundo. 

Podemos pensar que o desenvolvimento actual do capitalismo está a destruir aquilo que foi, na história geral da espécie humana, a protecção contra a derrelicção, contra o abandono metafísico que representa o nascimento de cada ser humano. A dissolução dos laços sociais imposta pela nova economia (destruição da família, desresponsabilização do capital perante o trabalho, etc.) vem acrescentar abandono ao abandono. O vagabundo - e a vagabundagem é o destino que se pretende para grande parte da população europeia - é a figura central da nova experiência do mundo trazida pelo actual desenvolvimento económico e social. 

O vagabundo é aquele que foi obrigado a romper os laços sociais, o emigrante que se afastou da sua comunidade, o trabalhador precário que amanhã será despedido, o doutorando que, concluído o doutoramento, não terá que fazer, o desempregado que não mais trabalhará, os velhos que foram deixados na sua velhice. As comunidades existiam para fazer frente ao abandono metafísico pensado por Heidegger. O grande problema é que hoje em dia, as elites económicas, cada vez mais elusivas, e as elites políticas, cada vez mais subservientes, têm por finalidade destruir os laços comunitários, construir multidões de vagabundos ou, quando as coisas se complicam, criar comunidades-gueto onde os vagabundos são encurralados. 

Ao expirar na cruz, Cristo diz: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?" Esta experiência crística da derrelicção, do abandono, é cada vez mais a experiência de milhões de homens. Não o abandono de Deus em plena morte. Não o abandono do ser atirado para o mundo ao nascer. Mas o abandono pela sociedade e pelas suas estruturas políticas em plena vida. O desmantelamento do Estado social é o princípio organizador do novo abandono transformador de homens com destino em meros vagabundos perdidos na floresta da vida.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Conhecimento, acção e ficção

Informação, Conhecimento e Ação

Alguns pensadores contemporâneos para ultrapassar a clivagem entre conhecimento e acção - clivagem originada na antiguidade clássica mas acentuada na filosofia moderna - propõem a remoção da ideia de conhecimento como um estado da mente e figuram-no como um modo de relacionar coisas, como uma espécie de acção. Este tipo de pensamento não legitima apenas teorias pedagógicas fundadas na ideia de competência (a competência de estabelecer relações, de as analisar, etc.). Ao analogar conhecimento à acção, estas posições permitem que se pense o próprio conhecimento à luz daquilo que constitui a acção. 

Quando exploramos, ao nível cognitivo, a aplicação de categorias como a deliberação, o motivo, a intenção, a finalidade ou as consequências, isso ainda é exequível e pouco ou nada problemático. Um projecto de investigação científica contém categorias como as referidas. A questão torna-se mais interessante se transferirmos para o conhecimento a problemática do livre-arbítrio. O conhecimento deixa de ser uma mera representação da realidade na mente, mas uma construção fundada na minha liberdade de escolha. As relações estabelecidas derivam da escolha que o agente cognitivo, digamos assim, entende fazer entre as coisas que pretende relacionar.

A ciência, durante muito tempo, talvez ainda hoje, é marcada pela ideia de necessidade, isto é, as relações estabelecidas entre fenómenos são necessários e respondem a uma dada legalidade da natureza (há casos onde a probabilidade desempenha o papel central, eu sei). Mas se o conhecimento for visto como acção, não é a necessidade que deverá presidir à formação de conhecimentos mas a liberdade, diria a liberdade criativa. Isto permite-nos imaginar a possibilidade de um conjunto de físicas possíveis, por exemplo, dependentes do modo como o agente cognitivo decide relacionar os fenómenos físicos.

Esta maleabilidade cognitiva existe e é muito explorada ao nível da ficção. O que pode ser pertinente questionar é, por um lado, se a ciência não é, também ela, uma ficção dependente do livre-arbítrio humano, e, por outro, se não será possível criar outro tipo de ciência a partir do livre-arbítrio dos agentes cognitivos no agenciamento relacional dos fenómenos. Assim, ao lado da pluralidade das ficções artísticas teríamos também uma pluralidade de ficções científicas, várias físicas concorrentes, várias biologias, etc., que não resultariam da especialização disciplinar, mas das livres decisões dos agentes. O problema está em perceber se a realidade suporta esses exercícios da liberdade.

domingo, 18 de março de 2012

Poema 30 - Como este tempo prefigura a ruína


Como este tempo prefigura a ruína,
O esquecimento em que cairá o corpo.
O jugo pesado da terra esconde
Pedras, flores, promessas deserdadas pelo futuro.

Das estações do ano não haverá sinal
Nem da música amada restará fragmento.
Escutarão o silvo das aeronaves
No silêncio onde o terrível ganha forma.

Revolvem-se as vísceras na luz tardia.
Paradas, as águas do rio apodrecem,
Sangue do meu sangue na carne em declínio.

Quando a peregrinação encontra fim,
Ouvem-se sinos a ecoar na montanha.
Um cisne canta e no céu triste voa o corvo.

sábado, 17 de março de 2012

Anton Tchékhov, O Duelo


O Duelo, novela de Anton Tchékhov, tem uma natureza polifónica, resultando a intriga da conjugação das diversas perspectivas narrativas que ora se confrontam ora se conciliam, na busca de uma reconciliação final. A obra data de 1891 e coloca em confronto, numa pequena cidade do Cáucaso, um funcionário público com formação superior, Ivan Laévski, símbolo da preguiça e da devassidão, e a sua amante, Nadejda Fiódorovna, uma intelectual volúvel e instável que abandonara o marido por Laévski, com o zoólogo, von Koren, que transporta os valores iluministas próprios do terceiro estado. Este confronto é mediado por um médico militar, Aleksandr Samóilenko, generoso e de origem aristocrática, e por um jovem diácono em início de carreira eclesiástica, representante da fé e do amor crístico.

Tchékhov explora o papel do ódio e da traição no processo de reconhecimento de si e de conversão aos valores socialmente aceites, os valores da família e do trabalho. A conduta de Laévski e de Fiódorovna não atrai apenas a má-língua dos meios sociais onde se movem, mas o ódio e o desprezo explícito do cientista perante a falsidade daquele tipo de existência. O que é uma vida autêntica? Esta é a interrogação que funda a intriga. O rigor do homem que busca a verdade, von Koren, a sua exigência de autenticidade, são desafiados pela falsidade existencial do casal desviante. Que o paladino da autenticidade e veracidade existenciais humanas seja um zoólogo, isso não significa apenas cobrir essas exigências com o prestígio da verdade, ideal regulador da praxis científica. Essa transposição da verdade, presente na construção das taxonomias zoológicas, para o comportamento humano significa ainda uma subtil ironia acerca da condição humana e da sua própria verdade.

Esta estratégia irónica de relativização da posição de von Koren é corroborada por uma confrontação lateral ao conflito central da novela. A intransigência do cientista perante Laévski surge em confronto com a bonomia e condescendência de Samóilenko e a caridade, em pleno duelo, do diácono perante o mesmo Laévski. Esta pluralização de atitudes tem a função de fazer ressaltar mais claramente a natureza do zoólogo, ao mesmo tempo que sublinha os limites desse novo mundo que começa a emergir na Rússia, e que triunfara há um século atrás em França.

A conversão de Laévsky aos ideais do trabalho e da família é mediado por dois momentos onde a verdade surge como alétheia (ἀλήθεια), isto é, como desvelamento ou desocultação, para retomar a interpretação do termo grego feita por Martin Heidegger. No primeiro momento, Laévsky constata o ódio e o desprezo do zoólogo, o que conduz directamente ao momento agónico da narrativa, o duelo entre os dois. Essa primeira revelação prepara a segunda, onde descobre - não por uma informação de terceiros mas porque terceiros o levam a presenciá-la em acto - a traição da sua amante. Ele que se preparava para a abandonar, cansado dela, acaba por ter, naquele instante e perante a verdade da volubilidade dela, uma epifania do seu amor por Nadejda Fiódorovna.

O duelo surge como um momento de morte e de ressurreição para Laévski. Von Koren não o mata devido à inopinada e caridosa intervenção do diácono, mas o facto de Laévsky se ter entregado à morte com coragem acaba por ser o momento decisivo da sua ressurreição, a qual assenta no reconhecimento de si, na auto-reconciliação e na reconciliação com os valores socialmente aceites. Há uma estrutura dialéctica, quase à maneira de Hegel, neste processo. Ela manifesta-se no papel do negativo - o ódio, a traição e a morte - na ressurreição de Laévski, através do reconhecimento e da reconciliação. Manifesta-se ainda no processo de relativização de todos os pontos de vista em jogo. O próprio rigor moral kantiano - uma moral absoluta e incondicional - de von Koren é relativizado pelo reconhecimento que este faz do valor de Laévski e da reconciliação final entre ambos.  A moral burguesa que parece sair vitoriosa é, por seu turno, relativizada pelo sublinhar do ar lastimável, apesar de reconciliado com o seu destino, que agora Laévski apresenta. 

O duelo é a metáfora da dialéctica existencial, onde nenhuma das posições é verdadeira, fazendo todas elas parte de uma verdade que se desvela, para o leitor e não para as personagens, na articulação e no confronto entre as partes. A vida autêntica não era a do primeiro Laévski, nem a do Laévski reconciliado com o destino, nem a do zoólogo. As vidas privadas são vidas privadas de verdade, a sua autenticidade é a de serem inautênticas. "Ninguém conhece a verdade verdadeira", pensava Laévski. De facto, esta não reside em ninguém mas na vida tumultuosa que, como o turbilhão infinito de átomos que se entrechocam ao acaso dos antigos atomistas, lança uns contra os outros, ora em confronto ora em apaziguamento. A polifonia narrativa foi a estratégia estilística encontrada por Tchékhov para figurar e configurar esta vida exuberante e a sua dialéctica existencial. Melhor, a polifonia narrativa foi a estratégia usada por Tchékov para transformar o caos das paixões humanas numa figuração que pode ser lida como dialéctica.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Fé e meteorologia

Anton Tchékhov

 - Diz o senhor que tem fé - insistiu o diácono. - Que fé é essa a sua? Tenho um tio que é padre e tem tanta fé que, quando há seca e ele sai para os campos a pedir chuva, leva o guarda-chuva e um sobretudo de cabedal para que a chuva não o molhe no caminho de volta. Isso é que é fé! [Anton Tchékhov, O Duelo]

A cama do Sidónio


Pacheco Pereira afirmou, na passada terça-feira, que estava a cama posta para o surgimento de um novo Sidónio Pais. Tanto quanto se percebe do artigo do Público, o fundamento da argumentação está na conexão da demagogia com os meios de comunicação social, como a televisão, que potenciam, num ambiente de crise social e de destruição da frágil classe média ainda existente, o surgimento de alguém do género do Presidente-Rei.

Esta é uma explicação clássica. Mas fará ela sentido? Em aparência, sim. É todavia uma explicação limitada que não em tem em consideração o facto de vivermos numa época de pós-democracia. O colapso da União Soviética e a queda do Muro de Berlim assinalam a entrada do Ocidente numa fase de pós-democracia. A democracia é, aparentemente, um método de escolha das elites políticas. Mas a este conteúdo formal corresponde um outro conteúdo material marcado pela tensão entre alternativas políticas reais, correspondentes a interesses sociais diferenciados. Nos primeiros tempos, a democracia viveu do conflito entre a aristocracia e a burguesia ascendente. Este conflito, dirimido em favor da burguesia, foi sendo substituído por um outro conflito entre a burguesia e as classes trabalhadoras. 

O fim da ameaça comunista e a imaterialização da economia (refiro-me, por exemplo, ao fluxo instantâneo dos capitais) inauguram uma época em que os conflitos entre classes, apesar de existirem e de persistirem, deixaram de ter possibilidade de resolução política - uma resolução sempre provisória (veja-se o que se passa, num regime diferente do nosso, como a China). Isto retirou conteúdo substantivo à democracia e tornou-a irrelevante do ponto de vista político. A partir de determinado momento a única coisa que está em jogo é a pura manutenção da ordem. 

Uma era pós-democrática como a que vivemos não significa, obrigatoriamente, o fim de certos rituais democráticos ou mesmo de certas instituições onde a democracia viveu. Significa que ela se tornou um valor puramente utilitário e será mantida não pela sua nobreza ideal mas apenas pela utilidade que demonstrar para manter os territórios sob controlo. Não é a crise conjugada com os meios de comunicação social que podem destruir a democracia. O facto dela implodir - ou viver num estado de sonambulismo contínuo - deve-se ao esvaziamento do seu conteúdo substantivo. Este é o fundamento de que a crise e a demagogia potenciada pela comunicação social são aparência, para utilizar uma oposição conceptual tão ao gosto da filosofia.

Ensaio sobre a cegueira



Todos somos cegos para o futuro. Este oculta-se num véu impenetrável. Há, porém, uma cegueira pior, a cegueira perante o presente, como se este, na sua cintilação, ofuscasse quem deveria olhar para ele. Os governos de José Sócrates podem fornecer matéria suficiente para um estudo de caso deste tipo de cegueira política. Quando Sócrates assume a governação, existe no governo o pressentimento de que uma desgraça inominável se perfila no horizonte.

É esse pressentimento que o leva a eleger, em primeiro lugar e numa lógica utilitarista, os professores do ensino não superior como bode expiatória do mal cuja sombra começava a pairar sobre Portugal. A finalidade era simples. Os professores deveriam ser uma espécie de Cristo, cujo sacrifício redimiria o todo nacional. Mas a cegueira perante o presente não permitiu perceber que essa ideia absurda não tinha capacidade para penetrar profundamente no corpo da nação. A queda de Sócrates começou aí, começou na cegueira perante o sentimento de justiça que habita uma comunidade.

Esta cegueira foi apenas um pequeno sintoma do que viria depois. Quando a crise se avolumou e começou a desabar sobre todos nós, Sócrates, cego para o presente, desorientado perante a ameaça, entra num processo de negação da realidade até que os portugueses dispensaram os seus serviços e lhe permitiram ir tratar-se para Paris. Este exemplo deveria fazer pensar aqueles que lhe sucederam.

A cegueira tem causas múltiplas. A de Sócrates deveu-se a uma desorientação global. Mas por vezes a cegueira nasce de objectivos muito claros e definidos, os quais se tornam uma espécie de sol que ilumina o caminho. Mas o sol não ilumina apenas, também ofusca. É o que parece passar-se com o actual governo. Pensando ser radicalmente diferente do anterior, é tão cego para  presente como o de Sócrates. Que o investimento diminua, que o desemprego aumente, que as pessoas desesperem, que a economia real esteja em vias de desaparecer, nada disto é visto pelos governantes portugueses.

Há um objectivo ideológico, fundado na valorização da pobreza e da precariedade, e só isso conta. Passos Coelho e Vítor Gaspar não são profetas, por isso não têm que prever o futuro. A um governante, porém, pede-se que não seja cego para o presente. Foi isso que, aqui o lado, fez Mariano Rajoy. Sócrates pode estar em Paris, mas a sua cegueira perante a realidade presente foi, como tantas vezes acontece, herdada por aqueles que o derrotaram. Governar em Portugal parece ser um exercício de cegueira.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Argumentação como instrumento de fé


Por vezes alguém expende, perante mim, uma qualquer opinião sobre a pobre pessoa que sou, uma referência a uma suposta idiossincrasia ou a uma hipotética crença. Há muito que, perante a falsidade da opinião, desisti de argumentar que as coisas não são assim, que eu não possuo essa característica, por louvável que seja, ou que não acredito ou já não acredito nessa crença. Não vale a pena. Mesmo perante alguém que tenha em certa consideração, a qual me levasse a um exercício de veracidade, é pura perda de tempo. Nunca se consegue desfazer uma crença alheia por mais errónea e estapafúrdia que seja. Esta experiência mostrou-me os limites da argumentação.

Um argumento só convence quem está convencido a priori. Quando ensino que a filosofia é uma disciplina argumentativa, onde os filósofos opõem teorias argumentadas contra outros filósofos, dando a entender que uma boa argumentação poderia converter alguém a uma suposta verdade, faço um exercício de puro cinismo. Não conheço nenhuma filósofo a quem a argumentação de um outro tenha convencido e levado a abdicar da sua posição, para passar a defender a do crítico. A argumentação só serve para convencer os convencidos, para os ajudar a ficarem mais solidamente convencidos. A argumentação é um exercício não da razão mas de uma qualquer fé irracional, um monólogo que almeja apenas tapar as fissuras da crença que se possui. Se isto é assim na filosofia, imagine-se como será na vida quotidiana, esse lugar onde todas as crenças têm coloração afectiva. Nada há de mais irrefutável do que um sentimento.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Banir a Divina Comédia de Dante


Há múltiplas formas de queimar livros. Umas mais épicas, como a que praticavam os nazis. Outras mais idiotas, como aquela que, não usando o fogo, quer proibir que se ensinem certos clássicos na escola e na Universidade, como a Divina Comédia de Dante. Vale a pena ler o artigo do The Telegraph para perceber onde chega o absurdo. Afinal Dante não é um génio do passado, mas um porco racista, homófobo, islamófobo e anti-semita. Não passa de um nauseabundo fascista, digamos assim. A Gerush 92, uma presuntiva associação defensora de direitos humanos, diz que não é a favor da queima de livros ou da censura, mas acha que a arte não está acima de toda a crítica. Julga, no seu superior juízo, que os estudantes, incluindo os da universidade, não possuem filtros para apreciar o contexto histórico da obra. Dito de outra maneira, esta gente de vida infeliz acha que Dante corrompe a juventude. Foi com essa acusação que Sócrates foi condenado à morte. E tem este clube de infelizes um papel consultivo na ONU. Qualquer dia somos presos por ter a Divina Comédia em casa. Confesso já, tenho duas edições. Depois da pureza da raça, a pureza das opiniões.

Metáfora e ciência


Este artigo do Público sobre um momento da história do universo está repleto de metáforas. Galáxias canibais, galáxias adolescentes, berço efervescente de estrelas, fábricas de estrelas, galáxias que não se alimentam, agregados de estrelas que povoam o espaço. O artigo não tem carácter científico, trata-se apenas de divulgação genérica de resultados obtidos na investigação. A utilização desta metafórica, contudo, não deixa de ter interesse.

Paul Ricoeur, no conhecido estudo sobre a metáfora (A Metáfora Viva - MV) explora a conexão entre modelos e metáforas. Referindo-se a um artigo de Max Black, escrevia: "O argumento principal é o de que a metáfora está para a linguagem poética como o modelo está para a linguagem científica, quanto à relação com o real. Ora, na linguagem científica, o modelo é essencialmente um instrumento heurístico que visa, por intermédio da ficção, destruir uma interpretação inadequada e abrir caminho a uma nova interpretação, mais adequada." (MV. Porto: Res, p. 357)

Pela analogia instaurada, percebe-se que a metáfora, ao nível da poética, seria ainda um instrumento heurístico, um instrumento de descoberta, que, ao suspender e destruir a linguagem corrente, destruiria uma interpretação inadequada do real e instauraria uma nova e mais adequada. O que me interessa, porém, é uma outra coisa, a relação da metáfora com o próprio exercício da ciência. 

Na divulgação científica, a metáfora, como outros processos tropológicos ou retóricos, tem uma função de mediação entre a linguagem científica e a linguagem comum. Oferece uma intuição ao grande público que não está habilitado a compreender a linguagem esotérica da teoria científica. Esta intuição é feita, contrariamente à metáfora poética, pela construção de uma desadequação com a realidade. É a passagem de um linguagem mais adequada, a dos conceitos científicos, para a linguagem popular do senso comum, através do exercício da imaginação. A esta imaginação poder-se-ia dar o nome de imaginação redutora. Reduz o abstracto do conceito, embora com conteúdo empírico, à linguagem corrente, fornecendo um conteúdo imagético a esta linguagem vulgar. A função da metáfora, neste caso, é ambivalente. Ao reduzir o conceito científico, a metáfora usada na divulgação científica  amplia a linguagem popular. Mas esta ampliação, como se viu, não torna essa linguagem mais adequada. Muitas vezes acaba por reforço certo tipo de preconceitos conferindo-lhes uma espécie de autoridade pseudo-científica.

Por outro lado, que relação haverá entre a metáfora e a praxis científica? A polissemia inerente aos processos metafóricos parece ser tudo o que a linguagem científica recusa. No entanto, seria bom compreender como muitos conceitos, de conteúdo empírico bem definido, resultam de processos de redefinição de antigas metáforas. Esta compreensão não visa apenas fazer a história do conceito, mas de o interrogar de forma a compreender o que nele ainda persiste de imagético, de metafórico, de retórico, apesar de todo o esforço de neutralização do mitopoiético a que a ciência se entrega. Será possível constituir poéticas e retóricas da ciência? Eis um dos problemas que a investigação da relação entre metáfora e conceito científico poderia responder. 

Um segundo problema está ligado ao papel heurístico da metáfora (e não dos modelos, note-se) na ciência. Poderão certas metáforas abrir caminho para a produção de conhecimentos mais adequados? Se sim, como ocorrem esses processos? Como é que a poética e a retórica se ligam a processos de investigação, mesmo nas chamadas ciências duras? Também é pertinente a questão contrária. Como é que uma certa poética e uma certa retórica existente nas comunidades científicas, com o seu jargão onde haverá metáforas e outros tropos, constituem obstáculos à produção de conhecimento. Em resumo, a questão do papel heurístico da metáfora remete para o papel epistemológico desta. O que pode tornar evidente que a relação entre metáfora e ciência está muito para além da questão da divulgação científica.

Tudo uma questão de marca


Portugal, curioso país. Repare-se a distância que vai de Lisboa a Santa Comba Dão. Tanto o governo central como a Câmara de Santa Comba são governados pelo PSD. O governo de Lisboa é o último grito liberal que chegou cá, mas o presidente da autarquia beirã não vê problema algum em recorrer à "marca  Salazar" para promover o concelho. Que Salazar tenha sido um ditador e feroz iliberal, como agora se diz, ou que o seu regime tenha as mãos sujas de sangue pelos assassinatos políticos, ou que a liberdade tenha sido por ele pura e simplesmente suprimida, nada parece apoquentar este acérrimo defensor das oportunidades da sua paróquia. 

Este notável exemplo de espírito de iniciativa e de objectividade histórica deverá frutificar. Quando o PSD conquistar a câmara de Peniche, seria uma óptima ideia, para desenvolver as potencialidades da terra, usar a "marca forte de Peniche", criando mesmo um parque de diversões onde saudosistas e outros basbaques veriam pessoas a ser torturadas ou a viver atrás das grades. No dia que o PSD conquistar Beja, por outro lado, será uma óptima ideia utilizar de novo a GNR e dar uns tiros em camponesas grávidas. Eu sei que quase não há camponesas hoje em dia, e as que há usam a pílula, mas sempre se podem importar para as sessões de execução. A marca "um tiro em Baleizão" atrairá, por certo, inúmeros saudosistas, e execuções públicas, mesmo que com a aparência de conflito social, chamarão, se bem encenadas e publicitadas, muitos visitantes. No fim, em Peniche ou em Beja, poderão todos regalar-se com um copo de tinto "Memórias de Salazar". Tudo isto sempre dentro de "uma perspectiva objectiva e histórica", claro. Que não falte por esse país fora imaginação, o marketing fará o resto.

terça-feira, 13 de março de 2012

Thomas Mann, Os Buddenbrook


[Recuperação dos posts do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Este post recupera, com ligeiras alterações e num único post, quatro posts sobre Os Buddenbrook, de Thomas Mann.  ]


Reli a primeira obra de Thomas Mann. Tinha-a lido há quase trinta anos, na tradução de Herbert Caro, para os Livros do Brasil. Agora comprei a nova tradução, de Gilda Lopes Encarnação, para a Dom Quixote. Não me lembrava praticamente de nada, tirando o pano de fundo da intriga, a ambiência de uma família burguesa, numa cidade alemã do século XIX. Foi como se a memória, ao fim deste tempo, tivesse reduzido a riqueza das peripécias e personagens a uma mera abstracção que, para sua comodidade, pode arquivar num pequeníssimo espaço. O deprimente é que isso não se passa apenas com a literatura. Todas as nossas experiências, exaltantes que tenham sido, jazem agora como meras abstracções num canto obscuro do cérebro. Mas essa é a natureza das coisas, nem vale a pena protestar.

Esta releitura fez-me pensar sobre o que é a grande literatura. Tinha tentado reler alguns romances de Hermann Hesse de que gostara bastante. Foi um experiência decepcionante. Deixei-os todos de lado, ao fim de algumas páginas. O mesmo me aconteceu com um dos romances do Sartre que mais me marcou, A Idade da Razão. Quase no começo, constatei que já não tinha paciência. O tempo desses livros tinha passado definitivamente. Com Os Buddenbrook, pelo contrário, ainda existe avidez na leitura, embora seja uma avidez mais sensata e ponderada, mais observadora da técnica e da arte. O que são grandes livros? Aqueles que podemos reler.

O romance permite, muitas vezes, associar o prazer estético da obra com uma certa aprendizagem sobre a dimensão social da vida humana. Não que o romance vise apreender e explicar o social, mas, ao tomá-lo como matéria romanesca, permite que o leitor compreenda certas realidades de uma forma mais viva que aquela que lhe é dada pelo estudo de um documento académico. Os Buddenbrook permite intuir a natureza da tradição burguesa da Europa central e do norte, de cariz protestante. O ethos burguês, uma coisa tão estranha à tradição peninsular, está ali desocultado na sua plenitude. O cálculo entre prudência e risco, a importância da empresa no seio da cidade, a piedade protestante são a matéria sobre a qual se constrói a intriga nuclear da acção romanesca. Para um europeu do Sul, tudo aquilo não deixa de ter um ar estranho e, fundamentalmente, ajuda-o a perceber a profunda reticência com que a Alemanha da senhora Merkel olha para nós. Mas, o mais curioso, aquilo que hoje se ouve acerca dos europeus meridionais era a voz corrente nos alemães do norte acerca dos bávaros, seus irmãos do sul da Alemanha, como Thomas Mann não deixa de retratar em Os Buddenbrook. É como se houvesse, impregnada na mente da espécie humana, uma espécie de racismo geográfico, onde o Sul surge sempre como inferior ao Norte.

No apogeu do sucesso empresarial, político e pessoal, Thomas Buddenbrook sente um deslaçamento interior como se os acontecimentos, que até aí dominara, começassem a fugir ao seu controlo. Não era nada de visível, apenas uma sensação interior. Os gregos diriam que a Tyche (a deusa Fortuna para os romanos) o abandonara. No entanto, pelo menos no período helenístico, a deusa tomou uma coloração de pura arbitrariedade, como se ela concedesse os seus favores e desfavores ao acaso. Thomas Buddenbrook, porém, associa essa perda da mão sobre o mundo, essa incapacidade de submeter a realidade aos seus projectos, não ao abandono da deusa mas a um excesso seu. A sua nova casa, a troca da rica casa, onde se instalara ao casar, por outra maior e mais esplendorosa. Este excesso, esta ultrapassagem da justa medida, é aquilo a que os gregos do período clássico chamavam hybris. Embora Thomas Mann não fale, no romance, em Tyche e hybris, é isso que está em jogo. Thomas Buddenbrook sente o deslaçamento interior como uma punição do seu excesso. Aqui, de forma talvez surpreendente, percebe-se a conexão entre o mundo burguês do século XIX e os gregos da antiguidade clássica. A ordem dos negócios, para os burgueses modernos, ou a ordem pessoal e cívica, para os antigos gregos, estão ligadas à sophrosyne, à prudência fundada no auto-conhecimento, o qual nos diz que limites não devemos ultrapassar.

Havia, na época clássica dos gregos, a esperança de que uma conduta sensata evitasse os desvarios da fortuna. Na tragédia, por exemplo, a vinda da má fortuna está sempre ligada a um excesso, embora este não esteja na mão do herói evitar. De certa maneira, Thomas Buddenbrook também não pode evitar a nova casa que a situação social lhe impõe. Deste ponto de vista, Os Buddenbrook escondem sob o modelo romanesco uma intencionalidade trágica. Mas aquilo que talvez seja mais interessante pensar resida nos nossos dias. Se na época a que corresponde o romance, segundo e terceiro quartéis do século XIX, ainda é possível fazer uma conexão entre a perda da fortuna com a hybris, hoje em dia, onde tudo foi reduzido ao puro jogo (o jogo dos mercados, por exemplo), a fortuna, a deusa Tyche, está desligada do comportamento, seja ele sensato ou excessivo. É o tempo dos aventureiros. Como no período helenístico, a Tyche tornou-se arbitrária e cega. Ora o período helenístico marca o começo do fim do esplendor dos gregos, o início da sua derrocada. Que o início da nossa comece na Grécia, só espantará quem ache que a história começou com a eleição da senhora Merkel.

Os Buddenbrook são um reflexão sobre a estultícia das linhagens. Em quatro gerações, uma família de comerciantes ergue-se, atinge o apogeu, declina e desaparece sem deixar rasto. O último da estirpe morre de tifo aos quinze anos. O tifo, porém, não era mais que o temor sentido por uma actividade que chocava a sua sensibilidade musical. Isto não significa que dentro das famílias não haja, por vezes, uma inclinação para a repetição de certas funções sociais. Significa apenas que isso se deve à pressão do meio, às vantagens que essa família foi conseguindo acumular, ou às desvantagens que uma outra não soube ou não pôde evitar. Linhagens são exercícios da imaginação, devaneios sobre uma continuidade de aptidões que não existe, uma tentativa desesperada de controlar o futuro e o medo que se abate sobre cada família pela entrada de um novo membro. O princípio monárquico, a enfatização das genealogias, a afirmação da estirpe são ritos de exorcismo perante o insondável mistério que cada ser humano representa. O jovem e delicado Johann Buddenbrook preferiu o mistério da morte à segurança da genealogia. Um verdadeiro republicano.