quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Aborto pós-nascimento


Neste artigo do The Telegraph, de que tive conhecimento aqui, Stephen Adams dá conta de um outro artigo publicado no Journal of Medical Ethics por Alberto Giubilini e Francesca Minerva, onde estes argumentam a favor do direito dos pais em matar os filhos recém-nascidos, sejam eles deficientes ou não. O argumento de Giubilini e Minerva funda-se, embora o The Telegraph não o refira explicitamente, na distinção aristotélica entre ser em acto e ser em potência. Os recém-nascidos não são pessoas em acto e, por isso, não possuem direito moral à vida. São apenas pessoas em potência, mas ainda não são sujeitos que possam reivindicar um direito moral à vida. Deste ponto de vista, os recém-nascidos não são diferentes dos fetos. Estes também são apenas pessoas em potência. Aliás, os autores em vez de usarem a expressão habitual de infanticídio usam a designação de aborto pós-nascimento.

Por escandalosa que seja a argumentação para a nossa consciência, ela deve ser discutida. Recordemos que o infanticídio foi uma prática comum, no mínimo tolerada, em todo o mundo. No império romano, parece ter sido uma prática amplamente difundida. Ao artigo, levantaria duas objecções. Em primeiro lugar, o princípio que conduz os autores à conclusão a que chegam não implica essa conclusão. A distinção aristotélica entre pessoa em acto (aquele que é capaz de reivindicar o estatuto) e pessoa em potência pode conduzir à conclusão contrária. Todos os seres que, potencialmente, têm o poder de, no futuro, se apresentarem como sujeitos morais com direito à vida possuem o direito a viver e o seu assassínio é um crime. Este argumento, porém, tem um defeito. Trata-se daqueles seres humanos que, por uma patologia, não têm agora nem no futuro capacidade de reivindicar o seu estatuto moral de pessoa. Esses não estariam defendidos por esta argumentação e a sua execução seria permitida moralmente.

Em segundo lugar, o direito à vida só deverá ser assegurado a quem tem o poder de afirmar-se como sujeito moral e reivindicar o estatuto de pessoa? Se assim for, qual é a altura em que um neo-nato humano pode ser considerado pessoa e sujeito moral? O erro desta argumentação (um erro suposto a partir da leitura do artigo do The Telegraph e não do próprio artigo dos autores) está na consideração do estatuto de pessoa a partir da capacidade de reivindicação desses estatuto por parte do sujeito. Ora, um estatuto diz respeito ao reconhecimento por parte dos outros. O recém-nascido não tem capacidade de exigir para si o direito moral à vida, mas os outros - isto é, a sociedade - reconhece esse estatuto e confere-lho. O erro da argumentação está na focalização do estatuto de pessoa no indivíduo esquecendo que todo o estatuto resulta da interacção entre indivíduos no espaço e no tempo. Eu tenho o estatuto de pessoa porque a comunidade mo reconhece. Eu só posso reivindicar o estatuto de pessoa porque há, por parte dos outros, uma pressuposição e uma disposição para que tal aconteça. É evidente que a minha posição levanta imensos problemas à questão da moralidade do aborto.

P.S. - Referência ao artigo também no Público. Contrariamente ao que diz o Público, o artigo não é científico, mas um artigo no âmbito da ética, logo de natureza filosófica. Não há qualquer ciência que nos possa dizer se é moralmente errado ou certo o infanticídio. 

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Patologias da alma


Comprei a edição completa, julgo, dos trabalhos do GAC Vozes na Luta. Tenho ainda os LP's originais bem como a cassete, também original, do A cantiga é uma arma, um autêntico programa. Comprei por uma espécie de tributo ao que fui no passado. Para dizer a verdade, porém, acho tudo aquilo absolutamente insuportável. Não me refiro à música, muita dela, no âmbito da música popular a que pertence, de excelente qualidade, feita por pessoas de talento. Refiro-me às letras, verdadeiros panfletos de péssimo gosto. Que cegueira seria a minha e a de muitos como eu para dar qualquer crédito àquele tipo de coisas? O meu problema nem sequer é político mas estético. Há textos de um insuportável mau gosto. Da minha parte, não se trata de renegar o passado ou escondê-lo, nunca o fiz. Trata-se mais de um exercício de desconfiança sobre a minha pessoa. Será possível confiar em alguém que na flor da sua juventude gostava de coisas como as cantadas pelo GAC Vozes na Luta? De que patologia era a minha pobre alma presa? Agora que tenho toda a obra em CD, vou arrumá-la na estante e esperar que chegue a hora, se chegar, em que o meu estado de senilidade me permita tornar a ouvi-la. O que falta saber, contudo, é se as minhas actuais inclinações estéticas serão muito melhores que as de outrora.  

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Nós e os nossos primos Neandertais


Acho sempre fascinante este tipo de artigos sobre outras espécies humanas que não a nossa. Segundo um estudo agora publicado, feito a partir da análise do ADN de 13 Neandertais, quando a nossa espécie encontrou a dos Neandertais, há menos de 50 000 anos, estes já eram sobreviventes de um fenómeno que quase tinha ceifado a espécie. Tanto quanto tenho conhecimento - mas sei muito pouco do assunto - não existe na literatura oral, mesmo se depois passada a escrito, nenhuma narrativa desse longínquo encontro. Não faço ideia quanto tempo um dado fenómeno pode permanecer, em forma de tradição, na memória colectiva de uma comunidade humana. Este artigo pode apontar uma espécie de solução do meu enigma. O contacto ter sido esporádico devido aos Neandertais estarem em vias de extinção e o seu equipamento genético não lhe dar plasticidade suficiente para fazer frente às alterações climáticas ocorridas. Daí não haver memória do incidente. Por outro lado, um confronto militar, digamos assim, entre o Homem Sapiens Sapiens e o Homem do Neandertal, com a vitória dos primeiros e o desaparecimento dos segundos, teria condições  para deixar um traço que persistisse ao longo de dezenas de milhares de anos? Há, por outro lado, as notícias (provenientes da ciência) de que as duas espécies se cruzaram. Não temos notícias de guerra mas parece que há provas de amor inter-específico. Seja como for, gosto de imaginar que a nossa espécie não foi a única espécie humana que habitou o planeta. Isto pode ser lido como um exercício de narcisismo de um Sapiens Sapiens (a nossa espécie é tão bem equipada que sobreviveu às outras) ou como um aviso: até uma espécie humana pode desaparecer sem quase deixar rasto.

Justiça e sensatez


A absolvição do juiz Baltazar Garzón, no caso onde era acusado de prevaricação por ter investigado crimes cometidos durante o franquismo abrangidos pela amnistia de 1977, não anula a tensão surda que ainda existe em Espanha na sequência da guerra civil de 36-39 do século passado. A extrema-direita, agora que os compêndios de História lhe são desfavoráveis, tentou julgar a História na figura de um dos juízes que a tem protagonizado. Os familiares das vítimas do franquismo vieram para a rua em apoio de Garzón. O Supremo Tribunal, ao absolver o juiz, mostrou, porém, que a querela entre republicanos e nacionalistas, apesar de ainda forte, começa a perder sentido político no presente. A Espanha está mais preocupada com o futuro, se o tem, do que com o passado que teve. Uma condenação de Garzón abriria uma conflitualidade dentro da sociedade que a maioria dos espanhóis quer esquecida. Foi um exercício de justiça e de sensatez política.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Erland Josephson


Morreu hoje o actor Erland Josephson. Foi um dos actores preferidos de Ingmar Bergman e podemos também vê-lo em dois filmes de Andrei Tarkovsky. Foi também escritor (teatro, contos e poesia). A última vez que o vi, ainda um excepcional actor, foi no filme de Ingmar Bergman, Saraband, no papel de Johan. O Público elenca alguns dos filmes, todos obras primas, de Bergman interpretados por Erland Josephson: A Hora do Lobo (1968), Lágrimas e Suspiros (1972), Cenas da Vida Conjugal (1973). A Flauta Mágica (1975), Sonata de Outono (1978), Fanny e Alexandre (1982) e Saraband (2003). Hoje é um dia triste para quem gosta de cinema, fundamentalmente de cinema europeu. Erland Josephson mereceria, numa televisão de serviço público, um ciclo que permitisse rever a sua vasta obra.

Ivan Turguénev, O Primeiro Amor


O Primeiro Amor (1869) é uma das últimas obras do escritor russo Ivan Turguénev. Fará ainda sentido ler uma obra cujo ambiente social e modo de vida nada têm a ver com os nossos? Esta pergunta não se dirige ao carácter clássico da obra (vale a pena ainda ler os clássicos?), mas ao tema sobre o qual ela é construída, o primeiro amor. Serão ainda analogáveis as experiências dos primeiros amores actuais com aquela que é descrita no conto de Turguénev?

De certa maneira, a experiência do primeiro amor, no livro de Turguénev, é, ao mesmo tempo, a do último, um exercício de destruição da vocação romântica do coração. Nesta obra há uma leve reminiscência do Banquete de Platão, onde os vários convivas decidem fazer um discurso em honra do deus Eros. No caso do livro do escritor russo, depois de uma festa (supõe-se), ficam apenas três convivas. O anfitrião propõe que cada um faça a narrativa do seu primeiro amor. Chegam à conclusão que só Vladímir Petróvitch tem uma experiência que vale a pena ser contada. Ele, porém, recusa-se a narrá-la oralmente. Propõe-se escrevê-la e, posteriormente, lê-la aos amigos. A narrativa, também uma confissão, que o leitor tem à sua disposição é então o escrito onde Vladímir Petrovítch narra o seu primeiro amor.

Na casa de campo que a família ocupava, Vladímir, então com 16 anos, descobriu por vizinha Zinaída Kassékin, uma jovem princesa, cuja família estava empobrecida. Zinaída possuía, como a Penélope da Odisseia de Homero, uma corte de pretendentes, homens mais velhos e instalados na vida. A esta corte juntou-se o jovem Vladímir. Zinaída, inconstante, coquette, irreverente, entretinha-se no exercício de uma certa malevolência relativamente aos pretendentes, manipulando-os e mostrando-os no seu ridículo. A Vladímir, que se foi apaixonando intensamente por ela, tratava com condescendência inerente à diferença de idades. Há um momento, porém, em que todos os pretendentes percebem que o coração de Zinaída está tomado por alguém fora do grupo de pretendentes. 

A meio da narrativa, Vladímir conta duas conversas que simbolizam o núcleo central da intriga, são duas revelações do carácter das personagens envolvidas. Numa delas, o pai diz a Vladímir: "Apanha o que puderes da vida, mas não te deixes aprisionar; pertencer a si próprio - é essa toda a graça da vida". E quando o filho lhe falou em liberdade, o pai perguntou-lhe: "Mas sabes o que pode dar liberdade ao homem?", e, perante a pergunta do filho, respondeu: "A sua própria vontade, que também lhe dará o poder; o poder que é melhor do que a liberdade. Aprende a desejar e serás livre, e mandarás." Esta apologia, tão antikantiana, de uma vontade inclinada pelo desejo, marca já a presença de Schopenhauer e anuncia, de certa forma, Nietzsche. O importante, porém, é notar este desejo de domínio, este ser livre de prisões, esta independência muito diferente da autonomia da vontade, uma independência que vive da realização impassível do desejo e da vontade de poder e não da abstenção racional dos prazeres do mundo.

Por outro lado, uma  das confissões que Zinaída faz ao jovem Vladímir é fulcral para perceber o que está em jogo no amor: "Não, não posso gostar de alguém para quem olhe de cima para baixo. Preciso de alguém que me leve de vencida... Mas não hei-de encontrar ninguém assim, Deus é misericordioso! Não cairei nas mãos de ninguém, nunca!" O amor é sentido como uma fatalidade, como uma imperiosa e desejada submissão da mulher ao homem, mas não a qualquer homem. Só àquele que souber olhá-la de cima para baixo. O amor exige a mais pura desigualdade, e não é senão a realização de uma fatalidade.

O desenrolar da intriga conduz a um final psicanalítico avant la lettre. Vladímir descobre, depois do grupo de pretendentes ter constatado que a jovem princesa estava apaixonada, que o seu rival efectivo é o próprio pai. Foi a ele que Zinaída se submeteu e se entregou. Entregou-se a quem tinha por lema ser livre de todo o compromisso, aquele cuja vontade era mais forte que qualquer resistência. Na parte final da narrativa, o jovem Vladímir tem, sem que seja visto, a lição definitiva sobre o amor: "Zinaída endireitou as costas e estendeu a mão... Bruscamente, produziu-se aos meus olhos uma coisa inverosímil: o meu pai levantou o chicote, com que sacudia o pó da sua sobrecasaca, e ouviu-se uma chicotada brusca no braço nu de Zinaída. Foi a custo que me contive, que não soltei um grito; Zinaída estremeceu, olhou em silêncio para o meu pai e, levando lentamente o braço aos lábios, beijou o vermelhão que o chicote deixara. O meu pai arremessou o chicote para o lado e, subindo apressadamente os degraus, irrompeu dentro de casa. Zinaída virou-se e, com os braços estendidos e a cabeça dobrada para trás, afastou-se da janela..."

O primeiro amor de Vladímir não foi o seu amor por Zinaída, mas o amor do seu pai por ela, foi a lição de que o amor não passa de um jogo de poder e submissão, de uma vontade de poder e de um desejo de ser vencida, foi a revelação de uma moral em contradição com o espírito dominante do cristianismo, bem como dos movimentos emancipatórios da época e posteriores. Quarentão, aquando da escrita da narrativa, Vladímir Petróvitch continuava um solteirão. Esta é uma lição de amor para todos os tempos, mas não para todos os homens e mulheres. Destina-se apenas àqueles para quem o amor se pode interpretar literalmente como amor fati. E hoje em dia, numa época de igualdade e de ciência iluminada, quem crê num amor destinado?

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Os Cinco fazem 70 anos


Isto de estar com dor de garganta e um pouco febril é uma óptima desculpa para andar a flâner por aqui e por ali, sem nenhum objectivo pré-determinado. Nessas deambulações, encontrei no A Terceira Noite, de Rui Bebiano, uma nota sobre o septuagésimo aniversário do primeiro livro dos cinco, Os Cinco na Ilha do Tesouro. Como muita gente da minha geração (e de gerações anteriores e posteriores) li avidamente as aventuras dos Cinco. Era um tempo em que não havia praticamente televisão e, durante as férias e não só, havia um tempo infinito para ler. Os Cinco fazem parte dos livros da minha vida, embora não tenham sido os primeiros livros de texto corrido que li. E marcaram-me de tal maneira que, numa época onde a colecção Uma Aventura, de Isabel Alçada e Ana Maria Magalhães, dominava o mercado, insisti para que os meus filhos lessem em primeiro lugar os Cinco. O meu filho teve inclusive um belo Castro Laboreiro a que deu o nome de Tim. Setenta anos são muitos anos, mas a Ana, a Zé, o David, o Júlio e o Tim pertencem à esfera do Olimpo, são deuses sobre os quais  Cronos não tem império.

Poema 25 - A saga deste Inverno sem chuva


A saga deste Inverno sem chuva
Cobre o horizonte amarelo dos campos.
Algumas aves planam no céu tranquilo
E ao longe crepitam os primeiros fogos.

Olho da janela o incêndio da tarde,
Enquanto o coração pulsa inebriado
Pela recordação das tuas mãos incertas,
Exaustas, entregues ao capricho do vento.

Tudo crepita na luz do anoitecer.
As ruas transfiguradas cobrem-se de faúlhas,
São jardins onde as estrelas se demoram

Para que não venha tão cedo a manhã.
Acordado, na noite sem destino, espero
A hora em que me venhas adormecer.

Ideias destiladas


O Partido Socialista tem agora um Laboratório de Ideias, para o qual tem vindo a convidar certas personalidades com prestígio na sociedade civil. Estes exercícios (a que os partidos gostam de recorrer) sempre me pareceram ociosos. Servem para evidenciar quem aceita (por exemplo, o Prof. Júlio Pedrosa) ou quem rejeita (o Prof. Manuel Carrilho), mas do ponto de vista prático tudo isto não passa de pura irrelevância. No entanto, serve para mostrar uma coisa. Os partidos, mesmo os do arco do poder, conhecem mal o país, não sabem minimamente o que fazer e, o mais sintomático do espírito do tempo, não têm quaisquer princípios que os guiem na acção política. Por isso sentem-se coagidos a este tipo de festividades. Estas, dignas de verdadeiros escuteiros, podem ajudar a conquistar o poder (o sonho do qualquer líder da oposição), embora em Portugal o poder não se conquiste. Cai nas mãos de quem o apanha por má conduta da governação anterior. Pressinto já o frémito que perpassa pelo país à espera das ideias que tão eminente laboratório há-de destilar. 

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Iluminismo e Facebook


Em Elogio da Sombra, de Junichirō Tanizaki, um ensaio de 1933 (de que espero falar aqui um dia destes), referia que o que diferenciava o Oriente do Ocidente era a questão da sombra e da luz. Os ocidentais estão sempre preocupados com a luz, com o acto de iluminar e de eliminar a sombra, enquanto os orientais, nomeadamente os japoneses, acentuam a dimensão de sombra, de velamento em que vivem. Isto vem a propósito desta notícia do Público, que nos explica, a partir de um estudo da Microsoft, que um perfil do Facebook pode dizer mais aos empregadores do que um entrevista. O iluminismo enraizou-se de tal maneira no mundo ocidental que não há recanto que não seja iluminado.  Não é que os orientais não usem o Facebook. A questão está em que ele foi inventado por ocidentais e não por orientais. 

As entrevistas para obtenção de emprego são prolongamentos do iluminismo, onde o entrevistador tenta lançar luz (a luz de uma razão calculadora) sobre o carácter do entrevistado. A notícia, porém, permite perceber outra coisa para além da superior eficácio do perfil do Facebook relativamente às entrevistas tradicionais. Permite compreender que todos nós, ocidentais, de alguma forma nos oferecemos à luz. A sombra, mesmo a nossa própria sombra, repugna-nos. O Facebook, rede social que uso, é uma forma de me dar à luz, sem nunca ter pensado muito no assunto. Prestar-se a ser iluminado é uma pulsão tão forte, num ocidental, como iluminar os outros e o mundo que nos rodeia. É evidente que fica por pensar o verdadeiro significado desta nossa propensão para a luz, bem como o temor da sombra.



José Afonso


A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

Fez ontem 25 anos que morreu José Afonso. Vale ainda a pena reflectir sobre a música do mais importante cantor português de intervenção. Divido a reflexão em duas partes. Uma relativa aos aspectos menos interventivos da sua obra. Outra focada na música de intervenção.

São as canções de José Afonso menos comprometidas com a intervenção política que mais me interessam e agradam. No entanto, seríamos ingénuos se olhássemos para esse cancioneiro desprovido de qualquer valor político. Pelo contrário, ele remete para a recuperação da música popular portuguesa, fornece um fio de ligação à nossa identidade, recriando-a e reinventando-a. Há, no século XX, três figuras essenciais da nossa música popular. Amália Rodrigues, José Afonso e Carlos Paredes. Neles, podemos escutarmo-nos enquanto povo, enquanto comunidade de destino. Nesta área, José Afonso, como Amália e Paredes, é absolutamente extraordinário. A generalidade dos álbuns feitos antes do 25 de Abril remetem para a raiz mais funda da nossa cultura. São um exercício puro de patriotismo.

A parte que menos gosto na obra de José Afonso é a de intervenção. Aparentemente é datada. No entanto, se ouvirmos canções como “Coro dos Tribunais”, “Vampiros” ou “Como se Faz um Canalha” percebemos que há ali qualquer coisa de universal. Chacais, vampiros e canalhas são produzidos continuamente e a grande velocidade, na generalidade das situações sociais. Não tenho qualquer ilusão sobre um regime político em que a esquerda governasse sem oposição de direita e no qual a economia de mercado fosse destruída. Não faltariam aí, como não falta na vida político-social de hoje, chacais, vampiros e canalhas. Por isso, não partilho da utopia política de José Afonso. Mas a pureza que ele pôs no seu canto e na forma como se entregou à política são importantes fontes de inspiração para a mobilização popular contra o radicalismo e fanatismo dos actuais senhores do mundo.

A vida social, de forma crua, não é mais que o confronto entre forças opostas. O importante seria que as elites políticas tentassem gerar equilíbrios sociais, contribuindo para a paz pública e a coesão das comunidades. Sabemos que, desde a vitória do eixo Thatcher-Reagan, os políticos ocidentais defendem apenas uma parte da sociedade, a mais pequena e a mais poderosa, em detrimento da imensa maioria. Ora é importante que esta imensa maioria se faça ouvir para obrigar a novos reequilíbrios. A música de José Afonso, desse ponto de vista, continua a ser profundamente inspiradora.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Pensar no fio da navalha


Recebi hoje o meu exemplar, saído há dias em França, do livro de Alain Badiou sobre a República de Platão. Traduzo os dois primeiros parágrafos.

Isto durou seis anos.
Mas porquê? Porquê este trabalho quase maníaco a partir de Platão? Porque é dele que nós hoje temos, prioritariamente, necessidade, por uma razão precisa: ele originou a convicção que governar-nos no mundo supõe que algum tipo de acesso ao absoluto nos seja aberto. Não porque um Deus veraz nos inclina para isso (Descartes), nem porque somos nós mesmo figuras historiais do tornar-se-sujeito desse Absoluto (Hegel assim como Heidegger), mas por que o sensível, que nos tece, participa, para além da corporalidade individual e da retórica colectiva, das construção das verdades eternas. [Alain Badiou (2012). La République de Platon. Paris: Fayard] 

É natural que um filósofo de extracção marxista, como Alain Badiou, se interesse por Platão e pela questão precisa que justifica este livro, a da necessidade, para o governo dos homens, do reconhecimento de verdades eternas, que sejam o padrão pelo qual confrontamos as governações humanas e a justiça dessas governações. No fundo, Marx ainda se inscreve numa longa tradição que se inicia em Platão. A perspectiva de Platão foi construída em debate e contradição com o relativismo céptico dos sofistas, com a ideia de inexistência de um padrão absoluto de medida que permitisse aferir da justiça ou injustiça do governo dos homens. Hoje em dia, as teorias contratualistas de orientação liberal, acabam por reactivar a perspectiva sofista, reduzindo tudo à célebre divisa de Protágoras: O homem é a medida de todas as coisas.

E para mim onde está o interesse de Platão, interesse que me levou a comprar o livro de Badiou? Está numa necessidade funda do meu próprio ser. Está na necessidade de casar o meu cepticismo e a minha necessidade de absoluto. De certa maneira, sou um céptico que se revolta contra o seu cepticismo. Tudo o que é humano me provoca um profundo cepticismo. A finitude, os limites e a perversão dos homens há muito que me retiraram qualquer ilusão sobre a bondade absoluta dos seus actos. Há, no entanto, qualquer coisa que mitiga este cepticismo, a possibilidade de abertura para o absoluto, para as verdades eternas. Dito de outra maneira, para Deus. E é esta abertura que me interessa. Ela significa uma possibilidade - uma possibilidade precária - de moderar a injustiça entre os homens. 

O marxismo perdeu demasiado tempo a desmontar a ilusão da religião (ópio do povo) e de Deus. Devido à sua natureza de cristianismo de pés para o ar, o marxismo não percebeu o essencial. Para que haja justiça entre os homens é preciso Deus (ou o Absoluto ou a verdade eterna), esse padrão absoluto pelo qual julgo as acções humanas. Mesmo que Deus não exista, Ele precisa de ser inventado e reinventado. Esta reinvenção é sempre um exercício de cepticismo e de revisibilidade. Cepticismo sobre a imagem de Deus criada e revisão que conduza a uma nova imagem, numa dialéctica infinita de cepticismo e necessidade de absoluto. É preciso pensar no fio da navalha, sem se afundar num cepticismo justificador de todas as barbaridades nem num dogmatismo sem freio. É aqui, pelo menos para mim, que a Filosofia faz sentido. Só no fio da navalha o pensamento se torna decisivo.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Três visitas ao admirável mundo novo


Uma das coisas que me fazem ser leitor do Público é a atenção dada à ciência. Agora, na edição online, na página inicial tenho links para três notícias diferentes. São sempre notícias que me reconfortam, mesmo se algumas me deixam em pânico. Não é o caso de hoje. Os desenhos acima referem-se a uma descoberta de arqueólogos brasileiros da gravura mais antiga do novo-mundo. Informam que é um corpo antropomórfico esguio datado de há 9500 a 10 400 anos. Teria sido produzida por grupos de recolectores-caçadores. A hipótese é que seja uma manifestação simbólica ligada à fertilidade. Nós temos a Senhora do Ó e eles teriam aquela imagem. 


Esta planta que vê aqui tem 30 000 anos e foi ressuscitada por cientistas russos. Conseguiram fazer crescer uma flor a partir de material vegetal congelado há 30 000 anos e que tinha sido guardado em buracos por pequenos mamíferos da época. Aqui estamos mais avançados que no Brasil. Ali descobrem-se símbolos, mas na Rússia ressuscitam-se seres.


Para acabar, o telescópio Hubble descobriu um novo tipo de planeta com mais água do que a Terra, e fica só a 40 anos-luz. Aborrecida é a temperatura estimada à superfície, uns 230º. O mais surpreendente é a possível existência de materiais exóticos, tais como gelo quente e água superfluida. Isto deve-se à conjugação de elevadas temperaturas com elevadas pressões. Um verdadeiro admirável mundo novo. Quando a água arrefecer, talvez lá possamos ir tomar banho.

Como se vê, a actividade científica não pára e o conhecimento aumenta todos os dias, movido por um glorioso e abnegado exército de cientistas. Sentado no meu escritório sinto-me reconfortado. Não sei bem porquê, mas sinto. Por vezes, passa-me pela cabeça que a generalidade do conhecimento produzido é inútil e que não passa de um exercício da hybris humana. E toda hybris é uma insubmissão e uma violação dos direitos dos deuses que se paga bem caro, como sabiam os tragediógrafos gregos. Depois, lembro-me que vivo num mundo cristão, e que o Deus do Novo Testamento é infinitamente misericordioso e que perdoará tudo isto. O reconforto desce sobre mim e adormeço, bocejando.

Bendita seria uma Quaresma anual


Começa hoje o tempo de Quaresma. Quando era novo, achava o tempo de Quaresma uma depressão. Depois, tornou-se-me indiferente, com a agradável particularidade de anunciar e cumprir umas sensatas férias pascais. Hoje em dia, a Quaresma tem, aos meus olhos, imensas virtualidades. Foi um crime tê-la votado - mesmo entre muitos e muitos cristãos - ao desdém e ao abandono. Diria mesmo que foi um crime ambiental.

O ano é marcado pelas festividades do Natal e Ano Novo, do Carnaval (felizmente acabado ontem) e as recém eternas férias de Verão. Tudo (o Natal tornou-se o que se sabe) momentos de exterioridade, de exibição mundana, de irreflexão. Tempos de excesso. Não de um excesso dionisíaco, mas de um excesso pindérico feito de prendas inúteis, reveillons absurdos, desfiles carnavalescos que nos dão vontade de chorar, e de obscenos dias de praia, onde corpos que deveriam estar tapados, desde a planta dos pés aos cabelos, julgam ter o dever de partilhar o seu à vontade com os olhos dos incautos que passam por uma praia. Como se vê, tudo poluição. Pior que as chuvas ácidas ou uma maré negra. 

Ora a Quaresma é um tempo de sacrifício e de conversão espiritual. As igrejas cristãs propõem penitência, meditação, jejum, esmola, oração durante os quarenta dias de Quaresma. Faz todo o sentido. Devíamos todos fazer penitência pela sociedade que criámos, pelos hábitos idiotas que adoptámos, pelas pretensões risíveis dos nossos egos. Fundamentalmente, deveríamos fazer penitência por permitir que a estupidez tome conta do mundo. A estupidez não é um pecado, mas a complacência com ela é um dos piores e de irremissibilidade mais difícil. Por outro lado, andamos todos sobre-alimentados, mesmo em época de crise como esta, as pessoas, para além do sexo, não pensam noutra coisa senão em comer. O jejum parece-me uma medida ecológica e económica. Poupa o ambiente, faz bem à saúde, e se não faz bem à economia também não fará mal (pois se nem os economistas sabem o que faz bem ou mal à economia, como seria eu a saber?). A esmola é um exercício virtuoso. Aprendi-o com o meu pai, que não era religioso, mas que raramente se furtava, nesses tempos em que havia pobres de pedir, a esse dever de consciência de dar alguma coisa a quem o interpelasse. Tem a vantagem de ser também uma virtude social, pois é uma forma de distribuir rendimentos. Eu sei que o Estado tem o dever disto e daquilo, eu sei. Mas se o Estado não o faz alguém tem de o fazer.

Aquilo que me agrada mais é a ideia de meditação e oração, fundamentalmente se a oração for silenciosa, ou então realizada nos lugares reservados para o efeito. Se Portugal inteiro meditasse e orasse, quantas palavras idiotas nos seriam poupadas? Quantas decisões desastrosas das mentes brilhantes que nos governam não chegariam sequer a cintilar nos neurónios de pessoas como Passos Coelho ou Miguel Relvas, para não falar do Vítor e do Álvaro. Meditação e oração seriam um exercício de defesa do meio ambiente, fariam parte de uma ascese da palavra que pusesse fim à verborreia reinante. Seriam a anunciação do paraíso na Terra. Como é que uma pessoa como eu, que não caminha para novo, pode deixar de amar os tempos de Quaresma? 

Sim, o Natal pode ser quando um homem quiser, mas a Quaresma, meu Deus, deveria ser obrigatória todo o ano. Por uma questão ecológica.



Poema 24 - Quarta-feira de Cinzas


As flores trazidas pela manhã secaram.
São agora uma antecipação de cinza,
O restolho que cobre a face,
A breve memória de um jardim.

Não há nelas o sortilégio da música,
Nem o aveludado de uma pele,
Que se guarda na memória
A vida inteira.

Do perfume que a terra lhes deu,
A casa não reteve vestígio.
Ao júbilo sucede a nostalgia,

E depois chega a hora do vento,
E tudo se desvanece,
Quando o lobo crocita na madrugada.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Preparação cultural do exército


Os EUA, com a longa experiência de invasões a que se têm dedicado desde o fim da II Guerra Mundial, já tinham tido tempo de aprender. Hoje em dia, as guerras não são apenas questão de força militar, são também jogo comunicacional, que tem por pano de fundo a História e a Cultura. Assim sendo, seria útil que os militares americanos, desde os soldados aos generais, para além da preparação militar e estratégica, tivessem aulas de História e de Antropologia Cultural. Eu sei que homens que são homens não ligam a esses coisas menores da história e das culturas dos povos, mas talvez evitassem pedidos de desculpa como este. Nós sabemos que o mundo muçulmano é muito susceptível com os seus símbolos religiosos (embora o mesmo não se passe com os símbolos religiosos dos outros), mas parece que os soldados americanos ainda não perceberam o assunto. Queimar cópias do Alcorão (e não o Corão como grafa o Público), mesmo que estejam no lixo, não é recomendável para captar a indiferença (a simpatia, essa é impossível) de muçulmanos ocupados. Portanto, ou os EUA se deixam de invadir países por tudo e por nada, ou preparam as suas tropas do ponto de vista cultural. Não faltarão historiadores e antropólogos no desemprego.

Memória, uma agência de falsificação


Há dias, ouvi no programa de Joel Costa, Questões de Moral (Antena 2), uma história de Buñuel que liguei, de imediato, a uma experiência minha. Parece que Luis Buñuel contou, várias vezes, aos amigos o casamento pela Igreja do intelectual marxista Paul Nizan. O casamento teria sido em Saint-Germain-des-Prés, e Buñuel descrevia o altar, a música, o padre, os convidados, entre eles Jean-Paul Sartre, que teria sido o padrinho. Um dia chegou à conclusão que aquela memória era falsa. Toda esta história incongruente, da qual Buñuel possuía vívida imagem, nunca acontecera, não sabendo o cineasta explicar como formou tão clara memória do facto não acontecido.

Também eu possuo uma memória vívida de uns dos meus bisavós maternos, uma memória que os coloca lado a lado à soleira de uma porta. Mas olhando para a idade que eu tinha quando eles morreram, eu não posso ter esta imagem idílica. O problema maior não reside na falsidade da memória, da sua infinita capacidade de falsear o acontecido. Todos sabemos isso. O problema maior está na nossa identidade. A identidade, essa instância conservadora do nosso eu, é, fundamentalmente, construída pelas redes memoriais que vamos erguendo. São elas, as redes memoriais, que permitem conservar, na consciência e na representação social perante os outros, os traços que afirmam e conservam a nossa identidade.

Se descobrimos, porém, que a memória é uma agência de falsificação de documentos, então o mais certo é que a nossa identidade seja falsa, não havendo Bilhete de Identidade ou, na versão mais actual, Cartão de Cidadão que nos salve. A identidade não passará de uma instância de conservação construída de forma a produzir uma ficção congruente. Isso significa, em primeiro lugar, que o conservadorismo, essa forma de prolongamento de uma identidade no tempo, não passa de um exercício ficcional fabricado sobre falsificações da realidade e que todo o nosso esforço identitário é sempre uma inovação de quem pretendemos ser, com a aparência de que há uma linha de continuidade temporal. Em segundo lugar, tudo isto significa que cada vez que nós olhamos para o que somos, para essa identidade que conserva o nosso ego, devemos seguir o conselho, dado pelo escritor romântico inglês Samuel Taylor Coleridge, de suspender a descrença, o que significa aceitar como verdadeiras as premissas de uma ficção, mesmo que sejam impossíveis ou contraditórias.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Carne em laboratório


Um projecto holandês visa a produção de carne em laboratório a partir de células estaminais de um certo animal. O artigo do Público descreve os possíveis benefícios: diminuir as terras ocupadas pela agricultura, diminuir o abate de animais, diminuir as emissões de gás metano para a atmosfera, controlar laboratorialmente a carne produzida para que ele apresente determinadas qualidades benéficas para a saúde. O projecto está ainda em fase embrionária, embora já tenham sido produzidos pequenos pedaços de músculo. 

Pode-se questionar a qualidade do sabor da carne  assim produzida ou o significado metafísico deste processo de engenharia genética. Tudo isso pode ser interessante, mas há algo que é menos visível e que talvez seja mais pertinente pensar. Está ligado à relação dos processos científicos ou técnico-científicos com a ordem social e política. Talvez o essencial seja perceber o carácter puramente mitológico da autonomia das esferas da ciência e da política. Cada novo território que o acto de descoberta científica - e de invenção técnico-científica - traz é um território que, em última análise, vai ficar sob a jurisdição da regulação política (ou da ausência dessa regulação, o que não deixa de ser um acto político). Os actos científicos são, por essência e ao rasgar novos territórios para a regulação política, actos políticos.

Há contudo uma outra questão que é interessante e pouco pensada, apesar de aparentemente conhecida. O impacto da ciência sobre a sociedade e o poder. Se lermos os comentadores políticos, nunca é pensado, quando se reflecte sobre o o poder e as suas mutações, o papel da ciência e das técnicas dela derivadas sobre o próprio poder. Mas imaginemos que este projecto holandês tem sucesso científico e técnico e, posteriormente, valor industrial. A reconfiguração da gestão da população torna-se de imediato necessária. O próprio poder é confrontado e condicionado pelo novo dado proveniente da ciência. O que cabe compreender é como a própria ciência acaba por transformar as problemáticas do poder. Um outro passo, porém, é ainda mais importante. Como é que o impacto da ciência transforma as tecnologias do poder, para falar à maneira de Michel Foucault.

Tirésias - a cegueira do presente


Tirésias é um famoso profeta e adivinho de Tebas. Famoso pelas suas intervenções junto de Ulisses, na Odisseia, ou pelo seu papel de agente de revelação na tragédia de Sófocles, Édipo Tirano. Tinha a particularidade de ser cego. Como em quase tudo, as fontes do mito de Tirésias não coincidem. Umas indicam que ficou cego porque viu Palas Atena a banhar-se numa fonte. O sentido desta versão é claro: Os homens não suportam ver a divindade tal como ela é, daí a cegueira ter atingido Tirésias. Outras fontes indicam uma história um pouco mais complexa. Tendo sido chamado a arbitrar uma disputa entre Zeus e a sua mulher, Hera, (disputavam sobre quem teria mais prazer no amor sexual, defendendo cada um dos deuses que era o outro o que extraía mais prazer do amor) Tirésias - que tinha sido mulher durante sete anos e possuía uma perspectiva que abarcava os dois pontos de vista - disse que se dividisse o prazer dado pelo amor erótico em dez partes, nove caberiam à mulher e uma ao homem. Hera, derrotada, cegou-o. Zeus, compungido, deu-lhe a capacidade de previsão.

Prever significa, literalmente, ver antes, invadir o território do futuro, tornar próximo o distante. O núcleo central do mito de Tirésias reside na tensão entre a cegueira para o presente, para aquilo que se dá na sua presença imediata, e a capacidade de ver para além do que está presente. A condição para que se preveja o futuro é o corte com o fascínio que o presente exerce sobre a consciência. Édipo, atormentado com o que vem do passado, foge e, em Tebas, embrenha-se no presente. O presente, no seu esplendor, fascina-o. Preso nesse fascínio, como todos nós, Édipo é impotente para prever o futuro. Pagou, quando o futuro se tornou presente, duramente o fascínio da presença. 

É o que acontece a todos nós. Neste nós inclui-se aqueles que dirigem os destinos de uma comunidade. É preciso não esquecer que Édipo era o tirano (ou rei, conforme as traduções) de Tebas. Na acção governativa, os políticos têm os olhos bem abertos para o que é presente (dão-lhe o nome de problemas). Mas esse estar de olhos abertos significa estar fascinado com o que se manifesta, significa estar cego para aquilo que o anjo da história prepara no além. As tragédias de Édipo ou de Agámemnon seriam evitadas se eles fossem cegos para o presente e penetrassem, como Tirésias, no território do futuro. Mas não era essa a sua condição. Também, hoje em dia, os governantes, de olhos tão abertos para o presente, não pressentem a tragédia que o futuro tem para trazer. Antes fossem cegos.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Poema 23 - O amor é um abraço mortal



O amor é um abraço mortal
A que as vítimas se entregam,
Pensando, no êxtase prometido,
Um caminho para o paraíso.

A morte vê feliz e fatal
Os corpos dementes que navegam
Em busca do segredo perdido,
Cegos  para o funesto sorriso.

A reacção em Gouveia


O que se disse aqui ontem a propósito de António José Seguro aplica-se, com mais propriedade ainda, ao ocorrido em Gouveia com Pedro Passos Coelho. As pessoas perceberam o essencial. O papel das elites políticas é roubar-lhes qualquer espécie de ilusão sobre o futuro, extinguir qualquer resíduo de esperança. O que difere Seguro de Coelho é apenas o sentimento com que encaram o seu papel. Seguro faria a mesma política mas sentiria imensa pena, e falaria com ar contrito aos portugueses. Coelho acredita no que está a fazer, acha mesmo que as classes médias e os trabalhadores devem ser reduzidos à condição de uma multidão de indiferenciados, e fala com ar inchado de um justiceiro. A reacção em Gouveia, mais que os apupos a Cavaco em Guimarães, abre um novo patamar de oposição aos desígnios do governo. Por este andar, Passos Coelho vai rezar para que o senhor Arménio Carlos e a CGTP ponham mão no assunto. O principal perigo para a governação de Passos Coelho não virá das zonas onde o Partido Comunista tem influência. Virá mesmo do lugar onde o PSD manda, virá do desespero daqueles que acreditaram nas mentiras que Passos Coelho teve necessidade de dizer para ser eleito. Contrariamente ao que muitos crêem, eu não acredito que sejamos um povo de brandos costumes. O século XIX e o primeiro quartel do XX estão aí para o mostrar. O desespero em que as pessoas estão a ser lançadas não promete nada de bom.

Lev Tolstoi, A Sonata de Kreutzer


O que surpreende na novela de Tolstoi, A Sonata de Kreutzer, será menos o tema tratado - o ciúme - que a questão da confissão e as implicações que esta possui. Aparentemente, tudo gira em torno da vida de um casal, que desde muito cedo descobre a tensão entre o prazer físico que proporcionavam um ao outro e a insuportabilidade da vida comum. Nesta tensão, o ciúme do homem tem um papel preponderante. A estratégia narrativa da novela assenta no relato da confissão, feita numa viagem de comboio, do protagonista ao narrador. Todo o relato é um exercício confessional, onde a alma torturada do que se confessa se exterioriza e se mostra numa tentativa para alcançar a verdade dos seus actos (desde as cenas de ciúme até ao assassinato da mulher).

Apesar de juridicamente absolvido (um crime de honra ainda permitido naqueles dias), o espírito do homem sente uma compulsão terrível para a exteriorização. A confissão não é, pelo menos em primeiro lugar, a busca de uma absolvição ou de uma compreensão de outrem. Ela é a objectivação da vida, o torná-la exterior para a poder captar na sua realidade objectiva. Confessar-se é projectar para fora de si aquilo que é do foro íntimo, trazê-lo para o espaço público, aliená-lo da vida interior, para o poder captar sossegadamente - não por acaso, o protagonista adormece após a confissão - e, no estranhamento assim conquistado, afastar de si uma parte de si.

O génio de Tolstoi evidencia-se, nesta novela, de múltiplas maneiras, desde a descrição das cenas de ciúme até à caracterização das personagens, passando pela exposição das concepções ideológico-sociais daquele que se confessa. O mais interessante, porém, é o jogo da confissão estar assente todo ele na não confissão. Na hora da morte, no momento em que o protagonista esperava a confissão da mulher, do reconhecimento que teria havido uma traição e que tudo aquilo não era apenas o fruto de uma imaginação exacerbada, ela não o faz. O segredo - mesmo que fosse o segredo de não haver qualquer segredo - não foi revelado, ficou fechado na vida íntima da mulher, e nem mesmo a iminência da morte a conduziu à necessidade de se exteriorizar num acto confessional.

Publicidade e intimidade confrontam-se, deste modo, na novela de Tolstoi, como modos eminentemente diferenciados de conviver consigo mesmo. A confissão é uma invenção masculina e responde a essa necessidade de publicar para suportar, e suportar porque compreende aquilo que agora se tornou público e estranho. A razão justifica, apaga e apazigua. Na mulher tudo é mais secreto, tudo fica fechado no coração. E isto apenas pelo motivo de que a verdade, a sua verdade, é irrevelável. Não porque a queira ocultar, mas porque não há maneira de a tornar pública. A verdade masculina é sempre confessável; a feminina é sempre secreta. Os homens até a vida íntima precisam de torná-la exterior. As mulheres, mesmo as mulheres públicas, só possuem vida interior.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Um exercício de desilusão contínua


Este tipo de discurso é, ao mesmo tempo, inevitável e inútil. O que pode dizer o líder da oposição sobre o governo? Nada, ao não ser ociosidades idênticas às que disse o dr. Seguro. A inutilidade advém, todavia, do facto de o princípio de esperança ter caducado enquanto princípio político orientador da acção governativa. Os governos não têm por finalidade dar esperança às pessoas, mas o contrário. A sua função é retirar-lhes a esperança ou qualquer outra ilusão sobre o futuro. A esperança fica guardada para a religião. A política tornou-se, no mundo global, um exercício de desilusão contínua. Aquela injunção de Passos Coelhos para que os portugueses não sejam piegas não foi um acto falhado, mas a expressão clara do fim do princípio de esperança e a consciência nítida disso. Seguro, como primeiro-ministro, não poderia dizer coisa substancialmente diferente.

D'Annunzio e o ideal de uma nova oligarquia


O Estado não deve ser mais que uma instituição perfeitamente disposta para favorecer a elevação gradual de uma classe privilegiada para uma forma ideal de existência. Sob a egualdade economica e politica a que aspira a democracia, vós outros os encaminhareis a formar uma nova oligarchia, uma nova escola de força; e conseguireis, antes ou depois domar as multidões em vosso proveito. Não vos será muito difícil, na verdade, reconduzir a grey à obediência. As plebes conservam-se sempre escravas e teem uma nativa necessidade de estender as mãos ao vencedor. Jamais existirá n'elles, até ao fim dos seculos, o sentimento da liberdade (...) [Gabriele D'Annunzio, As Virgens, (trad. de Vasco Valdez), Livraria Editora Guimarães, Lisboa, 1905], retirado do contra mundum

Gabriel D'Annunzio foi um dos precursores do fascismo italiano, um intelectual que influenciou decisivamente Benito Mussolini, e um dos escritores mais importantes de Itália, representante da corrente estética do decadentismo. Mussolini ascende ao poder em Outubro de 1922, mas o romance onde se encontra a citação acima apresentada, Le vergini delle rocce, data de 1896. Este tipo de ideias era extremamente popular à época. Um jurista italiano, com um importante papel no desenvolvimento da criminologia, Raffaele Garofalo, na sua crítica ao socialismo, não defendia coisa diferente. Entre nós é Júlio de Matos que é um dos defensores deste tipo de elitismo, uma defesa fundada na leitura de Garofalo e de Herbert Spencer, com o darwinismo social como pano de fundo. 

No ambiente da época, o uso ardiloso da democracia para fundar o poder dos mais fortes era uma ideia corrente. O que está por detrás deste tipo de discurso - discurso que se fundava numa estética - é a recusa do cristianismo, fundamentalmente da ideia de livre-arbítrio. Este é substituído pela ideia de um destino previamente traçado, mas que cumpre realizar na história. Tudo isto conduziu a uma dada esteticização da vida política, onde a força era o elemento central do fenómeno estético. O fascismo e o nazismo são os rebentos destas ideias.

O fim da guerra, com a derrota das potências do eixo, deixou estas ideias em estado larvar. A retórica democrática evitou o louvor das novas oligarquias. Não deixou, todavia, de as sustentar e de permitir que elas cortassem os laços com as plebes democráticas, para falar ao gosto de D'Annunzio. Se durante décadas, nas sociedades ocidentais, se viveu sob a impressão de que o destino de cada um dependia do mérito fundado no livre-arbítrio, hoje em dia, as pessoas sentem, atónitas e estupefactas, o regresso de uma realidade onde o destino parece levar de vencida a crença no livre-arbítrio. As potências que dominam as vidas privadas, com os seus desejos e aspirações, não parecem comover-se com o hipotético mérito de cada um. 

Cada vez mais, o lugar social onde se nasceu é determinante do tipo de vida que se vai ter. D'Annunzio, em 1896, estava convencido que jamais existiria, nas plebes, o sentimento de liberdade. Hoje, as pessoas que constituíram as amplas classes médias estão a começar a perceber que o sentimento de liberdade em que viveram durante algumas décadas não passa de uma ilusão. Mais lentamente ou mais rapidamente (quanto mais na periferia mais rápido), essas classes médias estão a retornar à sua condição plebeia. No fundo, o ideal de D'Annunzio, Garofalo, Spencer ou Júlio de Matos nunca foi abandonado. Não é por acaso que o cristianismo, apesar de tudo, sempre teve má fama. O livre-arbítrio é um inimigo do fatalismo pagão subjacente a estas correntes.

Pontos de fuga


Nas sociedades tradicionais, a vida política possuía, na religião, uma espécie de ponto de fuga. Este ponto de fuga tinha duas funções. Por um lado, retirava as comunidades da pura imanência, do fecho sobre si mesmas. Por outro, constituía, devido à profundidade aberta para o alto, para o absoluto ou para o divino, a fonte de legitimidade política. Se se tomar em consideração a cidade-estado grega, o culto religioso tem um papel central na vida da cidade, e religa a comunidade às potências divinas que gerem o cosmos.

O que marca a Modernidade é  um processo de fechamento da comunidade em si mesma. O processo de fechamento à transcendência terá sido iniciado no Renascimento. O absolutismo é um passo decisivo que, de certa maneira, prepara os regimes constitucionais. A transcendência é convertida em pura imanência, a comunidade política justifica-se a si mesma, e a fonte da legitimidade passa a residir, primeiro no monarca absoluto,  depois no povo. O ponto de fuga que existia desapareceu. A abertura para o infinito passou a não ter sentido, a questão da transcendência passou a ser um assunto do foro íntimo de cada um.

No entanto, estamos a descobrir uma outra realidade. Um novo ponto de fuga está a emergir com o actual desenvolvimento da economia global. Este já não abre para o alto, para o absoluto, mas para as flutuações e humores do mercado global. A ilusão moderna da possibilidade de comunidades puramente imanentes, sem referência a uma instância superior de legitimação, mostrou-se na sua falsidade. A imanência republicana (mesmo a dos regimes monárquicos constitucionais) dá lugar a uma nova transcendência. O mercado global constitui o novo ponto de fuga que legitima e justifica as opções políticas. A casta sacerdotal, que mediava a relação da comunidade com o sagrado transcendente, foi substituída pela casta dos economistas pagos pela nova divindade, que assumem tanto o papel de pregadores evangélicos como de gestores dos interesses do novo deus.

Como Deus, o mercado está em toda a parte e cuida de nós. Isto significa não tanto o amor misericordioso, mas a prática de um pai tirânico que pune qualquer relutância relativamente à sua virtude e bondade. Por isso, o povo deixou de ser a fonte de legitimidade do poder político, como o demonstram os casos da Grécia e de Itália. As comunidades podem escolher os seus governantes desde que estes se submetam à vontade inefável e infalível do mercado global. Qualquer esboço de revolta contra esta nova transcendência é severamente punida. Em princípio, pelo corte de financiamento ou pela substituição de governantes (agora não mais que curadores dos interesses do mercado). Em caso extremo, pela intervenção militar.

Se a transcendência religiosa abria o destino dos homens para a possibilidade de um paraíso extra-terreno, a nova transcendência promete, e cumpre, um inferno à medida dos desejos de cada um. O novo ponto de fuga não é para o alto, mas para baixo, cada vez mais baixo, infinitamente mais baixo. 

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

O equívoco do senhor cardeal


O discurso do novo cardeal português, Manuel Monteiro de Castro, é o espelho fiel da dificuldade da Igreja Católica lidar com a modernidade. Refere que o maior problema de Portugal é o "pouco apoio que o Estado dá à família" e que "a mulher deve poder ficar em casa, ou, se trabalhar fora, num horário reduzido, de maneira que possa aplicar-se naquilo em que a sua função é essencial, que é a educação dos filhos" (Público). Vou dar de barato aquilo que indignará, por certo, as mentes mais feministas. Hoje em dia, nem mesmo a Igreja Católica, deveria permitir-se a esta distribuição de funções segundo a essência dada pelo sexo. É evidente que as funções do homem e da mulher são diferentes, não porque sejam funções diferentes, mas porque são realizadas de forma diferente. A função essencial da mulher não é educar os filhos, mas ser mulher em tudo o que faz e não apenas na educação dos filhos, como a função do homem é ser homem em tudo o que faz, o que deve incluir a educação dos filhos. Seria bom que os cardeais pensassem as coisas deste ponto de vista, embora como não possuem (maldita polissemia) mulheres, talvez lhes falte o saber de experiência feito. Mas isto é uma mera conjectura.

Por outro lado, o senhor cardeal parece completamente deslocado do mundo em que vivemos. As forças que comandam a economia - e que colonizaram por completo a política - não querem saber da educação dos filhos de ninguém - excluindo a dos seus - para nada e, por isso, o Estado está a retirar-se de tudo o que pode criar um ambiente onde a família seja protegida. Os Estados não mandam nada e não têm um tostão para proteger a comunidade e as famílias que a compõem. O Estado vive para satisfazer as pretensões daqueles que comandam os mercados, para - como estamos a aprender em Portugal - limpar todos os obstáculos que se levantem à quase escravidão das pessoas e à livre acção do capital. Como diria um membro do actual governo, o senhor cardeal vive numa zona de conforto. Isso não lhe permite perceber que as suas palavras não fazem qualquer sentido perante a ignóbil realidade onde somos obrigados a viver. O problema de Portugal, como o do resto do mundo, reside nos valores que tomaram conta da política e da sociedade, valores que colocam a produção, venda e consumo de mercadorias muito acima do valor da vida humana. A família é mesmo para destruir, e não é o divórcio que a destrói, é a economia, como o está mostrar de forma clara a actual governação.


Europa, uma guerra religiosa


A minha crónica desta semana no Jornal Torrejano.


Na situação europeia e nos problemas da dívida soberana raramente percebemos mais que a superfície dos acontecimentos. Alguns países não conseguiram conter as suas despesas e fizeram disparar os défices públicos. Estamos perante um conflito económico, onde, e não por acaso, os juízos morais (gastadores, preguiçosos, etc.) são mobilizados para fins políticos, numa acção punitiva contra os países em dificuldades.

Se desviarmos o olhar do mundo europeu para o médio-oriente descobrimos, espantados, que sunitas e xiitas estão em conflito aberto desde o século VII. Uma guerra religiosa que  não abranda há quase catorze séculos. Perante este facto, muitos de nós darão graças pelo nosso grau civilizacional, pois os conflitos religiosos que atingiram a Europa nos séculos XVI e XVII estão sanados. Católicos e protestantes convivem pacificamente, guardados pelo culto da sagrada tolerância.

Se olharmos os países da Europa que estão em situação difícil descobrimos uma estranha divisão. Por um lado, a Grécia (ortodoxa), Portugal, Irlanda, Espanha, Itália e Bélgica. Por vezes, sussurram-se os nomes da Áustria e de França. Todos estes países têm em comum o serem católicos. As vozes mais críticas pertencem, por outro, a países protestantes. A visão idílica da tolerância confessional, fundada na separação da Igreja e do Estado, de repente, mostra a sua ingenuidade.

O que se está a passar na Europa é uma guerra religiosa por outros meios. O conflito entre o cristianismo tradicional (católico e ortodoxo) e o puritanismo subjectivista protestante nunca deixou de existir. Tomou sempre novas roupagens. A actual é a de um conflito económico com consequências políticas, mas o que está em jogo são duas visões do mundo, da vida e da própria religião cristã.

Só isto explica duas coisas. Primeiro, a crítica moral do comportamento dos países em dificuldades, crítica essa que não passa de ostentação da superioridade moral do puritanismo protestante. Segundo, o fanatismo protestante expressa-se na imposição política do ordo-liberalismo alemão. Na actual política alemã, existe um espírito de missão evangélica que pretende converter à força os países onde ainda se faz sentir a influência da tradição, seja esta ortodoxa ou, ainda pior, papista. O que está em jogo não é apenas o dinheiro, mas as formas de vida dos povos. Este conflito a que se assiste na Europa tem profundas raízes na história. Data pelo menos do séc. XVI. Não somos melhores que os muçulmanos.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

As opacidades de José Gil


Já aqui escrevi que não tenho posição definida sobre o novo acordo ortográfico. Não faço ideia se as alterações introduzidas na escrita são, tecnicamente, boas ou más. Como também já escrevi aqui, acho que há muita pesporrência por parte dos cavaleiros que fazem do acordo um dragão a abater. Um dos exemplos acabados de pesporrência é dado por uma pessoa que tenho em grande consideração intelectual, o filósofo José Gil. Contrariamente à Ivone, acho que com argumentos destes está tudo perdido. Vejamos

José Gil parte de uma tese: “O Acordo mutila o pensamento.” Que argumentos são dados para justificar tão extraordinária afirmação? Podemos considerar dois: 1. “A simplificação das palavras, a redução à pura fonética, o “acto” que se torna “ato”, tornam simplesmente a língua num veículo transparente de comunicação. Todo o mistério essencial da escrita que lhe vem da opacidade da ortografia, do seu esoterismo, desaparece agora.” 2. “O fim das consoantes mudas, as mudanças nos hífenes, a eliminação dos acentos, etc. transformam o português numa língua prática, utilitária, manipulável como um utensílio. Como se expusesse todo o seu sentido à superfície da escrita.”

Em resumo, o pensamento seria mutilado porque a língua se torna num veículo transparente de comunicação e, por outro lado, se torna superficial devido ao seu carácter utilitário trazido pela nova ortografia. Estes argumentos não são bons para justificar a tese nem são verdadeiros em si mesmos.

Em primeiro lugar, o mistério essencial da língua não deriva da opacidade e do esoterismo da ortografia, mas do carácter polissémico dos vocábulos usados, dos jogos de sentido que estão presentes na construção textual. A opacidade e o mistério da língua não residem no vocábulo mas no texto, nesse entretecimento de vocábulos que formam sentidos múltiplos, inesperados, indecidíveis. O exemplo escolhido por José Gil é, no caso concreto, um péssimo exemplo. A transformação do “acto” em “ato” aumenta a opacidade da língua e não a diminui. Agora, preciso do contexto para determinar se por “ato” me refiro ao campo semântico da acção ou ao campo semântico do atar. A homonímia aumenta e não diminui o mistério da língua, torna a língua mais opaca e menos transparente. O que o Acordo faz, no caso referido, é produzir homonímia. Acto tem-se escrito desse modo devido à etimologia latina actus. Mas terá reparado José Gil que ato do verbo atar remete para uma etimologia que implicaria uma consoante muda, aptāre? Qual será a hora exacta para ser aceitável a queda de uma consoante muda?

Em segundo lugar, também é falso que as transformações propostas exponham todo o sentido da língua à superfície da escrita. Imaginemos a seguinte proposição:  os meus actos reflectem o meu estado de espírito. Será que o sentido desta proposição se dá todo ele à superfície da escrita se optarmos pela versão acordográfica, os meus atos refletem o meu estado de espírito? Será que refletir é menos polissémico que reflectir? E atos, ao tornar mais indirecta a referência a actiōne, não torna a língua menos superficial, contrariamente ao que sugere José Gil, exigindo um maior trabalho de arqueologia semântica, digamos assim?

Adicionalmente, acrescento ainda o seguinte: a pretensa redução da ortografia a uma mimésis da fonética não torna a relação entre a emissão fónica e a representação gráfica menos complexa e menos misteriosa. Esse mistério começa por residir no longo trabalho analítico que conduziu à decomposição das emissões sonoras nas suas unidades mais simples, para depois as fazer representar por signos gráficos que resultaram de um longo processo de estilização e de simplificação (mas disto nada sei). As alterações que se pretendem introduzir não afectam o mínimo que seja todo esse mistério nem tornam a linguagem mais transparente ou, como diz José Gil, "tornam simplesmente a língua num veículo transparente de comunicação". E isto por uma impossibilidade constitucional da linguagem. A opacidade da língua não reside na escrita mas na própria língua, na sua capacidade de significar, de fazer convergir no discurso infinitas experiências. Como é que a alteração da ortografia poderá tornar transparente o que é opaco por essência?

O que mutila o pensamento não é o Acordo, o que mutila o pensamento é pensar mal, cometer erros lógicos, mobilizar falácias, etc. O que mutila o pensamento é torná-lo obscuro de forma deliberada. O pensamento é sempre uma luta contra a opacidade e o mistério. A literatura vive da opacidade e do mistério, a filosofia, porém, é um exercício de clarificação contínua. Isto significa que o mistério e a obscuridade existem, mas que o pensamento tenta penetrar neles e fazer luz. Mas o mistério não deriva da ortografia, mas da própria realidade e da própria linguagem. A ortografia, contrariamente à linguagem (enfim, o Saussure vai perdoar-me) é uma convenção.

Reafirmo que não tenho posição sobre a questão do Acordo. O que acho insuportável são argumentos como os apresentados por José Gil. 



Uma compulsão ocidental


O senhor Khadafi não era flor que se cheirasse, mas a Primavera líbia está muito longe da revolta tunisina ou da egípcia. Na Líbia não existia um Estado propriamente dito, com os seus aparelhos de exercício do poder. O que a intervenção estrangeira fez foi lançar o país na maior confusão e insegurança possíveis. Democratizou a violação dos direitos humanos (Público). No tempo de Khadafi a violação era exercida por um, hoje são centenas de milícias armadas e à solta que espalham a arbitrariedade e o terror entre a desgraçada população. A intervenção ocidental, nomeadamente a de países europeus, foi absolutamente indecorosa. A política não se confunde com a moral, mas a multiplicação de actos imorais acaba por escavar a legitimidade política das nações ocidentais. É evidente que havia interesses económicos e que havia que limpar as barreiras que se poderiam opor ao mercado. Sempre que cheira a mercado as elites políticas ocidentais salivam, mesmo que isso seja uma tragédia para os povos libertados dos ditadores e que, amanhã, se volte contra o próprio Ocidente. Uma compulsão ocidental.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Um valete


A esperada recandidatura de Sarkozy é a prova provada de que a França já pouco conta. A direita francesa, que ainda tinha uma existência própria no declinar do gaulismo, é hoje em dia um joguete que balança entre o ordoliberalismo da senhora Merkel e o neoliberalismo de inspiração anglo-saxónica. A ausência de qualquer característica específica condensa-se na tentativa de manter um valete na função presidencial. No século XIX, o senhor Bismarck disse que o liberalismo era a estratégia de dominação inglesa, adoptá-lo na Alemanha seria entregar-se nas mãos dos ingleses. Hoje em dia, o problema mantém-se. As estratégias liberais não são políticas de valor universal, mas representam o interesse de certos países em detrimento de outros. No tempo de De Gaulle, isso ainda seria perceptível em França. Como se viu, Sarkozy pertence a um outro mundo, onde as nações não passam de meras conjecturas cujos interesses se podem questionar ou mesmo alienar, desde que isso interesse aos mercados. Não passa de um pós-nacionalista que, durante a campanha eleitoral, vai aparentar o que há de pior no nacionalismo. Uma questão de marketing eleitoral.

A glória do mando e o mercado militar


Andam agitadas as águas militares, digamos assim. Contestam a política salarial consagrada no Orçamento de Estado. Este conflito foi acentuado por declarações do ministro respectivo. Mas pequenas coisas como esta, a dos exemplares do livro com o programa do governo pagos a 120 euros a unidade, as nomeações de pessoal político, onde se assegura a retribuição de 14 salários (mesmo que o nome dado seja outro) ou as declarações de Pedro Passos Coelho, onde afirmava sentir-se mal pago, não ajudam a criar um clima propício a que as pessoas aceitem o esbulho de dois salários, para além das diminuições já havidas e do crescimento sem fim dos impostos. 

Estas pequenas coisas, em si pouco significam economicamente. São, contudo, exemplares. O que exemplificam elas? A mentalidade das elites políticas. Em primeiro lugar, acham que os seus salários deveriam estar mais relacionados com os gestores de topo das multinacionais do que com o rendimento geral dos portugueses. Em segundo lugar, acreditam que a austeridade é para os outros, que não deve atingir o fausto do poder. Os que fazem carreira política têm dois tipos de retribuição. Uma é de natureza pecuniária. A outra, porém, é de natureza simbólica e está ligada à glória do mando. E esta é a principal retribuição de uma personalidade que se dedica à política. Não há político, simples autarca que seja, que não deseje ficar na história, ver o seu nome glorificado pela ligação ao poder dentro da comunidade.

É por isso que os sinais de fausto do poder - esta pequena e triste história dos livros com o programa governamental, os carros, os assessores, etc., etc. - são tão importantes para esta gente. Por muito que possam protestar em contrário, a acção dos políticos é um exercício continuado de narcisismo e de glorificação da sua pessoa. Ainda por cima foram eleitos. Eleitos, para eles, não significa que foram escolhidos para prestar um serviço à comunidade. Significa apenas que possuem um destino tocado pela deusa Fortuna que os eleva acima do comum dos mortais, e fundamentalmente daqueles que, como os militares, prestam um serviço profissional ao Estado. A esses não cabe a glória nem o consequente reconhecimento. Prestam um serviço que, em última análise, deverá ser regulado pelas leis do mercado. Isto só pode gerar conflitos sem fim.


terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Progresso moral da humanidade


A ideia de progresso moral da humanidade teve larga fortuna no século XVIII. Kant foi o principal pensador a tematizar, na sua filosofia prática, a ideia de progresso moral. Foi sobre essa ideia que o mundo ocidental construiu muitos dos seus actuais valores. No entanto, o século XX lançou um negro véu sobre a pretensão iluminista de um progresso moral da humanidade. Os totalitarismos, as bombas atómicas lançadas no Japão, os campo de concentração de diversas cores e sabores criaram um clima pessimista relativamente a essa ideia. Contudo, como poderemos classificar a abolição das penas de morte por lapidação bem como o banimento da pena de morte para menores no Irão (Público)? Estas duas decisões, por ínfimas que nos pareçam, representam um progresso moral. A ideia de progresso implica a de um caminho a fazer e também a de valores universais para os quais se caminha. Talvez este gesto do Irão, bem como as revoluções ocorridas o ano transacto no mundo árabe, indiquem um caminho, de tonalidade muçulmana, para esses valores universais. Os valores são universais, mas os caminhos que conduzem a essa universalidade são sempre particulares. Foi assim no mundo judaico-cristão, deverá ser assim no mundo globalizado. Não seria má ideia recuperar, entre nós, o prestígio da ideia de progresso moral da humanidade. Não para a impormos aos outros, mas para termos um ponto de referência que oriente a discussão ética e a vida moral no Ocidente.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Poema 22- As bacantes



Ouve-se o velho rumor.
Um cheiro tão conhecido
Enche as narinas de furor,
Ao acordar o adormecido.

Nos seios o sangue lateja
E o corpo dança inquieto,
Pois  a morte o deseja
E o deus ergueu-se desperto.

Os corpos dão-se primitivos
E os homens, agora fugitivos,
Sentem o antigo desvario.

Tremem de calor, não de frio,
Quando elas passam loucas
E a morte sorri-lhes nas bocas.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Um convite à moderação


A manifestação de ontem, promovida pela CGTP, merece atenção por diversos motivos. Mostra que o movimento sindical não está tão morto quanto era pressuposto estar. Concomitantemente, torna claro que o PCP existe e tem uma palavra a dizer dentro do regime. Revela a muita gente, que nunca saiu do seu pequeno círculo social, que existem pessoas para além desse círculo. Tudo isso é verdade, mas o que mais impressiona no evento não é a grandeza da participação (que é óbvia), mas a ordem e a disciplina com que decorreu. A mensagem, apesar de implícita, é muito clara. Ela diz: cuidado, até aqui nós (claro, que o PCP) temos mão nas pessoas, ainda somos capazes de canalizar a dor, a pobreza e as humilhações para dentro do parlamento. Nada garante, porém, que isso seja sempre assim. Se o desespero aumentar, não teremos um Terreiro do Paço cheio, mas respeitador da ordem, teremos focos incendiários nos quais já não teremos mão. Ontem o PCP mostrou que o regime precisa dele. Mas para que o PCP tenha utilidade é preciso que as pessoas que ele representa - e ele representa muito mais do que aquelas que nele votam - não sejam jogadas no lixo como se tratassem de dejectos. Não sei se há inteligência social suficiente no governo para entender a mensagem de ontem. Radicais raramente entendem o que não vem escrito nos dogmas perfilhados. A manifestação de ontem foi um convite à moderação. Esperemos que o governo perceba que a seguir pode vir o desespero trágico dos gregos.