Recebi hoje o meu exemplar, saído há dias em França, do livro de Alain Badiou sobre a República de Platão. Traduzo os dois primeiros parágrafos.
Isto durou seis anos.
Mas porquê? Porquê este trabalho quase maníaco a partir de Platão? Porque é dele que nós hoje temos, prioritariamente, necessidade, por uma razão precisa: ele originou a convicção que governar-nos no mundo supõe que algum tipo de acesso ao absoluto nos seja aberto. Não porque um Deus veraz nos inclina para isso (Descartes), nem porque somos nós mesmo figuras historiais do tornar-se-sujeito desse Absoluto (Hegel assim como Heidegger), mas por que o sensível, que nos tece, participa, para além da corporalidade individual e da retórica colectiva, das construção das verdades eternas. [Alain Badiou (2012). La République de Platon. Paris: Fayard]
É natural que um filósofo de extracção marxista, como Alain Badiou, se interesse por Platão e pela questão precisa que justifica este livro, a da necessidade, para o governo dos homens, do reconhecimento de verdades eternas, que sejam o padrão pelo qual confrontamos as governações humanas e a justiça dessas governações. No fundo, Marx ainda se inscreve numa longa tradição que se inicia em Platão. A perspectiva de Platão foi construída em debate e contradição com o relativismo céptico dos sofistas, com a ideia de inexistência de um padrão absoluto de medida que permitisse aferir da justiça ou injustiça do governo dos homens. Hoje em dia, as teorias contratualistas de orientação liberal, acabam por reactivar a perspectiva sofista, reduzindo tudo à célebre divisa de Protágoras: O homem é a medida de todas as coisas.
E para mim onde está o interesse de Platão, interesse que me levou a comprar o livro de Badiou? Está numa necessidade funda do meu próprio ser. Está na necessidade de casar o meu cepticismo e a minha necessidade de absoluto. De certa maneira, sou um céptico que se revolta contra o seu cepticismo. Tudo o que é humano me provoca um profundo cepticismo. A finitude, os limites e a perversão dos homens há muito que me retiraram qualquer ilusão sobre a bondade absoluta dos seus actos. Há, no entanto, qualquer coisa que mitiga este cepticismo, a possibilidade de abertura para o absoluto, para as verdades eternas. Dito de outra maneira, para Deus. E é esta abertura que me interessa. Ela significa uma possibilidade - uma possibilidade precária - de moderar a injustiça entre os homens.
O marxismo perdeu demasiado tempo a desmontar a ilusão da religião (ópio do povo) e de Deus. Devido à sua natureza de cristianismo de pés para o ar, o marxismo não percebeu o essencial. Para que haja justiça entre os homens é preciso Deus (ou o Absoluto ou a verdade eterna), esse padrão absoluto pelo qual julgo as acções humanas. Mesmo que Deus não exista, Ele precisa de ser inventado e reinventado. Esta reinvenção é sempre um exercício de cepticismo e de revisibilidade. Cepticismo sobre a imagem de Deus criada e revisão que conduza a uma nova imagem, numa dialéctica infinita de cepticismo e necessidade de absoluto. É preciso pensar no fio da navalha, sem se afundar num cepticismo justificador de todas as barbaridades nem num dogmatismo sem freio. É aqui, pelo menos para mim, que a Filosofia faz sentido. Só no fio da navalha o pensamento se torna decisivo.
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