Neste artigo do The Telegraph, de que tive conhecimento aqui, Stephen Adams dá conta de um outro artigo publicado no Journal of Medical Ethics por Alberto Giubilini e Francesca Minerva, onde estes argumentam a favor do direito dos pais em matar os filhos recém-nascidos, sejam eles deficientes ou não. O argumento de Giubilini e Minerva funda-se, embora o The Telegraph não o refira explicitamente, na distinção aristotélica entre ser em acto e ser em potência. Os recém-nascidos não são pessoas em acto e, por isso, não possuem direito moral à vida. São apenas pessoas em potência, mas ainda não são sujeitos que possam reivindicar um direito moral à vida. Deste ponto de vista, os recém-nascidos não são diferentes dos fetos. Estes também são apenas pessoas em potência. Aliás, os autores em vez de usarem a expressão habitual de infanticídio usam a designação de aborto pós-nascimento.
Por escandalosa que seja a argumentação para a nossa consciência, ela deve ser discutida. Recordemos que o infanticídio foi uma prática comum, no mínimo tolerada, em todo o mundo. No império romano, parece ter sido uma prática amplamente difundida. Ao artigo, levantaria duas objecções. Em primeiro lugar, o princípio que conduz os autores à conclusão a que chegam não implica essa conclusão. A distinção aristotélica entre pessoa em acto (aquele que é capaz de reivindicar o estatuto) e pessoa em potência pode conduzir à conclusão contrária. Todos os seres que, potencialmente, têm o poder de, no futuro, se apresentarem como sujeitos morais com direito à vida possuem o direito a viver e o seu assassínio é um crime. Este argumento, porém, tem um defeito. Trata-se daqueles seres humanos que, por uma patologia, não têm agora nem no futuro capacidade de reivindicar o seu estatuto moral de pessoa. Esses não estariam defendidos por esta argumentação e a sua execução seria permitida moralmente.
Em segundo lugar, o direito à vida só deverá ser assegurado a quem tem o poder de afirmar-se como sujeito moral e reivindicar o estatuto de pessoa? Se assim for, qual é a altura em que um neo-nato humano pode ser considerado pessoa e sujeito moral? O erro desta argumentação (um erro suposto a partir da leitura do artigo do The Telegraph e não do próprio artigo dos autores) está na consideração do estatuto de pessoa a partir da capacidade de reivindicação desses estatuto por parte do sujeito. Ora, um estatuto diz respeito ao reconhecimento por parte dos outros. O recém-nascido não tem capacidade de exigir para si o direito moral à vida, mas os outros - isto é, a sociedade - reconhece esse estatuto e confere-lho. O erro da argumentação está na focalização do estatuto de pessoa no indivíduo esquecendo que todo o estatuto resulta da interacção entre indivíduos no espaço e no tempo. Eu tenho o estatuto de pessoa porque a comunidade mo reconhece. Eu só posso reivindicar o estatuto de pessoa porque há, por parte dos outros, uma pressuposição e uma disposição para que tal aconteça. É evidente que a minha posição levanta imensos problemas à questão da moralidade do aborto.
P.S. - Referência ao artigo também no Público. Contrariamente ao que diz o Público, o artigo não é científico, mas um artigo no âmbito da ética, logo de natureza filosófica. Não há qualquer ciência que nos possa dizer se é moralmente errado ou certo o infanticídio.
Em segundo lugar, o direito à vida só deverá ser assegurado a quem tem o poder de afirmar-se como sujeito moral e reivindicar o estatuto de pessoa? Se assim for, qual é a altura em que um neo-nato humano pode ser considerado pessoa e sujeito moral? O erro desta argumentação (um erro suposto a partir da leitura do artigo do The Telegraph e não do próprio artigo dos autores) está na consideração do estatuto de pessoa a partir da capacidade de reivindicação desses estatuto por parte do sujeito. Ora, um estatuto diz respeito ao reconhecimento por parte dos outros. O recém-nascido não tem capacidade de exigir para si o direito moral à vida, mas os outros - isto é, a sociedade - reconhece esse estatuto e confere-lho. O erro da argumentação está na focalização do estatuto de pessoa no indivíduo esquecendo que todo o estatuto resulta da interacção entre indivíduos no espaço e no tempo. Eu tenho o estatuto de pessoa porque a comunidade mo reconhece. Eu só posso reivindicar o estatuto de pessoa porque há, por parte dos outros, uma pressuposição e uma disposição para que tal aconteça. É evidente que a minha posição levanta imensos problemas à questão da moralidade do aborto.
P.S. - Referência ao artigo também no Público. Contrariamente ao que diz o Público, o artigo não é científico, mas um artigo no âmbito da ética, logo de natureza filosófica. Não há qualquer ciência que nos possa dizer se é moralmente errado ou certo o infanticídio.
Este seu texto perturba. Discute-se aqui uma coisa estranha. Leio-o e acho que nem percebi bem mas custa-me voltar a ler.
ResponderEliminarÉ inquietante que se discuta uma coisa destas. Sou favorável à despenalização do aborto e não tenho dúvidas sobre a minha opção. Mas que seja, de facto, uma coisa extrema.
Quem recebe das mãos de jovens embevecidos a ecografia do seu bebé ainda com 1,1 cm, em que nada se reconhece para além de um pontinho que nos dizem que bate como batem os corações, ou quando recebemos no nosso telemóvel a imagem de um bebé já todo formado mas em que não mede mais que uns escassíssimos cms, em que distinguimos a carinha, os braços, as pernas, tudo, e ainda vai nas primeiras semanas - custa-nos a pensar que esse serzinho que um dia vai nascer e ser uma pessoa, pode ser encarada como um objecto descartável.
Colocar a questão quando o bebé já nasceu (sabendo nós o que é a alegria incrível de ter nas mãos um recém nascido), é colocar em questão a nossa própria vida.
Questão estranha e perturbante, essa.
Só tive acesso ao comentário e explicação feitos no The Telegraph. Não sei se Giubilini & Minerva estão a argumentar pura e simplesmente que não é moralmente errado o infanticídio - embora no artigo referido haja indicações nesse sentido - ou se estão a argumentar que o infanticídio é idêntico ao aborto, pois o estatuto do feto e do recém-nascido é moralmente idêntico. Seja como for, há problemas em ambos os casos. No primeiro, são as aporias do pensamento liberal, no segundo as provocadas pelo aborto. Mais que o resto, é uma temática que felizmente nos repugna, o que talvez seja sintoma de que Kant tinha razão em falar no progresso moral da humanidade.
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