sábado, 11 de fevereiro de 2012

Estado de Natureza


Um dos conceitos centrais das teorias contratualistas é o estado de natureza. O contrato social, pelo qual se institui o poder político, é a passagem do estado de natureza ao estado civil. Thomas Hobbes sublinha, como característica central do estado de natureza, a guerra de todos contra todos. Quem tenha dificuldade em intuir o conceito de Hobbes pode olhar para Salvador da Baía, nestes dias de greve policial. Não apenas os marginais e criminosos intensificaram os crimes, incluindo o assassínio, como os que, putativamente, não eram criminosos passaram a sê-lo. Como refere o Público, toxicodependentes, sem abrigo, pequenos criminosos, indesejados dos bairros periféricos de Salvador estão a aparecer mortos, às mãos de milícias a soldo de comerciantes e de barões da droga. Percebe-se, por este pequeno exemplo brasileiro, que o estado de natureza não é qualquer coisa que tenha existido num tempo pré-histórico, mais ou menos mítico. O estado de natureza é aquilo que sucede sempre que o poder civil, na sua dimensão de aplicação da ordem e de repressão da desordem, é posto em causa, seja por que motivo for. 

Quando se ouvirem apologias da anarquia, do fim do Estado, da bondade do homem natural, não devemos nunca esquecer este exemplo vindo da Baía. Os baianos não são diferentes dos parisienses, londrinos ou lisboetas. Mas ainda há uma outra coisa para que este exercício macabro do direito à greve - se é que os polícias brasileiros o têm - nos deve alertar. Sempre que desaparece a regulação política, instala-se o caos e a anarquia, os fortes devoram os mais frágeis e desprotegidos. 

O que se aplica à vida numa cidade aplica-se também aos mercados, nomeadamente ao mercado financeiro global. Aquilo pelo qual estamos a passar deve-se ao anarquismo que reina no mundo financeiro. É evidente que os agentes do mercado não matam pessoas. Mas as políticas que eles suscitam ou segredam aos ouvidos das elites políticas têm o especial condão de fazer transferir o dinheiro de pobres e remediados, como outrora se dizia, para as contas dos mais poderosos, ao mesmo tempo que, devido aos cortes nas políticas sociais, nomeadamente na saúde, entregam os frágeis economicamente a uma esperança de vida mais reduzida, isto é, à morte. Há muito que somos governados por políticos que são verdadeiros polícias em greve, políticos que, como muitos dos polícias baianos, fazem também parte dos esquadrões da morte. Não que matem, obviamente. Limitam-se a executar as políticas que conduzem à desordem do mercado global, com as consequências que todos conhecemos. 

1 comentário:

  1. Matam sim. Só que pela calada. Matam pelo empobrecimento de milhões de pessoas, matam pelo desgaste físico e psiquíco, matam por tirar a esperança, matam por tirar emprego e pão e uma «vida limpa», como diz a Sophia de Mello Breyner, matam porque há gente que se suicida, como o casal italiano recentemente, e tantos, tantos outros casos que nem sequer são nomeados por tão anónimos. Matam sim.

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