Começa hoje o tempo de Quaresma. Quando era novo, achava o tempo de Quaresma uma depressão. Depois, tornou-se-me indiferente, com a agradável particularidade de anunciar e cumprir umas sensatas férias pascais. Hoje em dia, a Quaresma tem, aos meus olhos, imensas virtualidades. Foi um crime tê-la votado - mesmo entre muitos e muitos cristãos - ao desdém e ao abandono. Diria mesmo que foi um crime ambiental.
O ano é marcado pelas festividades do Natal e Ano Novo, do Carnaval (felizmente acabado ontem) e as recém eternas férias de Verão. Tudo (o Natal tornou-se o que se sabe) momentos de exterioridade, de exibição mundana, de irreflexão. Tempos de excesso. Não de um excesso dionisíaco, mas de um excesso pindérico feito de prendas inúteis, reveillons absurdos, desfiles carnavalescos que nos dão vontade de chorar, e de obscenos dias de praia, onde corpos que deveriam estar tapados, desde a planta dos pés aos cabelos, julgam ter o dever de partilhar o seu à vontade com os olhos dos incautos que passam por uma praia. Como se vê, tudo poluição. Pior que as chuvas ácidas ou uma maré negra.
Ora a Quaresma é um tempo de sacrifício e de conversão espiritual. As igrejas cristãs propõem penitência, meditação, jejum, esmola, oração durante os quarenta dias de Quaresma. Faz todo o sentido. Devíamos todos fazer penitência pela sociedade que criámos, pelos hábitos idiotas que adoptámos, pelas pretensões risíveis dos nossos egos. Fundamentalmente, deveríamos fazer penitência por permitir que a estupidez tome conta do mundo. A estupidez não é um pecado, mas a complacência com ela é um dos piores e de irremissibilidade mais difícil. Por outro lado, andamos todos sobre-alimentados, mesmo em época de crise como esta, as pessoas, para além do sexo, não pensam noutra coisa senão em comer. O jejum parece-me uma medida ecológica e económica. Poupa o ambiente, faz bem à saúde, e se não faz bem à economia também não fará mal (pois se nem os economistas sabem o que faz bem ou mal à economia, como seria eu a saber?). A esmola é um exercício virtuoso. Aprendi-o com o meu pai, que não era religioso, mas que raramente se furtava, nesses tempos em que havia pobres de pedir, a esse dever de consciência de dar alguma coisa a quem o interpelasse. Tem a vantagem de ser também uma virtude social, pois é uma forma de distribuir rendimentos. Eu sei que o Estado tem o dever disto e daquilo, eu sei. Mas se o Estado não o faz alguém tem de o fazer.
Aquilo que me agrada mais é a ideia de meditação e oração, fundamentalmente se a oração for silenciosa, ou então realizada nos lugares reservados para o efeito. Se Portugal inteiro meditasse e orasse, quantas palavras idiotas nos seriam poupadas? Quantas decisões desastrosas das mentes brilhantes que nos governam não chegariam sequer a cintilar nos neurónios de pessoas como Passos Coelho ou Miguel Relvas, para não falar do Vítor e do Álvaro. Meditação e oração seriam um exercício de defesa do meio ambiente, fariam parte de uma ascese da palavra que pusesse fim à verborreia reinante. Seriam a anunciação do paraíso na Terra. Como é que uma pessoa como eu, que não caminha para novo, pode deixar de amar os tempos de Quaresma?
Sim, o Natal pode ser quando um homem quiser, mas a Quaresma, meu Deus, deveria ser obrigatória todo o ano. Por uma questão ecológica.
Hoje, ao fim da tarde, numa aula com uma aluna alemã, de quarenta e sete anos, de origem iraniana e que exerce uma profissão independente, tem uma empresa de Training e acabou de chegar de Praga onde passou uma semana a formar empresários, pessoa que não segue religião alguma, disse-me com o ar mais natural deste mundo: «Maria, vou fazer jejum, não o jejum que fazia antes, mas, por exemplo, vou passar estas semanas sem beber alcool. Nem um copo à noite, como gosto de fazer. E tentar comer menos.» O que mais me espantou foi o jejum que esta senhora costumava fazer: jejum mesmo, estava duas semanas sem comer, só bebendo água ou chá e, imagine-se, limpava o corpo de qualquer peso a mais até com ajuda daqueles aparelhos que lavam os intestinos. «Maria», dizia ela, «nem imagina o bem que faz. Ficamos com o corpo completamente limpo, a alma mais arguta, olha-se o mundo e as pessoas de um modo completamente diferente, com outro espírito, e medimos mais aquilo que realmente é importante comer, beber ou fazer». Passava os dias entre o trabalho e a meditação, puramente pessoal sem método algum ditado por esta ou aquela linha espiritual. Meditava, simplesmente. Depois explicou-me como era feito o desejejum, a pouco e pouco e como essa espécie de penitência/limpeza do corpo e da alma a tinham ajudado a ver e a viver a vida com maior clareza. Perguntou-me o que faziam por cá os portugueses, país conhecido como católico, ao que respondi que pouco se ligava ao assunto talvez há mais de quarenta anos. Na Alemanha, mesmo nas zonas com influência do catolicismo, também pouco ou nada se liga a tal período. Conclusão: as instituições religiosas fracassaram completamente na divulgação da palavra. Foram sufocadas pelo famigerado capitalismo, por mais ou menos selvagem. Resta-nos a liberdade de escolher o que fazer. Admirei-a pelo espírito livre, pela forma como se dedicava ao assunto, pelo encanto como me contou como fazia tudo durante essas semanas, os estados do corpo e os de alma. Uma Quaresma o ano inteiro não. Mas uns dias assim, neste retiro, creio que só poderiam fazer bem a toda a gente. Temos essa liberdade.
ResponderEliminarImagine que as nossas elites políticas decidiam fazer nem digo voto de silêncio mas de uso muito comedido da palavra. Não seria uma bênção que isso acontecesse o ano inteiro? Brincadeira à parte, mesmo do ponto de vista da vida social, esse exercício de ascese seria muito benéfico. Temos liberdade, falta-nos, porém, a vontade.
ResponderEliminarMais do que a bênção, seria talvez a salvação da Pátria...limpava-se todos os soundbites nocivos e respirava-se...Sorriso.
ResponderEliminarA vontade é sempre possível. Está em nós.