terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Memória, uma agência de falsificação


Há dias, ouvi no programa de Joel Costa, Questões de Moral (Antena 2), uma história de Buñuel que liguei, de imediato, a uma experiência minha. Parece que Luis Buñuel contou, várias vezes, aos amigos o casamento pela Igreja do intelectual marxista Paul Nizan. O casamento teria sido em Saint-Germain-des-Prés, e Buñuel descrevia o altar, a música, o padre, os convidados, entre eles Jean-Paul Sartre, que teria sido o padrinho. Um dia chegou à conclusão que aquela memória era falsa. Toda esta história incongruente, da qual Buñuel possuía vívida imagem, nunca acontecera, não sabendo o cineasta explicar como formou tão clara memória do facto não acontecido.

Também eu possuo uma memória vívida de uns dos meus bisavós maternos, uma memória que os coloca lado a lado à soleira de uma porta. Mas olhando para a idade que eu tinha quando eles morreram, eu não posso ter esta imagem idílica. O problema maior não reside na falsidade da memória, da sua infinita capacidade de falsear o acontecido. Todos sabemos isso. O problema maior está na nossa identidade. A identidade, essa instância conservadora do nosso eu, é, fundamentalmente, construída pelas redes memoriais que vamos erguendo. São elas, as redes memoriais, que permitem conservar, na consciência e na representação social perante os outros, os traços que afirmam e conservam a nossa identidade.

Se descobrimos, porém, que a memória é uma agência de falsificação de documentos, então o mais certo é que a nossa identidade seja falsa, não havendo Bilhete de Identidade ou, na versão mais actual, Cartão de Cidadão que nos salve. A identidade não passará de uma instância de conservação construída de forma a produzir uma ficção congruente. Isso significa, em primeiro lugar, que o conservadorismo, essa forma de prolongamento de uma identidade no tempo, não passa de um exercício ficcional fabricado sobre falsificações da realidade e que todo o nosso esforço identitário é sempre uma inovação de quem pretendemos ser, com a aparência de que há uma linha de continuidade temporal. Em segundo lugar, tudo isto significa que cada vez que nós olhamos para o que somos, para essa identidade que conserva o nosso ego, devemos seguir o conselho, dado pelo escritor romântico inglês Samuel Taylor Coleridge, de suspender a descrença, o que significa aceitar como verdadeiras as premissas de uma ficção, mesmo que sejam impossíveis ou contraditórias.

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